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LUíS RAPOSO

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A Aliança Americana de Museus (AAM) é uma das mais interessantes associações mundiais de museus, cuja actividade importa seguir com toda a atenção. Dá ela conta de uma realidade de museus, a dos EUA, substancialmente diferente da nossa e da europeia em geral. E basta ter presente o último levantamento que fez sobre a situação salarial nos museus americanos para o perceber. O universo de museus usado é composto em mais de dois terços de museus privados, cerca de um quinto de museus universitários ou de administrações estaduais e apenas 1,5% de museus federais. Num ambiente em que a iniciativa privada domina amplamente, a AAM apresenta-se como uma força de lobby em defesa dos museus. Organiza anualmente o Museums Advocacy Day (o deste ano foi em 24 e 25 de Fevereiro últimos), dirigido muito especialmente aos órgãos do poder legislativo americano, que são bombardeados com todo o tipo de iniciativas, que vão desde as cartas enviadas de todo o País (e para a quais a AAM faculta minutas) até às sessões formais organizadas nos diferentes corpos do Congresso. Entre os numerosos materiais, quais argumentários, preparados para essa ocasião conta-se uma folha de combate intitulada “Factos dos Museus”. Construída com frases curtas, incisivas, fala-se nela de como os museus “servem o público”, “são de confiança”, “educam as comunidades”, “são parceiros das escolas”, “constituem motores da economia”, “servem todas e cada comunidade”… e ainda assim “têm de lutar para satisfazer as aspirações das comunidades”. Segue-se uma lista de reclamações concretas, traduzidas em valores orçamentais quantificados, em iniciativas legislativas, etc. A rubrica em que se dá conta do impacte económico dos museus é especialmente impressiva: os museus dão emprego a mais de 400 mil americanos; geram de forma directa mais de 21 mil milhões de dólares em actividade económica; constituem um dos motivos declarados de visita de mais de quatro quintos do turismo interno; contribuem em mais de 3% para a totalidade de economia da nação; permitem aos governos relações na ordem de um para sete dólares na relação entre investimento feito e retorno obtido.

Trata-se de números que falam muito mais ao americano comum, e em especial ao decisor, público ou privado, do que discursos de boas intenções e páginas de boa teoria. Por isso, nos EUA, os museus têm-se afirmado cada vez mais como investimentos que valem de tal modo a pena, que no balanço de ganhos e perdas se começa a perceber, sobretudo em domínio privado, que mais vale ampliar as margens da gratuitidade no acesso aos mesmos, compensando-as pelos benefícios da maior frequência e de toda a actividade económica daí resultante.

A Europa, curiosamente, tarda em adoptar este paradigma. E estranha-se, porque se diria existirem aqui melhores condições para o desenvolver, já que a maior parte dos museus são públicos. Apenas na Grã-Bretanha encontramos algo aproximado, quer em termos de lobbying social, quer termos de políticas de Estado. Basta ver a série de folhetos editados pela equivalente britânica da AAM, a Associação de Museus, onde os visitantes, as comunidades, as colecções, as regiões, os turistas e a economia… todos “amam os museus”. Em relação à última, a economia, apresentam-se dados singulares: o movimento financeiro directo anual dos principais museus e galerias ingleses é de cerca de 900 milhões de libras, ou seja, cerca de 1% da economia total do país; deste valor, apenas cerca de metade provém de fundos o públicos, gerando os museus as receitas restantes (não através de bilheteira, porque são gratuitos, mas pelo recurso a patrocínios, parcerias, assessorias, merchandising, etc.); mais alargadamente, o turismo dirigido para o património e os museus contribui com cerca de 20 mil milhões de libras para o PIB, mais do que as indústrias da publicidade ou do automóvel; quanto aos museus não estatais, com cerca de 9 milhões de visitantes, estimam-se receitas de 364 milhões de libras; e até o mais antigo dos museus ingleses, o Ashmolean, em Oxford, consegue a proeza de recolher 30 milhões de libras em fundos privados, para 15 milhões que recebe através da Lotaria. A propósito, diga-se que o recurso às lotarias, assim como aos fundos do turismo, reservando pequenas percentagens dos mesmos para aplicação directa nos museus, a título do compensação do impacte que têm na economias nacionais, constitui uma opção seguida em vários países europeus, sendo legítimo perguntar porque ninguém ainda em Portugal entendeu pelo menos estudar essas experiências, para eventualmente depois as adaptar ao nosso caso.

Mas repetimos o que dissemos acima quanto à estranheza do alheamento na Europa, tanto dos investidores privados como sobretudo das administrações públicas, em relação aos museus, que são o grande e singular registo de marca do “velho continente”. Para o demonstrar, vejamos as estatísticas internacionais sobre museus e parques temáticos.

Conforme se documenta no primeiro gráfico em anexo, os vinte parques temáticos mais visitados no Mundo conseguiram atrair quase 180 milhões de visitantes em 2012. Mas situam-se quase todos (com a única excepção do Eurodisney, em França) fora da Europa e especialmente nos EUA (em duas únicas regiões daquele país quase continental: a Califórnia e Florida). Os vinte mais visitados parques temáticos europeus, não conseguiram no mesmo período atrair sequer 58 milhões de visitantes, ou seja, menos de um terço. E se deles excluirmos o franchising americano do Vale do Marne, acima referido, então o número baixa para cerca de um quarto de visitantes. De toda a evidência, a Europa não é competitiva em matéria de parques temáticos.

O segundo gráfico em anexo apresenta-nos a situação relativa aos museus. E ela é bem diversa, quase oposta. Com feito, verifica-se aqui que são europeus metade dos vinte museus mais visitados no Mundo. E que quando confrontados os top twenty mundial e europeu, a diferença em número de visitantes é muito menor: 98 para 71 milhões. Mais ainda: na Europa, os vinte museus mais visitados atingem número de visitantes significativamente maior do que os vinte parques temáticos, 71 para 57 milhões.

Que conclusão pode ser extraída destes números básicos ? Pois, a de que aquilo que verdadeiramente marca a imagem da Europa, e a individualiza, são os seus museus, os acervos seculares e milenares que se guardam no “velho continente” – não os seus parques de diversões.
Acrescem dois outros aspectos, apenas parcialmente perceptíveis nos dados até aqui referidos.

Em primeiro lugar, o dos indicadores de acesso aos museus, não apenas os do top twenty, mas todos eles. Até nos EUA, como recentemente sublinhava a The Economist, os museus são de muito longe os equipamentos culturais mais visitados. Em 2012, os cerca de 17500 museus americanos foram visitados por cerca de 850 milhões de pessoas, ou seja, mais do que todos os desportos e parques temáticos juntos. Na Europa, como se imagina e atentas as respectivas proporções, os números são ainda muito mais arrasadores.

Em segundo lugar, existe o factor da gratuitidade. Nenhum parque temático é gratuito, mas já nos museus encontramos amplas margens de gratuitidade. Mais de metade (12) dos 20 museus mais visitados no Mundo são gratuitos. Mas, voltamos a dizer que curiosamente, apenas menos de metade (9) o são dentro dos 20 mais visitados na Europa. E todos na Grã-Bretanha. Estranho ? Talvez não, se tivermos em conta o debate de cidadania e de economia havido nas duas últimas décadas naquele país – o que mais aprendeu com o lado bom do modelo americano e o único, que saibamos, onde a política de museus foi amplamente discutida nos horários nobres dos media e constituiu factor de demarcação entre tories e labour.

E bem poderia, em nosso entender deveria, ser de outra forma. Exigir-se-ia à Europa que tirasse plenamente partido dos seus museus, como os EUA fazem dos seus, sejam eles públicos ou privados. Mais a mais, num contexto onde os museus constituem uma marca individualizadora, pelo que são e pelas finalidades que prosseguem. Os museus são instituições de longo curso, prenhes de história, carregadas de cidadania. Todo o museu público constitui um projecto cívico, sem fins lucrativos, conforme à definição mundial estabelecida pelo Conselho Internacional dos Museus (ICOM): “O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.” Ou seja: se nalguma coisa em Cultura podemos pretender que o modelo social europeu é distinto do modelo americano, ela seria o lugar ocupado por parques temáticos e museus em ambos os lados do Atlântico e o papel que os Estados lhes deveriam destinar.

Precisa-se com urgência de uma política europeia de museus e esse será o tópico de uma conferência a ter lugar em Setembro próximo em S. Petersburgo (“Museums and Politics”), organizada conjuntamente pelos ICOMs nacionais da Rússia, Alemanha e EUA, onde nos caberá apresentar a chamada Declaração de Lisboa – um manifesto em defesa dos museus, o único produzido até hoje no contexto da crise por que passamos. Na realidade, precisamos de uma Europa reinventada, onde as funções sociais do Estado, em vez de serem simplesmente abandonadas, uma a uma, em favor das “leis do mercado”, sejam recuperadas, jogando, onde for caso disso, com as mesmas regras do dito mercado, ou seja, actuando agressivamente no campo das indústrias culturais, produzindo receitas, com as duas únicas condições de: não alienar o cidadão, impedindo-o no usufruto dos seus acervos guardados em museus, não centrar a nossa actividade na apropriação privada de recursos públicos e pelo contrário reinvestir sempre em mais cidadania, em mais cultura.

Poderá este caminho parecer a alguns uma espécie de quadratura do círculo. Mas não é. O exemplo britânico demonstra-o. E diversos outros países europeus começaram já a segui-lo. Mesmo François Sarkozy, incluiu em seu tempo no manifesto eleitoral a ampliação das margens de gratuitidade dos museus nacionais franceses – o que estava a ser feito até à emergência da crise. Resta saber se esta hidra de sete cabeças, a crise em que vivemos desde o colapso parcial do sistema do capitalismo financeiro de casino em 2008, não está nesta altura a ser aproveitado pelas políticas e políticos de vistas curtas, baseados na procura de ganhos imediatos, que tomaram conta de muitos governos nacionais, militando em favor de um neo-liberalismo sem paralelo, que nunca a Europa conheceu, nem nos tempos de Adam Smith. Ora, nestas coisas não devemos ser demasiado ingénuos. Nem todos perdem; alguns ganham e ganham muito.


Luís Raposo
Arqueólogo. Presidente do ICOM Portugal e membro da direcção do ICOM Europa.