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11ª BIENAL DE BERLIMTINY DOMINGOS2020-11-29
O resultado é uma exposição pensada como plataforma de reconhecimento de grupos minoritários (etnia cigana, Inuits canadianos, populações indígenas da América do Sul, Comunidade LGBTQI+) e/ou marginalizados (pessoas com doenças de foro psíquicos, anticonformistas, etc.). Curiosamente o tom acutilante do texto curatorial não encontra equivalência neste epílogo, cujo dispositivo é clássico com forte presença do desenho, da pintura, dos bordados, das tecelagens têxteis. Percebe-se a intenção de fazer justiça e dar visibilidade às minorias vítimas de violências e processos de exploração, usurpação de terras, silenciamento e apagamento decorrentes da colonização, mas surpreende o lado convencional e até mesmo decorativo de muitas obras. Até os vídeos optam ora por uma linguagem poético-documental ou pelo lado pop. Desiludam-se os fãs das linguagens conceptuais e desmaterializadas: ficaram de fora os autores contemporâneos de obras conceptuais/teóricas (nem mesmo a ótima produção latinoamericana foi contemplada). Para acrescentar a esta surpresa: na longa lista de problemas aqui tratados, falta o maior tema da atualidade: o aquecimento global. No Museu invertido, optou-se por uma releitura do passado, que nos faz mergulhar nos anos 70 com uma secção do Museo de la Solidaridad Salvador Allende (MSSA) - Iniciativa de solidariedade com o Chile que visou a criação de um utópico museu nómada de arte "do povo para o povo". Vemos assim o grande escritor argentino Julio Cortazar apresentar o projeto, que contou com o apoio de uma artista portuguesa: Maria Helena Vieira Da Silva, cujo belo quadro ladeia o retrato de uma guerrilheira de arma erguida.
Museo de la Solidaridad Salvador Allende (MSSA), Vista da exposição. 11a Bienal de Berlim, Gropius Bau, 5.9.–1.11.2020. O quadro de Vieira da Silva é o terceiro a contar da esquerda no painel branco central. Photo: Mathias Völzke Museo de la Solidaridad Salvador Allende (MSSA), Vista da exposição. 11a Bienal de Berlim, Gropius Bau, 5.9.–1.11.2020. Foto: Mathias Völzke
Um dos traços recorrentes desta edição é a "Arte Outsider" ou "Art Brut" (a arte dos pacientes psiquiátricos, dos reclusos prisionais e dos leigos), em destaque numa sala dedicada ao Museu de Imagens do Inconsciente do Rio de Janeiro, bem como na KW, nos fascinantes desenhos a caneta de feltro de Óscar Fernando Morales Martínez (autodidata, ex-mecânico e eletricista que sofre de esquizofrenia paranoica) e nos trabalhos de Pedro Moraleida Bernardes (que se suicidou em 1999 aos 22 anos). No vídeo musical "Ramita Seca, La Colonialidad Permanente" de 2019, Bartolina Xixa, autointitulada "drag queen dos Andes", dança no meio de uma lixeira. Vestida com trajes tradicionais, a sua performance neo-foclórica pretende ser um apelo à luta contra as desigualdades sócio-económicas e a violência estrutural decorrente da economia extrativista.
Video musical Ramita Seca, La Colonialidad Permanente de 2019, Bartolina Xixa.11a Bienal de Berlim. Photo: TD
Na Anti-Igreja (KW), obras anódinas coabitam com os surreais desenhos erótico-transhumanistas de Florencia Rodriguez Giles. No chão, jaz uma escultura de Young-Jun Tak: 10 Cristos recobertos por folhetos anti-LGBTQI de uma seita evangélica coreana numa referência explícita à sua intolerância para com esta comunidade. Curiosamente este agrupamento religioso foi acusado, tal como os clubes gay de Seoul, de contribuir fortemente para a transmissão do vírus do Covid 19 na Coreia do Sul. Os trabalhos em papel do brasileiro Pedro Moraleida Bernardes conjugam, de forma dinâmica, influências de Arthur Bispo do Rosário, Antonin Artaud e Rainer Werner Fassbinder. A energia, reforçada pela disposição das imagens em forma de crucifixo, é palpável, mas o poder transformacional desta linguagem visual anticristã fica aquém das expectativas suscitadas pelas grandes referências. Numa das caves, uma instalação barroca e dramática de Carlos Motta estabelece uma ponte entre um motivo de Caravaggio e as práticas de bondage e sadomasoquismo. Num andar superior, Zehra Doğan descreve o destino dos detidos curdos na Turquia em Xêzên Dizî [The Hidden Drawings], 2018–20. Desenhos que esta artista e ativista realizou na prisão onde foi detida por motivo de "propaganda terrorista.” Em "Who is Afraid of Ideology? (Part 3) – Microresistances (2020)", Marwa Arsanios remata um périplo por várias regiões do mundo com um vagaroso relato da luta de uma pequena comunidade de Tolima, Colômbia, que tenta recuperar as suas sementes tradicionais contra a vontade das grandes multinacionais do setor agrícola. A instalação de vídeo They Sing, They Dance, They Fight (2020) da artista peruana Elena Tejada-Herrera combina treinos de autodefesa de raparigas, mulheres trans e mulheres de todas as idades com estética pop numa empolgante celebração do empoderamento feminino. Na Galeria do DAAD, destaque para o vídeo da performance The Santa Claus Army realizada em 1974 pelo Solvognen (The Sun Chariot) Theater Group em que um anárquico exercito de Pais Natais desafia as convenções da sociedade de consumo.
Flávio de Carvalho (em colaboração com Raymond Frajmund). Vista da exposição (pormenor), 11a Bienal de Berlim c/o ExRotaprint. Photo: TD
No Arquivo Vivo (Ex-Rotaprint), Dorine Mokha, bailarino e coreógrafo congolês contraria os estereótipos africanos (de género) ao explorar a fluidez entre os géneros numa performance em que surge de saltos altos e elegante vestido azul esboçando graciosos movimentos ao som da música. Outra posição artística que questiona as regras da normatividade é a de Flávio de Carvalho. Este multifacetado e vanguardista artista/engenheiro/arquiteto/escritor/inventor brasileiro (1899 -1973) tem direito a um merecido destaque nesta bienal. A curadoria incluiu um quadro seu de pendor surrealista na KW e os radicais desenhos "Minha mãe morrendo" da Série Trágica de 1947 no Gropius Bau. Na Ex-Rotaprint são expostos recortes de jornais, ficheiros audio e fotografias que relatam as suas polémicas ações públicas e o alvoroço que causou o seu traje tropical, com minissaia masculina, apresentado ao público em 1956.
Marcha à Ré, Video-performance do Teatro da Vertigem, KW. Photo: TD
O outro ponto alto desta bienal surge precisamente em resposta à Série Trágica e aos "estudos de multidão" de Flávio de Carvalho: o vídeo "Marcha à Ré" do Teatro da Vertigem (desenvolvido pelo conhecido escritor e artista visual Nuno Ramos e filmado por Eryk Rocha) consegue resumir de forma simples e magistral a terrível situação da pandemia do Covid 19 no Brasil e no mundo através de uma procissão funerária de cerca de 120 carros em marcha atrás na Avenida Paulista. É sem dúvida uma obra que ficará na memória pela força pujante das imagens e da mensagem política, pela denúncia das políticas populistas que ignoram os avisos da comunidade científica e médica. Num momento crítico para a cultura em que os museus, as salas de concerto e os teatros estão fechados em quase toda a Europa e em muitos países pelo mundo, esta vídeo-performance, viabilizada através de uma vasta colaboração interdisciplinar, é uma reconfortante prova de resiliência. Vale a pena conferir o teaser deste vídeo. Estas duas últimas participações conseguem por si o que a bienal no seu todo não consegue: olhar o mundo de ponto de vista pessoal e original sem cair em clichés e transformar a crítica ou a proposta estética numa mensagem global inclusiva e/ou virada para o futuro. Em termos positivos, vale a pena sublinhar a aposta ambiciosa numa perspetiva pré- ou pós-digital em que os artistas - a maioria dos quais externos aos grandes circuitos museais e comerciais - se exprimem através da música, do lápis, das canetas de feltro e do artesanato num mundo sem google, instagram e youtube que torna viável um saudável abrandamento. O problema é que o alvejado reconhecimento mútuo com vista à interação e à mudança não parece funcionar. O tema da dor, o lamento e a exibição das chagas em gestos e cenografias de cunho católico não poderiam ser mais alheias a uma cidade pouco efusiva, eminentemente laica e pós-cristã como Berlim. Apesar da fineza da análise e das melhores intenções da equipa curatorial, da grande e necessária tarefa que representa a descolonização das mentes e das instituições, o cumprimento dos critérios mais em voga do pós-colonialismo não é, por si, sinónimo de transformação, pertinência, perspetiva dialética e inclusão participativa.
Tiny Domingos |