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JANEIRO 2016: SER COLECCIONADOR É…CATARINA FIGUEIREDO CARDOSO2016-01-06
2015 foi um ano marcado por exposições de coleccionadores [1]. A Culturgest dedicou boa parte de 2015 à Colecção Lempert, uma colecção de cartazes de artista e de exposição reunida desde os anos 1960 por Herbert Fritz Lempert e continuada pelo seu filho. Está anunciado um catálogo. [2] O Museu Colecção Berardo apresenta outra colecção de cartazes, a de Ernesto de Sousa. A exposição “your body is my body — o teu corpo é o meu corpo” é uma selecção de cerca de trezentos cartazes de arte e política, nacionais e estrangeiros, da Colecção de Cartazes Ernesto de Sousa, um acervo reunido entre 1933 e 1988. Foi já publicado um catálogo. [3] Museus de coleccionadores com exposições de colecções é uma combinação natural. É o que sucede no museu do meu coleccionador favorito, Calouste Sarkis Gulbenkian. Está a decorrer a exposição dedicada à Colecção Wentworth-Fitzwilliam, uma colecção particular inglesa, reunida ao longo de quase quatrocentos anos, com obras de Van Dyck e George Stubbs. Ao mesmo tempo, o Museu Gulbenkian explora a perspectiva sobre o coleccionismo de Calouste Gulbenkian a partir dos anos passados em Londres, que correspondem à génese da colecção, e a influência do gosto inglês no seu percurso de coleccionador. Foi publicado um catálogo para cada exposição. [4] Outra colecção exposta na Fundação Gulbenkian é de livros, a parte da biblioteca de D. Manuel II dedicada aos livros de Luís de Camões, das primeiras edições portuguesas e espanholas até às edições comemorativos do terceiro centenário da morte de Camões em 1880. E variadas traduções, desde o Séc. XVII. A Fundação da Casa de Bragança faz acompanhar a exposição de um excelente catálogo. [5] Já em Fevereiro o Museu Gulbenkian tinha exposto a biblioteca do bibliófilo José de Pina Martins (1920-2010). Ao longo da sua vida Pina Martins formou uma valiosa biblioteca especializada no Humanismo cristão do Renascimento, cada obra desempenhando um papel de relevo na História do pensamento ocidental, contribuindo para o desenvolvimento da ciência, da cultura e do conhecimento. Esta “Biblioteca de Estudos Humanísticos”, como Pina Martins a designava, foi recreada no espaço da exposição, incluindo quadros e gravuras que a acompanhavam na sua localização original. [6] A grande exposição do ano na Gulbenkian, no entanto, não foi de uma colecção; foi a dos livros de artista de Lourdes Castro. Mas foi esta a exposição que mais interessou os coleccionadores, admiradores de Lourdes Castro e de livros de artista. A Biblioteca de Arte da Gulbenkian contribuiu para o entusiasmo: para além de organizar a exposição, publicou um catálogo “comprovado” (nomenclatura da artista) e um novo livro de artista de Lourdes Castro, com duas tiragens especiais. [7] O Museu Nacional de Arte Antiga expõe 60 obras da colecção Masaveu, que vão do Séc. XV ao Séc. XX. A colecção Masaveu foi reunida por três gerações da família Masaveu, e presentemente pertence à Fundación María Cristina Masaveu Peterson, que integra a Corporación Masaveu, o grupo empresarial da família fundado em 1840. A fundação tem ainda uma colecção de arte contemporânea e desenvolve projectos artísticos que têm sido exibidos em Portugal, nomeadamente na Fundação EDP. Foi publicado um catálogo. [8] Um momento alto nas exposições de colecções de 2015 foi a apresentação da colecção de Julião Sarmento. Foram seleccionadas mais de 300 obras de cerca de 100 artistas da colecção particular de Julião Sarmento, reunidas ao longo de três décadas, e que testemunham a rede de contactos e de colaborações artísticas, de amizades e de afinidades do artista. A exposição foi apresentada em dois pólos, o Museu da Electricidade e a galeria da Fundação Carmona e Costa, em mais um exemplo de instituição de coleccionadores (Graça e Vítor Carmona e Costa) que deu a ver outra colecção. O catálogo reúne as obras expostas nos dois pólos. [9] A minha exposição favorita foi a do arquitecto Alberto Caetano no Museu do Chiado. As obras que integraram a exposição foram seleccionadas e montadas pelo próprio coleccionador em forma de diálogo. É claramente uma colecção que vive na casa do coleccionador: as peças são relativamente pequenas e são sobretudo quadros e esculturas que adivinhamos também como elementos de decoração. E não precisamos adivinhar muito: a casa do arquitecto coleccionador pode ser vista aqui. E foi publicado um catálogo. [10] A exposição da Colecção Alberto Caetano foi organizada pelos Amigos do Museu do Chiado, com o objectivo de trazer para o Museu colecções particulares de arte moderna e contemporânea de qualidade, sublinhando a especificidade do gosto de quem as reuniu. Esta primeira exposição dos Amigos do Museu foi apresentada pelos mesmos como uma homenagem aos coleccionadores que aceitam o desafio da partilha [11]. É também esse o objectivo do conjunto de artigos que me proponho escrever para a Artecapital nos próximos meses: desafiar coleccionadoras e coleccionadores a falarem sobre as suas colecções, as suas motivações, o seu impulso para coleccionar. A partilharem a motivação do seu amor. Mas é realmente de amor que falamos quando falamos com um/a coleccionador/a?
Psicopatologia do coleccionador? O coleccionador é qualificado alternadamente como um maníaco inofensivo, um especulador que explora os artistas e alimenta intermediários, um titular vaidoso que exibe os móveis dos avoengos. O coleccionador é, segundo alguns autores, na maior parte dos casos [12] um homem só, maníaco, monomaníaco, obcecado, mesmo obsessivo. Compulsão é a palavra que surge quando falamos do impulso para coleccionar. No entanto, este é um hábito repetitivo e excessivo socialmente aceite, sobretudo se dedicado a objectos com um alto valor simbólico e monetário, como livros, obras de arte e antiguidades. Coleccionar bens de prestígio transmite ao coleccionador a aura, o mana dos objectos. Confere-lhe status e são frequentes os casos de verdadeira ascensão social, e de aceitação em meios que de outra forma lhe estariam vedados. O que está em causa é muito mais do que a posse de grandes obras de arte ou objectos preciosos; é uma canonização, a entrada na grande cadeia dos proprietários anteriores, na mística da proveniência. Uma análise psicanalítica de obediência estrita dirá que a tendência para coleccionar radica na infância, deriva de uma memória sensível de privação, perda ou vulnerabilidade, e o subsequente anseio por um substituto, aliada a melancolia ou tendências depressivas. Para o coleccionador, os objectos têm um significado avassalador. Preferir os objectos às pessoas pode ser uma solução para lidar com emoções que ecoam velhos traumas e incertezas. A afeição fica agarrada a coisas, mais fidedignas que as pessoas. O prazer e a segurança inspirados pelos objectos da colecção são inefáveis e insubstituíveis. Para a criança, tal como para o adulto coleccionador, coleccionar representa a forma mais rudimentar de exercer controlo sobre o mundo exterior. No entanto, não faz muito sentido encarar o coleccionismo como um traço patológico, sobretudo num mundo dedicado à cultura do objecto. O comportamento do coleccionador corresponde ao de muitas pessoas consideradas normais. Ainda assim, o coleccionador não é um consumidor normal, pois a sua economia é baseada na despesa e não na acumulação. A economia dos verdadeiros coleccionadores coloca um problema: ela não é regulada pela utilidade ou pelo lucro, mas pela perda pura. Ao contrário do especulador, o coleccionador pratica uma virtude, elogiada no Renascimento, a magnificência, essa disposição de uma pessoa que gasta com brilho, sem fazer contas, para si mesma e para os outros. Mas essa virtude, no nosso mundo, tem um perfume de escândalo ou mesmo de subversão. Baudrillard é optimista, pois entende que, na prática, o coleccionador não se transforma num maníaco irremediável, precisamente porque colecciona objectos, o que o impede de regressar à abstracção total ou ao delírio psicológico. O objecto é um corpo material resistente que pertence simultaneamente a um reino mental controlado pelo sujeito, uma coisa cujo significado é regido apenas pelo sujeito. Coleccionar é uma actividade sublimatória mais do que recalcadora [13].
Dialéctica da conquista e da posse Não será tanto o fenómeno de coleccionar que é estranho para os não iniciados. Estranho é o espectáculo dado pelos coleccionadores, o seu envolvimento emocional na busca dos objectos, a sua excitação quando os encontram ou aflição quando os perdem. Para o coleccionador dedicado, “viciado”, a experiência de coleccionar não é simplesmente recreativa, é uma suspensão das exigências tantas vezes frustrantes do dia-a-dia. A presença dos objectos reduz, ao menos temporariamente, a tensão entre o “id” e o “ego”, entre o anseio interior e a representação externa. Muito do tempo e esforço do coleccionador é absorvido pela busca incessante. Uma aquisição nova gera excitação, expectativas ansiosas, emoção, mas também incerteza e indecisão. Como um amante, o coleccionador guarda ciosamente os seus bens, e como um amante pensa neles e fala deles em termos eróticos e narcisistas, como objectos de desejo. E a colecção pode ser um concreto motivo de inveja, se for valiosa. A maioria dos verdadeiros coleccionadores não tem em conta, ou como primeira preocupação, a faceta de investimento da sua actividade. Paradoxalmente, a maioria dos verdadeiros coleccionadores sonha com a glória por intermédio da sua colecção, com a glória do seu nome associado a esta, e com os valores astronómicos que a mesma ou os seus objectos poderão atingir pelo simples facto de a terem integrado; está sempre em causa o lucro, real ou imaginado. A colecção é, na sua génese, um acto deliberado e livre, de liberdade pura, de desejo puro. Ou seja, concretizada sob o constrangimento, a coacção tirânica do objecto. Pois não há ninguém menos livre que o coleccionador. O desejo é movimento na direcção de outra coisa, o objecto mais importante está sempre alhures, mais longe, é sempre aquele que falta. O destino da colecção é permanecer incompleta, e a essência do coleccionador é estar insatisfeito. Nenhum objecto satisfará inteiramente o desejo do coleccionador. Se isso acontece, se o coleccionador dá a sua colecção por acabada, tal significa que ela deixou de lhe agradar e de lhe importar, e por isso pode vendê-la ou dispersá-la. Ainda assim, coleccionar na era da reprodução técnica, coleccionar objectos produzidos em massa, permite ter o conjunto fechado, a série completa, permite ao coleccionador a alegria de reunir muitas constelações no seu universo.
Uma colecção é… Coleccionar é seleccionar, reunir e preservar objectos com um valor subjectivo. O objecto coleccionado está desprovido da sua função. O objecto estritamente utilitário tem um estatuto social. Mas o objecto puro e simples, desprovido de função, abstraído de qualquer contexto prático, tem um estatuto estritamente subjectivo. O seu destino é ser coleccionado; deixa de ser um tapete, uma mesa, uma bússola, um saco de museu, e passa a ser designado como um “objecto” ou uma “peça”. Quando o objecto deixa de ser definido pela sua função, o seu significado recai exclusivamente no sujeito. O resultado é todos os objectos numa colecção se tornarem equivalentes, graças ao processo de abstracção apaixonada a que chamamos posse. O coleccionador é o sujeito da colecção como um conjunto, como uma forma meditada, organizada e pensada. É o sujeito que realiza a operação misteriosa que transforma uma reunião, um amontoado de objectos, no conjunto chamado colecção, com poder e significado autónomos e próprios, uma alquimia prática que é uma demanda de sentido, do cerne da questão. No entanto, por a sua direcção ser inconsciente, pode aparecer como espontânea ou aleatória [14]. A colecção é uma pluralidade de objectos ligados uns aos outros (aberta ou secretamente) de forma organizada. A colecção pressupõe que alguém a concebeu, e exclui as reuniões espontâneas ou aleatórias de objectos. Acima e antes de tudo, pressupõe que alguém a quis. No meio da colecção, circulando entre os objectos da colecção, cimento subtil, está o desejo do sujeito pressuposto a que chamamos coleccionador. A tirania da colecção sobre o coleccionador tem o seu contraponto na vontade despótica do coleccionador. É este que decide o que integra a colecção, que admite e exclui. A colecção é um mundo ordenado, estruturado, sujeito às regras do coleccionador. Permite um controlo que este provavelmente não terá nos outros âmbitos da sua vida. O coleccionador controla os objectos, dispõe deles, arruma-os, cataloga-os, exibe-os. Na colecção, o sujeito vê e o objecto mostra. A colecção é um paradigma de perfeição, pois é um espaço onde a demanda apaixonada da posse pode instituir um discurso inconscientemente triunfante. A colecção é feita para ser vista. A colecção é um conjunto organizado de objectos que mostram, que se mostram, e que são mostrados. O coleccionador aprecia ser olhado na sua colecção. Esta reflecte o seu gosto, a sua cultura, o seu poderio económico, as suas relações, a sua engenhosidade; um dos maiores prazeres do coleccionador é explicar a outros coleccionadores como conseguiu a peça rara e magnífica que estes não encontraram antes dele ou que não conseguiram adquirir. Há coleccionadores que encaram a exibição da colecção como uma partilha e uma obrigação natural do coleccionador. Mas o coleccionador pode decidir não mostrar a sua colecção. Pode ser por pudor, por saber que a colecção o mostra nu. Ou por achar que todos os Outros são intrusos face ao seu prazer. Ou por recear os males causados pela inveja despertada pela sua maravilhosa colecção.
Um prazer solitário Coleccionar é uma questão pessoal, e normalmente solitária. Walter Benjamin, esse arquétipo do coleccionador, afirmou ser a posse a relação mais íntima que podemos ter com um objecto; aquele que possui vive no objecto. Os objectos são transfigurados na mente do coleccionador. O objecto ecoa emoções com raízes em antigas experiências afectivas de se ser único, em sensações de desejo realizado, no alívio da ansiedade e frustração da criança que se sente desprotegida e sozinha. Os objectos permitem ao coleccionador uma fuga mágica para um mundo remoto e privado. Como esta fuga representa uma experiência de triunfo na defesa contra a ansiedade e o medo da perda, o regresso a esse mundo deve ser repetido. Há uma comunicação silenciosa entre a peça e o coleccionador, que é sempre afectado por esta. Coleccionar é uma forma de preencher necessidades e ânsias. Querer e desejar possuir um objecto aponta para a necessidade inveterada e normalmente inconsciente de estar, literalmente, em contacto. Com objectos amados por perto, o coleccionador não teme estar sozinho. Os objectos assim santificados reenviam-nos para o início da Civilização, para fetiches e totens, para as relíquias de mártires e as imagens de santos da Igreja Católica. Ainda assim, a colecção supõe e constitui um modo de ligação social. Há uma colectivização da colecção, o coleccionador tem que procurar os seus objectos, encontrar outros coleccionadores. A colecção cria uma colectividade que se encontra e unifica à volta do objecto. Amizades e rivalidades. Claro que um coleccionador não pode ser verdadeiramente amigo de outrem que tem uma colecção semelhante: tarde ou cedo vão ambos querer o mesmo objecto.
O fim O apogeu da colecção é o catálogo. O objecto é simultaneamente “personalizável” e catalogável. Há um toque de exclusividade em recolher, ordenar e classificar; o objecto surge assim como o espelho ideal pois as imagens que reflecte não são as reais, são as desejadas. O catálogo é uma prova, e pode ser a única, da existência da colecção, ou seja, da existência do coleccionador. Sem um catálogo, o coleccionador teme a dispersão da colecção e a sua própria queda no esquecimento. O catálogo garante a sobrevivência da colecção como conjunto, organismo e personalidade. É a garantia do coleccionador face à morte. Uma das grandes preocupações do coleccionador é o destino da colecção quando ela ou ele desaparecerem. Alguns contam com os seus descendentes para a manutenção e mesmo o crescimento da colecção; a colecção Lempert é continuada pelo filho do fundador, a Fundação María Cristina Masaveu Peterson prossegue a tradição coleccionadora da família, Lady Juliet Tadgell tenta recriar a colecção do seus antepassados Wentworth-Fitzwilliam, só para citar as exposições de 2015 que iniciam este artigo. Mas muitos outros sabem que tal não vai acontecer. É comum o ódio da família à colecção, pois cônjuge e filhos foram privados, emocional e materialmente, do apoio e companhia do seu ente querido que lhes preferiu os quadros, ou os livros, ou as cintas de charuto. Se os objectos coleccionados são valiosos, o seu destino é a venda. Se o não são, ou se quem os herda não tem noção do seu valor, o destino pode ser o lixo. Por isso o coleccionador que prepara a sua morte antecipa a colocação a bom recato da colecção: cria uma fundação, doa a uma biblioteca ou a um museu, ou encarrega-se ele próprio da venda da colecção, no seu todo ou por lotes ou objectos isolados. Mas antes faz o catálogo, um registo, como testemunhas das glórias passadas e garantes da eternidade.
O projecto A colecção é autobiográfica e confessional. É a obra de arte do coleccionador que não é artista, ou outra obra de arte do coleccionador artista. É uma promessa de amor que concentra todas as ambições e esperanças: beleza, identidade, distinção, posse, estatuto social, conquista, exibição, narcisismo, busca e realização. E a Morte como música de fundo. Acredito que os grandes motivos para coleccionar sejam o amor, a vontade de conhecimento, a identidade e a imortalidade. E cada coleccionadora e coleccionador são-no de formas diferentes e por razões conscientes e inconscientes que podemos apenas intuir. O meu projecto com esta série de artigos é dar voz a coleccionadoras e coleccionadores que aceitem mostrar as suas colecções, mesmo sabendo que revelam um pouco ou muito da sua alma. Atendendo ao campo de interesse da Artecapital, serão colecções de arte contemporânea nas suas múltiplas facetas. Já agora: em Janeiro de 2015 terminou uma exposição de parte da minha própria colecção, uma exposição dedicada à editora italiana Pulcinoelefante e ao seu mentor, Alberto Casiraghy, na Biblioteca Nacional de Portugal. [15]
Notas
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