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MUSEUS, DESAFIOS E CRISE (II)AUGUSTO M. SEABRA2012-06-12O Museu Guggenheim de Bilbau Ă© o paradigma do impacto de um projecto arquitectĂłnico, sobrepondo o edifĂcio em si Ă possĂvel importĂąncia da apresentação de obras e de exposiçÔes, que supostamente sĂŁo a finalidade do museu, e teve as maiores consequĂȘncias enquanto capital simbĂłlico e gerador de fluxos econĂłmicos. âA ideia de museu como espaço de recolhimento dedicado Ă contemplação de obras de arte perdeu o seu fundamento na realidade. Os museus constroem-se agora para regenerar o espaço urbano, promover a indĂșstria turĂstica e conseguir crĂ©ditos polĂticos e de imagem com a operaçãoâ, nos termos da anĂĄlise de Iñaki Esteban em El efecto Guggenheim. HĂĄ um novo e âenorme espaço-espectĂĄculoâ, que âtende a colocar a arquitectura, em forma de anĂșncio, em contacto com um pĂșblico projectado como consumidor em massaâ, escreveu Hal Foster no seu ensaio sobre Frank Gehry, âO Construtorâ (incluĂdo em Design and Crime e tambĂ©m no volume Museumania â Museus de Hoje, Modelos de Ontem da Colecção PĂșblico Serralves) - âEm vez de âfĂłruns de empenho cĂvicoâ, os seus [de Gehry] centros culturais surgem como espaços para assistir ao grande espectĂĄculo, ao deslumbramento turĂsticoâ e assim ââo singular impacto econĂłmico e cultural apĂłs a sua inauguração em Outubro de 1997â, dizem-nos a propĂłsito do âefeito Bilbauâ, âdesencadeou uma procura desenfreada de obras semelhantes por arquitectos de todo o mundoââ. Com esta mudança de escala, e de impactos nĂŁo apenas culturais mas tambĂ©m sociolĂłgicos, econĂłmicos e simbĂłlicos, ocorreram mudanças de modos e desafios de gestĂŁo. âOs problemas de financiamento e de gestĂŁo econĂłmica tornaram-se rapidamente de uma importĂąncia primordial, a ponto de suscitaram questĂ”es fundamentais no respeitante Ă Ă©tica e a finalidade dos museusâ, assinalou Philippe Durey, antigo director da rede francesa de museus. SĂŁo questĂ”es notavelmente analisadas por Jean-Michel Tobelem em Le nouvel Ăąge des musĂ©es â Les institutions culturelles au dĂ©fi de la gestion. Comparando a estrutura dos museus e a das empresas (e assim colocando a questĂŁo dos museus como âempresa culturalâ ou âorganização cultural de mercadoâ), ele caracteriza diferentes idades ou perĂodos, sublinhando no quadro mais recente factos como a âinternacionalizaçãoâ e a consagração de âmarcasâ de museus, com âas aproximaçÔes entre diferentes instituiçÔes sob a forma de alianças estratĂ©gicas ou de uma expansĂŁo internacionalâ, assinalando nomeadamente dois factos salientes, a aliança entre o MoMA e a Tate, anunciada em Maio de 2000, com vista Ă constituição de um sĂtio informĂĄtico conjunto de vocação comercial, e a irresistĂvel ascensĂŁo do Gugenheim â jĂĄ nĂŁo o museu especĂfico de Nova Iorque, obra de Frank Lloyd Wright, mas o que poderemos considerar âmarcaâ ou âfranchisingâ, o âMcGuggenheimâ escreve Tobelem, por paralelo com os McDonalds â com a gestĂŁo de Thomas Krens. Na sequĂȘncia da anĂĄlise que desenvolvi nos textos sobre âA Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Digitalâ, torna-se patente que hoje a noção, e a quantificação, dos âvisitantesâ de um museu nĂŁo diz apenas respeito a presenças fĂsicas mas tambĂ©m virtuais, estas inclusive com as possibilidades nĂŁo sĂł de acessibilidade, de compra electrĂłnica de entradas, mas mesmo de venda de produtos. Quanto Ă filosofia de âmanagementâ â pois que o termo Ă© mesmo esse, o de uma empresa, cultural â no caso do Guggenheim hĂĄ uma definição lapidar de Krens: âImaginem um museu em perpĂ©tuo movimento. O Guggenheim nĂŁo Ă© um local Ă© um ponto de vista [sublinhado meu]. O Guggenheim Ă© tudo o que vocĂȘs tĂȘm vontade de imaginar. O Guggenheim Ă© o agente da cultura para todosâ. Este processo, caracterĂstico da presente era do capitalismo globalizado, implica tambĂ©m novos e complexos problemas na relação entre os museus e o mercado, em particular o da arte contemporĂąnea, nomeadamente com a irresistĂvel ascensĂŁo de novos âpartnersâ, como sobretudo a China e as petromonarquias do Golfo, de Abu Dhabi ao Qatar. âĂ tarefa [ainda] dos museus designar o que Ă© arte e o que nĂŁo Ă©. Os agentes econĂłmicos nĂŁo tĂȘm, com efeito, em grau como o dos agentes culturais, o poder de conferir o estatuto artĂstico a formas de arte concebidas para nĂŁo serem ârecuperadasâ pelo mercadoâ, escreveu Raymond Moulin em Lâartiste, lâinstitution et le marche, no capĂtulo votado a âO mercado e o museuâ. SĂł que, numa dialĂ©tica de extrema complexidade, o mercado, galerias, feiras, leiloeiras, colecionadores e especuladores, tudo ârecuperamâ, forçando os museus a participar na lĂłgica dos mercados para as suas prĂłprias aquisiçÔes. âA dificuldade maior reside no facto que o valor estĂ©tico e os preços nĂŁo sĂŁo independentes: se o preço Ă© função de um presumido valor artĂstico, a estimativa do valor estĂ©tico Ă© [tambĂ©m], ao menos parcialmente, função do preço. Numa dialĂ©tica confusa, o juĂzo estĂ©tico torna-se o pretexto de uma operação comercial e uma operação comercial bem-sucedida toma lugar de juĂzo estĂ©tico. O estatuto que este ou aquele artista tem na rede internacional de exposiçÔes e de coleçÔes nĂŁo Ă© independente da galeria que o representa e do capital financeiro e cultural de que dispĂ”e: as instituiçÔes pĂșblicas nĂŁo podem nĂŁo estar advertidas e solidĂĄrias com as tendĂȘncias do mercadoâ, assinala Moulin. Para retomar o mote que foi o do Dia Internacional dos Museus deste ano, âMuseus num Mundo em Mudança: novos desafios, novas inspiraçÔesâ, criam-se assim, num âmundo em mudançaâ, ânovos desafiosâ de gestĂŁo e programação, novos constrangimentos tambĂ©m, em que os museus tĂȘm que preservar a sua autonomia e ter em conta as tais âquestĂ”es fundamentais no respeitante Ă [sua] Ă©tica e a finalidadeâ, assinaladas por Philippe Durey, mas nĂŁo podem tambĂ©m alhear-se do mercado, das galerias e das feiras. E assim os museus tĂȘm tambĂ©m de procurar, alĂ©m dos subsĂdios pĂșblicos, outras formas de financiamento, de mecenas e âsponsorsâ, perante os quais, genericamente que seja, nĂŁo podem deixar de apresentar as suas contas e nĂveis de âsucessoâ. E os termos de todas estas equaçÔes, numa rede da arte globalizada, constituem tremendos desafios. Augusto M. Seabra |