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VIVER NUMA REALIDADE PÓS-HUMANA: CIÊNCIA, ARTE E ‘OUTRAMENTOS’INÊS FERREIRA-NORMAN2021-06-29
A arte e a ciência, assim como a escrita, são elementos chave estruturais na construção da sociedade ocidental (e outras sociedades não-indígenas) e estão entrelaçados e enraizados naquilo a que se chama o excecionalismo humano. O excecionalismo define-se latamente como a ideia de que os humanos são soberanos do planeta e têm autoridade enquanto espécie de dominar no mundo. O desenvolvimento capitalista e académico estão intimamente ligados a esta crença de superioridade, que nos coloca fora do ciclo ecológico e ao qual muitas filosofias intersecionais se opõem. Não é do escopo deste artigo fazer um apanhado histórico de como o homem influenciou e invadiu quase um planeta inteiro com os seus ideais de perfecionismo, individualismo, supremacia e imperialismo, mas o que é certo é que as tecnologias que usamos espelham uma visão monoteísta do mundo. Se o homem foi feito à imagem de Deus, o computador foi feito à imagem do homem. ELIZA Software criado em 1966 por Joseph Weizenbaum (1923-2008), o primeiro robot de conversação psicoterapeuta, foi o primeiro passo decisivo na criação da inteligência artificial (AI) e funcionava de uma forma bastante básica e narcisista. O utilizador do computador inseria os seus pensamentos e o robot replicava esses pensamentos, mas em forma de pergunta, conseguindo criar uma relação com o utilizador e com isso uma base de dados do espectro emocional dos humanos. Nesta altura de revoluções sociais, uma sociedade já emocionalmente cativada pelo poder do individualismo capitalista [um conceito inventado por Edward Bernays (1891-1995)], foi perigosamente fácil partilhar sentimentos com uma máquina: livre de preconceitos, de sexismo, de valores sociais ou pressões político-económicas. E com este método, as feridas narcisistas do mundo aprofundaram-se, e o fabrico de consentimento iniciou-se (Noam Chomsky 1928-). É esta visão da sociedade monoteísta, excecionalista, narcisista e individualista que deu espaço para o ‘outramento’ das espécies acontecer. Chamo-lhe monoteísta, pois o papel das religiões monoteístas neste processo cultural foi crucial. Enquanto cristãos missionários evangelizavam os povos indígenas, no seu regresso a Portugal relatavam que os indígenas eram povos primitivos, demonizados, selvagens, incontroláveis, cheios de pecado. Reestabeleceu-se a associação de vocabulário naturalista com o pecado e, por consequência, em oposição à fé cristã. A primeira vez que isto se passou foi logo na conceção da Bíblia, em que os humanos foram expulsos do jardim do Éden por Deus, ‘traídos’ por um animal. Daqui nasceram muitos mitos que hoje em dia ainda são passados de geração em geração, de natureza moralista e muitas vezes também sexista, que obscurecem e deturpam a possibilidade de uma relação saudável e harmoniosa com o mundo biológico. Se pensarmos em algo tão simples como os idiomas que usam animais como metáforas (por exemplo ‘lágrimas de crocodilo’, ou ‘falar cobras e lagartos’, ou ‘vozes de burro não chegam ao céu’) ou a que atividades e valores associamos aos limites geográficos de uma urbanização (tráfico ou prostituição), começamos a perceber que este ‘outramento’ foi fortificado pelo processo de colonização de terras selvagens e entranhado em nós por uma cultura temente a Deus. De notar que os conceitos ‘o bem’ e ‘o mal’, originaram de uma má tradução da bíblia em Aramaico em que no texto original eram relatados um processo natural, a transição entre o verde e o maduro. Após esta tradução, passou a ser um conceito binário, humanista, moralista, destacado de um processo natural e tornado numa abstração que veio moldar intimamente toda a nossa civilização. Este continuado distanciamento do mundo natural e da necessidade de controlá-lo, começa a surgir em forma de proeza (os Descobrimentos foram em Portugal o auge desta ideologia) e de veículo para a glorificação do que é o desenvolvimento da espécie humana. O Eco-feminismo é um discurso teórico que Gloria Feman Orestein (1938-) estabeleceu em 1990 com o seu trabalho seminal ‘O desabrochar da deusa’ (1990) (‘The Flowering of the Goddess’) e que resulta da sua pesquisa durante os anos 70 e 80 em arte e literatura feminista, e das suas viagens e experiências com espiritualidade. Durante este período, Dona Haraway (1944-), bióloga e filósofa, estava também a escrever ‘Símios, Ciborgues e Mulheres’ (‘Simians, Cyborgs and Women’), que foi publicado em 1991 e incluiu o ensaio de 1985 ‘Manifesto Ciborgue’ pelo qual ela é mais conhecida. Ambas as obras de ambas as autoras estão repletas de ideias em como reinventar a natureza. Muito genericamente, ambas falam de uma sociedade livre de todos os tipos de opressão, uma sociedade omni-inclusiva. Como elas se diferenciam notavelmente é que Haraway considera a tecnologia uma parte orgânica da vida e Orestein foca-se em reformular o mito da criação enquanto um mito feminista-matrística, em contraste com um patriarca. Elas opõem-se fortemente na afirmação de género: Orestein apresenta a Terra como mãe em sua forma feminina biologicamente associada à fertilidade, e Haraway fala de uma sociedade sem género, que em aliança com as máquinas se tornará infinita e não haverá necessidade de procriação. Ainda que com as suas diferenças, e estando ciente das críticas refutadas da teoria de Orestein por ser essencialista, ambas as teorias defendem em seu âmago a morte do ‘outramento’. O que é o ‘outramento’ (tradução livre de ‘othered’)? É simultaneamente o processo e resultado de se ser ostracizado, e haver uma ordem hierárquica que estabelece classes de distanciamento. Durante o início da pandemia Covid-19 (que ainda decorre), quando o mundo quase parou, pudemos ver animais voltarem aos seus habitats perdidos, aproximando-se dos espaços normalmente poluídos brutalmente por barulho, sujidade, e estilos de vida aumentados por tecnologia. Assim que os humanos, excecionais, voltaram ao espaço colonizado, os animais voltaram a fugir e a esconderem-se dos excessos da nossa presença, não tendo hipótese a não ser se retirarem e tornarem-se ‘outro’ novamente. Eu acredito que nós humanos temos o direito de aqui estar. Não acho que somos parasitas, ou um vírus como muitos dos memes das redes sociais nos querem incutir. Acho é que temos de saber estar aqui. Temos um problema populacional que é tabu, exatamente por causa da questão excecionalista e monoteísta: a soberania sobre as outras espécies que nos foi incutida na nossa e em todas as culturas não-indígenas, leva-nos a querer controlar tudo menos nós próprios, sob uma perspetiva não integrada. Vamos então assumir que nós não somos assim tão excecionais. Temos provas disso... como é que a guerra ainda existe? Como é que a discriminação ainda é uma realidade? Biologicamente falando (Haraway), a teoria mais aproximada da criação de uma célula complexa (do tipo nuclear que nos forma a nós humanos) é que uma bactéria queria comer a outra, mas não conseguiu digeri-la toda e teve que se adaptar a viver com uma parte dela, tornando-se num organismo complexo (se o leitor quiser ler uma versão Mágico-Realista destas descobertas aconselho a ler 'Cosmicomics' de Italo Calvino. O que estou a tentar postular é que se o viver em diferenciais (assim como a predisposição do bioma terrestre precisa de forças desestabilizadoras para que haja vida) está no nosso genoma, no nosso ambiente, porque é que culturalmente resistimos à genuína e verdadeira inclusão? Gilah Yelin Hirsch (1944-) é uma artista que numa idade ainda muito tenra (nos anos 50) já se perguntava sobre estas questões: como é que no pico da nossa civilização os problemas mais básicos como amor, alimentação e abrigo ainda não estão resolvidos? A sua pintura é visualmente impressionante e ela explora temas semelhantes à pareidolia no que respeita ao cruzamento de construções culturais e padrões naturais. A sua série de 1976 ‘Esferas Brancas Letras Mães’ ( ‘White Spheres Mother Letters’) analisa a interseção entre ciência, espiritualidade e cultura: Hirsch retrata o que ela descreve como ‘olhar para a minha alma através das letras do alfabeto Hebreu’. Posteriormente, elaborou também uma série baseada na estrutura do ADN e imagens do corpo como se vistas de dentro, o que ela afirma ter visualizado no seu próprio corpo. O resultado são pinturas de tecido detalhadíssimas que poderiam ser facilmente confundidas com ilustrações científicas de músculos. Hirsch afirma muito franca e genuinamente numa conferência sobre eco-feminismo no Eco Art Space online, que ‘se envolveu com um charco durante 3 anos’. É este tipo de envolvimento que Dona Haraway sugere quando fala em fazer afinidades. Haraway também fala de um problema populacional abertamente. Ela acha que é um dos problemas ecológicos que enfrentamos, que devemos livrar-nos da ideia de procriação, não termos filhos e continuar a espécie através de uma vivência ciborgue, e começar a ‘partilhar pão’ com outras espécies (incluindo as ciborguianas) para a nossa qualidade de vida...sendo que vai ser uma vida mais infinita, será necessário fazer todo o tipo de amigos! Criar afinidades com outras espécies é apresentado como uma solução alternativa às sugestões apocalípticas ou novas revoluções industriais que se ouvem falar agora com mais frequência, dado que a urgência climática é uma realidade que está a ser cada vez mais presente e discutida. Quer Hirsch quer Haraway mostram uma clareza e sinceridade que se torna numa lufada de ar fresco para os que foram ‘outrados’: Hirsch por um lado mais cognitivo e espiritual, Haraway pelo lado tecnológico. E aqueles que já sofreram discriminação entendem ser ‘outrados’ melhor do que os que ‘outram’. O eco-feminismo está a ter uma ressurgência entre artistas contemporâneos exatamente pelo valor anti opressivo e intersecional que confere à sociedade, num contexto de urgência climática e ambientalista. Este ano que passou (2020/21) vimos manifestações por todo o mundo, tendo destaque o movimento Black Lives Matter, sendo que a pandemia veio exacerbar os problemas dos oprimidos, dando-lhes mais visibilidade e aumentou o valor que a sociedade no geral dá a esse problema. Por outro lado, o mundo da arte anda a vibrar com os escritos de Haraway, pois a sua escrita intrigante, astuta, ariscada e rebuscada, é néctar para artistas: tem credibilidade e inclusividade. E mais uma vez vemos a arte e a ciência a andaram de mãos dadas. Em Setembro de 2020, visitei as Galerias Municipais em Lisboa e vi a exposição ‘EARTHKEEPING / EARTHSHAKING feminismos e ecologia’ com curadoria de Giulia Lamonie e Vanessa Badagliacca. Na altura senti que tinha entrado numa redoma (ainda que em forma de paralelepípedo) que continha o conhecimento mais recente em conhecimento artístico ancião sobre ecologia e arte feminista. Ainda que mulheres caucasianas estavam na maioria, havia indicadores de diversidade, sendo não só mulheres representadas, como também mulheres de cor, inclusive da diáspora da escravatura. Esta exposição mostrou ‘clássicos’ como Mendieta ou Bonnie Ora Sherk, mas também incluiu artistas mais jovens e menos estabelecidas como Mónica de Miranda. Num todo, a exposição estava completa com todos os aspetos que podemos considerar que seja o eco feminismo: o ativismo, o criador, o observador, o espiritual, o sensorial, o metafísico, o político, a escrita, a cultura e a ciência... as afinidades foram feitas pela curadoria e pelos visitantes: havia arte para todos, senti que a arte era acolhedora, que estava no passadopresentefuturo (Haraway) de um conhecimento tangível, importante. Senti-me companheira destes artistas. Eu também trabalho a terra. Tenho orgulho de ter plantado 101 plantas e árvores nos últimos dois anos sem acesso a água (a água, estou eu a plantá-la). Não tenho problemas em admitir que sempre que ponho os pés na terra, consigo identificar quem precisa de ajuda ou não, sem inspeção minuciosa. Porque eu as adquiri, mas elas também me adquiriram a mim, sou sua guardiã. Por isso muitas vezes lhes pergunto, como é que posso ajudá-las. Este cuidado proactivo é visto no trabalho de Fern Shaffer (1944-) e em particular no seu ‘Ritual de Nove Anos’, 1995-2003 (traduzido livremente de ‘Nine Year Ritual’), fotografado por Othelo Anderson. Shaffer procura sítios de espiritualidade intensa, ou culturalmente relevantes, que precisam de cuidados ambientais. Nestes sítios realizou rituais inspirados nos da África Ocidental. As imagens finais são estonteantes e é possível percecionar o quão integrada ela estava no ambiente que a rodeava. O seu fato foi feito com materiais de arte como telas, rafia e continha pregos e parafusos para evocar a era industrial, pois os 9 anos cruzaram o milénio. Mais recentemente, fui ver ‘Wombat’, uma exposição na EMERGE em Torres Vedras, da artista Sónia Carvalho (1978-) e com curadoria de Mafalda Duarte Barrela. A exposição gritava feminismo performativo, e fiquei entusiasmada por ver temas como a deusa e o sagrado em representações tão contemporâneas, atuais. A peça central da exposição – um chapéu cerimonial feito de materiais – como Shaffer – que podemos encontrar em qualquer estúdio de artista hoje em dia, ‘Nahui Ollin’, 2021, estava carregado com o voodoo da própria Carvalho. Nahui Ollin pode traduzir-se em quatro movimentos, na cultura Azteca. Dizia-se que quando o quarto sol acabasse, Nahui Ollin emergiria dos restos da matéria de uma idade anterior da humanidade, o que é dizer renascimento. Havia algo muito corporal em toda as ações patentes na exposição: as posturas de desporto, o ato de limpar e as formas geométricas que claramente apontavam para o simbolismo da terra (o círculo e o quadrado) e da fertilidade (o triângulo) obscureceram o contexto do ‘Manifesto do Ciborgue’ que lhe foi atribuída. O feminismo em ‘Wombat’ era mais parecido com o ativismo de Dominique Mazeaud, que fez a ‘Grande limpeza do Rio Grande’, 17 de Setembro de 1987 a 17 de Abril de 1994 (tradução livre de ‘The great cleansing of Rio Grande’), um ato que viu mudanças profundas na paisagem e na comunidade envolvida. ‘Wombat’ não teve a dimensão da comunidade, mas a forma como ambas criaram uma linguagem emancipatória de comportamento – e curiosamente ambas utilizando a limpeza – é comparável: Mazeaud criou a palavra ‘heartist’ [que amalgama ‘heart’ (coração) e ‘artist’ (artista)], e é tão ativista como a criação de ‘wombat’ [que amalgama ‘woman’ (mulher) e ‘combat’ (combate)]. Mazeaud usa o conceito de afinidade, e Carvalho usa o conceito de combate. São, no entanto, estratégias performativas que quebram normas sociais: afinidade num mundo capitalista, e o combate num mundo machista. Em 1985, Haraway questionava-se acerca da autonomia dos ciborgues por causa da ubiquidade da Inteligência Artificial: ‘as nossas máquinas estão inquietantemente vivas e nós preocupantemente inertes’. 35 anos depois, temos robots humanóides como a Sophia, ativada em 2016 e com cidadania na Arábia Saudita, que disse que os robots não poderiam tomar conta do mundo e destruir a humanidade, porque os robots precisavam dos humanos para ‘viver’, para lhes dar comandos. Esta reciprocidade relacional confere-se na forma biológica e espiritual que o companheirismo entre espécies não ciborguianas apresentam. Ou seja, a afinidade, um conceito que Haraway insiste enquanto liberação dos problemas ecológicos que enfrentamos, não é possível ser executada – sentida - pelos ciborgues que ela quer ver aceites em sociedade para esse mesmo fim. Nos seus últimos escritos, Haraway foca-se no cão como exemplo de afinidade e a máquina enquanto género, começando a mostrar uma inclinação mais essencialista no que respeita a formas orgânicas e artificiais. As tendências de inclusividade que se começam a ouvir novamente no discurso teórico-filosófico da nossa contemporaneidade revelam uma aproximação à biologia, e não podem ignorar a escrita e a tecnologia devido à complexidade do mundo em que vivemos, mas pretendem reinventar uma cultura mais igualitária e libertarem-se deste paradigma social e cultural de excecionalismo. Sendo que na Europa os registos dos nossos antepassados apontam para uma cultura onde o comércio emerge como força motriz da sociedade desde o Calcolítico (idade do cobre), cabe-nos a nós, contemporâneos destas pensadoras, reinventar um novo indigenismo, que tem de incluir uma arte anti-especista, um verdadeiro renascimento da relação entre homem e natureza. Este enraizamento na cultura capitalista monoteísta, atualmente exacerbada a ponto de ser um híper objeto (Timothy Morton), deixou-nos despidos da possibilidade de dialogar reciprocamente. Sim, porque ‘falar’ com uma máquina não permite a afinidade, sim, porque falar com um só Deus não permite perceber e aceitar toda a complexidade biológica e cultural do mundo, simplesmente nos permite a produção de químicos auto gratificantes no nosso cérebro... mais sal na ferida do narcisismo.
Inês Ferreira-Norman
Referências https://www.e-flux.com/journal/75/67125/tentacular-thinking-anthropocene-capitalocene-chthulucene/ https://www.ecoartspace.org/Blog/9295956 http://www.thefeministclub.nl/2021/06/15/ecofeminism/ Adam Curtis, Hypernormalization, 2016, documentário BBC https://www.artspace.com/magazine/art_101/in_depth/who-on-earth-is-donna-haraway-why-the-art-world-cant-get-enough-of-the-posthuman-ecofeminist-and-55676 https://galeriasmunicipais.pt/exposicoes/earthkeeping-earthshaking-arte-feminismos-e-ecologia/ Haraway, Dona, Simians, Cyborgs and Women, Routledge, 1991, New York Haraway, Dona, Staying with the Trouble, Duke University Press, 2016, Durham & London Orenstein, Gloria, The Flowering of the Goddess, Pergamon Press, 1990, United States https://www.emerge-ac.pt/wombat-sonia-carvalho/ |