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36º PANORAMA DA ARTE BRASILEIRAHENRIQUE MENEZES2019-11-12
Minha tarefa já impõe, de antemão, o desafio de guiar um leitor estrangeiro através dessa mostra que nasce de uma simbologia carregada de negativos vícios nacionais. Nesse percurso, revela-se uma dupla complexidade: a visita à exposição bienal patente no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) é reveladora pois não apenas sugere a desconstrução linguística do conceito sertão (e a consequente reconstrução de seus sentidos) mas também apresenta uma produção contemporânea realizada fora dos circuitos institucionais e mercadológicos estabelecidos. É essa infiltração que torna o 36o Panorama da Arte Brasileira ricamente exótico mesmo a olhares íntimos à arte cá produzida. A etimologia de sertão é incerta e remete a distintas origens: na língua portuguesa, há registros de sua existência desde o século XV, acompanhando os primeiros colonizadores que trouxeram consigo o termo, empregando-o para designar o território vasto e interior, todo aquele que não podia ser percebido da costa. Avançando ao início do século XX, sertão passou a referir-se, sobretudo, à região Nordeste de clima semiárido, ilustrada por sua vegetação de caatinga em oposição ao litoral. Reforça-se o projeto de um sítio seco, primitivo, forjando-se a condição de submissão e atraso – imagens que até hoje seguem vivas na cultura brasileira. Ao ampliar a semântica cristalizada, o Panorama apresenta o sertão como um modo de pensar e de agir, ao que a curadora Júlia Rebouças nomeia arte-sertão: paira uma atmosfera de experimentação e resistência – dois termos centrais para a compreensão das decisões que levaram à lista dos 29 artistas e colectivos reunidos na mostra. O êxito primeiro do comissariado é a fuga de escolhas fáceis que levariam à preponderância de artistas já notórios: percebe-se, ao contrário, a amálgama de nomes emergentes na cena nacional – a exemplo de Ana Vaz, Mabe Bethônico, Paul Setúbal – com produções contemporâneas oriundas de cidades da Bahia e do Piauí, do extremo sul do país ao interior do Pernambuco, do Distrito Federal ao norte do Pará. Nesta edição que traz os mais claros contornos políticos de seus últimos 10 anos (precedida por temas como uma reflexão sobre a arquitetura ou uma ode aos minerais), somam-se obras concebidas a partir de memórias de luta, resgates de feridas históricas e conjecturas sobre um futuro consciente das identidades até então veladas. Dos 29 artistas convidados para a mostra, 22 deles nasceram nos anos 1980 e 1990: uma geração que agora chega ao MAM trazendo referências revigoradas, ao espelho do desenvolvimento social nas primeiras décadas do século XXI no país. O catálogo acurado que acompanha a exposição elenca textos fundadores da cultura sertão, como Guimarães Rosa e Euclides da Cunha (Grande Sertão: Veredas e Os Sertões, respectivamente). Todavia, são as vozes outrora caladas que dão o tom: vemos uma geração que lê Viveiros de Castro e Conceição Evaristo, Grada Kilomba (que apenas em 2019 é lançada em Portugal e no Brasil) bem como Virginie Despentes. Abrindo a mostra, Gê Viana (n. 1986) apresenta uma fotoperformance instalativa na qual encena um capelobo – personagem mítico, mistura de homem com animal –, figura que alude à origem e à identidade nacional: o ponto de partida é a pergunta da artista à sua avó sobre a presença de indígenas na família. A resposta rememora violências não consentidas, rastros da miscigenação que marca a genealogia do país. Dalton Paula (n. 1982), igualmente revisitando episódios históricos, agora envolvendo o corpo negro, expõe a obra Bamburrô (2019), composta por mais de quarentas bateias – ferramentas arredondadas utilizadas nos garimpos de ouro com a função de separar o metal nobre da terra. Após serem reunidos pelo artista, esses artefatos recebem pinturas recobertas por folhas de ouro ilustrando instrumentos musicais: se a memória mater do objeto é o trabalho penoso, a transmutação em música está longe de remeter ao lúdico: faz-nos refletir sobre a relação entre o ouro-e-a-escória, o que persiste e o desejo de desfazer-se – seja em relação à diáspora africana, aos corpos avizinhados à marginalidade ou aos crimes ambientais derivados do ainda ativo extrativismo. Randolpho Lamonier (n. 1988) evoca memórias mais recentes em “A casa de dois andares sonhada por minha mãe no início dos anos 90” (2019), obra têxtil de grande formato, suspensa no espaço expositivo, composta por retalhos e bordados formando a frase que nomeia o trabalho: a estética naïf amplia a tocante mensagem de otimismo fracassado de Randolpho (ou do Brasil?). A obra de Rosa Luz (n. 1995), projeção de um videoclipe interpretado pela artista, traz um rap versando sobre raça, classe e gênero – a identidade transsexual de Rosa reverbera em trechos como //pois tentaram me calar, mas no jogo sei lutar// e //a nossa existência tá pra além da tua TV//. As histórias de travestis e pessoas não binárias é igualmente o tema dos trabalhos de Vulcanica Pokaropa (n. 1993): Desaquenda ( 2016-19, disponível online) é uma sequência de entrevistas com profissionais transgêneros sobre teatro e performance, política, vida e arte. O 36o Panorama evolui como um cortejo, ritmado, em uma profusão de rostos, tipos, cores e timbres. A mostra tem seu ponto baixo no desenho museográfico truncado, na profusão de plintos e paredes temporárias, mas que em nada reduz a grandiosidade (e urgência) do já citado modo de pensar e de agir sertão. Evitando megalomanias de grandes eventos do gênero, marca também a paridade numérica entre homens e mulheres, negros e brancos, além de incluir dois coletivos indígenas e duas artistas transgênero. Em uma edição histórica, situa-se nessa fratura que leva da ilustração à ação, do ato narrativo ao gesto protesto.
Henrique Menezes
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36º PANORAMA DA ARTE BRASILEIRA - COLECTIVA |