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FOMOS AO MUSEU REAL DE BELAS ARTES DE ANTUÉRPIAMANUELA HARGREAVES2023-10-13
Encerrado durante onze anos, o KMSKA reabriu recentemente, esventrado no seu interior para dar lugar a uma arquitetura contemporânea, longe daquela que os dois arquitetos tinham em mente em finais do século XIX, quando a cidade de Antuérpia fez a encomenda. Nessa altura o edifício original e amplo foi adaptado aos grandes formatos de três pintores gloriosos de Antuérpia: Rubens, Van Dyck e Jordaens. Esta amplidão original, objeto de uma fragmentação progressiva dos espaços ao longo do século XX, guiou o trabalho de restauro e renovação do edifício. Invisível do exterior, a superfície de quatro pátios originais foi desmantelada, acrescentado um vasto espaço suplementar, criando uma espécie de museu vertical com um grande fosso central, que dá uma visão algo abrupta do que se passa nos patamares inferiores. Nos últimos pisos, redes foram postas para prevenção de quedas acidentais ou não. A coleção é imensa, sobretudo dos Países Baixos setentrionais e meridionais, e estende-se pela Idade Média tardia, Renascimento, Idade Moderna e algumas obras Contemporâneas. O período medieval já tardio corresponde a um momento de experimentação artística intenso, aqui representado por uma série de obras “major” de Van der Weiden (o tríptico “Os sete sacramentos”), Van Eyck (“Madona na fonte”), Hans Memling (um impressionante “Calvário”) e a mais enigmática e perturbadora “Madona rodeada de serafins e querubins” de Jean Fouquet. Originalmente fazendo parte de um díptico realizado para a capela pessoal de Étienne Chevalier, os dois painéis foram separados no século XVIII, a parte esquerda (conservada na Gemäldegalerie de Berlim), revela a arte do retrato, o mecenas e Saint Étienne, a parte direita de um surrealismo “avant la lettre”, não de todo incomum nesta época, como acontece com Bosch, Bruegel, Dieric Bouts, entre outros, representa uma Madona com criança, verdadeiramente contraditória na sua formulação entre o sagrado e o profano. As cores dominantes frias e intensas, azul, vermelho, e branco, criam um écran tricolor impactante, dominado pela figura central de uma madona com o seio branco glacial desnudado, e um menino no colo que enigmaticamente aponta para uma direção aparentemente desconhecida. O fundo dominado por figuras celestes de um tom vermelho carmim evocativo do inferno, têm pontos de luz nos olhos, quais estrelas que brilham no firmamento. A história em torno desta obra aponta para a amante oficial do rei de França Agnès Sorel, ser a modelo de Fouquet.
Jean Fouquet, Madona rodeada de serafins e querubins, c.1450.
Uma “Vénus frigida”, dá continuidade ao tema que Rubens melhor pintou, o nu sensual sob um véu mitológico que permite a consubstanciação dos desejos carnais numa sociedade dominada pelo estado religioso, que à vez era permissiva e controladora da sexualidade. Este trecho mitológico diz-nos que sem alimento (Cères) e sem vinho (Bacchus), o ardor amoroso (Vénus) esmorece, e Cupido sentado sobre as setas, acanhado sob o véu que partilha com a sua musa, não mais cumpre a sua função estimuladora. O século XVII, idade de ouro dos Países Baixos, em contrapartida de um declínio comercial de Antuérpia, vê crescer os seus artistas e a criação que nasce da abundância de encomendas e da fluidez de dinheiro: Rubens, Van Dyck, Jordaens, Vermeer, Rembrandt, Ter Boch, Franz Hals, entre outros foram os seus atores. A sociedade burguesa enriquecida pelo comércio com as colónias na América, nomeadamente no Brasil, na Indonésia e em África, encomenda obras aos artistas como forma de se fazer retratar e construir uma identidade social através da imagem. São estas elites que permitem aos artistas viver, de forma segura e vender a preços acima do mercado. Emerge deste foyer artístico e intelectual uma escola que enobrece aquilo que se vai chamar mais tarde pintura de género. Disso é exemplo a obra da artista Michaelina Wautier, seguramente uma das poucas mulheres artistas a estar representada, com o tema de duas jovens raparigas como santas, num cenário aparentemente saído do quotidiano, hibridação do retrato, da natureza morta e da história hagiográfica. Podemos questionar esta lacuna porquanto havia nesta altura diversas mulheres a trabalharem este tema do retrato e da natureza morta no norte da Europa, entre estas Clara Peteers, Maria Van Osterwijck, Raquel Ruysch, Judith Leyster, Maria Sibylla Merian, que tendo sucesso na sua época, viram os seus nomes apagados até uma história recente. Ou seja, apesar das exposições que têm dado visibilidade ao trabalho “apagado” destas artistas, como é o caso da exposição individual de Clara Peeters no Museu Nacional do Prado em 2016, existe todo um processo estrutural a realizar de integração destas obras em coleções. Continuando o percurso, ultrapassamos num tempo cronológico veloz múltiplas obras que não couberam neste artigo, nomeadamente parte da coleção dedicada ao fim do século XIX (Cabanel, Tissot, esculturas de Constantin Meunier, Edgar Degas, um impressionante auto retrato de Léon Spilliaert), e detemo-nos na exposição de James Ensor, cabeça de cartaz, já que o museu detém uma quantidade significativa de obras deste autor pós impressionista, que conjuga na sua pintura vários modos de ser (e ver). Realista, simbolista, expressionista, seguindo palavras suas “ E sempre se combinam ou alternam este gosto do excecional, do anormal, e da procura da luz”, disso se dá conta quer nas pinturas impressionistas executadas com a mestria de um grande artista, “Mulher degustando ostras”(várias vezes recusada nas grandes exposições da época), e “O salão burguês”; nas telas que preanunciam a abstração como aquela que retrata o tema clássico “Adão e Eva expulsos do Paraíso”, e “A Queda dos anjos rebeldes” que toma uma outra de Frans Floris do seculo XVI como tema, e a transforma em pintura contemporânea. Nas suas obras mais particulares como “A Intriga”, de caráter profundamente expressionista, desmascara e critica a sociedade em cenário carnavalesco, num retrato satírico e pungente; a máscara, elemento favorito na obra de Ensor, surge como meio de desmascarar a natureza humana, desvelar “a alma da perversidade”. Essa máscara pode assumir a forma de caveira ou esqueleto, uma “vanitas” moderna que tem a mesma função. O carater inovador da sua pintura foi reconhecido pelos seus pares, Emil Nolde, Kirschner, Grosz comungam com ele muito do seu simbolismo expressionista.
James Ensor, O salão burguês, 1881.
Numa coleção desta dimensão quebram-se critérios estritamente cronológicos para dar lugar àquela ideia de que arte não tem espaço nem tempo, mas circula livremente num universo próprio. A aceleração do tempo e a globalização tornaram os parâmetros cronológicos obsoletos para dar lugar a outras interpretações e leituras. Sobre este jogo de estéticas e tempos diferentes fala-nos o filósofo Bernard Henri Levy, referindo que “a arte não tem história”, pois o tempo da arte não é o mesmo da história corrente; o seu tempo será de um mundo supra lunar, onde as obras circulam como meteoros ou cometas, encontram-se e entram em colisão. De forma similar, e completando este cruciforme de planos temporais e espaciais, circulam num mundo sem fronteiras, obras de artistas de diversos continentes, havendo neste momento uma preocupação dos curadores em refletir essa diversidade, numa poética mais conceptual e abstrata das exposições. Fra Angelico, Van Eyck, Rubens, Magritte, Paul Delvaux, Anish Kapoor, Van der Weiden, Jean Fouquet, Van Dyck, Anselm Kiefer, Grosz, estabelecem diálogos entre si por vezes a partir de pormenores que partilham: os espinhos de uma crucificação de Cristo do século XVI e uma tela coberta de pregos do alemão Günter Uecker, as mulheres nuas de Delvaux e uma Madonna com o menino de Dieric Bouts. No cosmos artístico, o tempo e o espaço são uma abstração.
Manuela Hargreaves |