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MULHERES, VAMPIROS E OUTRAS CRIATURAS QUE REINAMLEVINA VALENTIM2022-05-29
Enquanto durar a Bienal, Veneza é o reino das mulheres e das pessoas não-binárias. “O Leite dos Sonhos” escorre para os canais numa viagem a partir do universo surreal de Leonora Carrington (1917-2011) que Cecilia Alemani reinventou, na sua curadoria, em três estações: corpos e as suas metamorfoses; indivíduos e tecnologias; a conexão entre os corpos e a Terra. O que está sobretudo em jogo é a especificidade histórica e mítico-narrativa do Humano. No meio de muito ponto-cruz, muita lã, macramé, terra, animais, monstros e espíritos, surgem muita tecnologia, sangue, suor, mamas, vaginas, leite e lágrimas. Neste reino complexo de um mundo pós-coronavírus, ecoando as aventuras mais ou menos íntimas de inúmeros territórios plásticos francamente desprezados pela história e a crítica da arte durante um século, a arte mostrada em Veneza aponta duas visões antagónicas: leituras de uma quase insustentável leveza e fé na humanidade, e, por outro lado, visões de um futuro apocalíptico e sem esperança. Leonora Carrington desenhou, para os seus filhos, nas paredes de uma sala de casa, pequenas histórias saídas do seu mundo singular e surrealizante. Nele “descreve um mundo mágico no qual a vida se reinventa constantemente através o prisma da imaginação e em que se pode mudar, transformar, tornar-se outro", conta Cecilia Alemani. As paredes da sala seriam mais tarde caiadas, mas alguns dos desenhos e os contos subsistiram num caderninho de notas da autora e tornaram-se um livro a que chamou “The Milk of Dreams”. A ambiguidade sexual da expressão dispensa explicações. Nascida em Inglaterra, artista plástica e escritora, pioneira feminina do Surrealismo, Carrington viveu a maior parte da sua vida na Cidade do México, depois de ter passado algum tempo em Paris, onde se apaixonou por Max Ernst, em Santander, onde esteve internada pelo pai por alegada “desestabilização psíquica”, e em Lisboa, a caminho de Nova Iorque. Justa homenagem, este reviver do seu leite dos sonhos, numa Veneza subtil e claramente diferente, em termos de proposta artística. Esta é capaz de, por um lado, celebrar um passado em grande medida ‘abaixo do radar’; por outro, de apontar um novo futuro, por via de experimentos no presente, mas também novos horizontes míticos, nomeadamente ecológicos, integrando o universo da mente. A Bienal, renascida das cinzas pandémicas, particularmente duras em Itália, tem pela primeira vez, na sua história de 130 anos de existência, uma curadora mulher que faz jus à diferença e ao diferente. Nesse gesto inclui o tantas vezes rebaixado, obscurecido, tabu. E o mais interessante é que, como é habitual, Veneza 2022 está a ditar, no aqui e agora, fortes tendências na arte atual, pelo menos para um público que tenha estado distraído a toda uma arte feminina que já merecia este palco. É lógico e ressonante que Sonia Boyce tenha ganho o Leão de Ouro. Oficialmente presente com a instalação Vampires in Space, de Pedro Neves Marques, e com Paula Rego a integrar a exposição principal no Giardini, Portugal é dos países mais alinhados com a proposta curatorial de Cecilia Alemani. Paula Rego (numa sala tão íntima quanto cenográfica ) afirma-se como uma presença de um dos tantos lugares onde a mulher conseguiu reinventar o mundo quotidiano e exorcizar os seus fantasmas. Com curadoria de João Mourão e de Luís Silva, Vampires in Space é, dado estatístico, a primeira obra declaradamente queer apresentada pelo nosso país em Veneza. Nela “as questões de representação trans e não-binárias ganham uma visibilidade sem precedentes”, refere o comunicado de imprensa. Nós subscrevemos. “Ao apresentar este projeto, Portugal coloca-se na vanguarda das discussões sobre questões-chave do nosso tempo, em que os processos identitários, a ecologia, o transumanismo e a biopolítica são temas interdependentes e complementares para pensar e agir no presente e, sobretudo, no futuro.” E o futuro, que está aqui ao lado, é o que Pedro Neves Marques, nascido em Lisboa em 1984, um artista visual não-binário que é também e se apresenta como “realizadore” e “escritore”, nos propõe. Ocupa o segundo andar do Palazzo Franchetti, um magnífico exemplar da arquitetura neogótica veneziana, com uma instalação que nos faz entrar num universo futuro, mas reconhecível, na qual é necessário submergir. Vampires in Space é uma narrativa em três estações e cinco poemas, numa “nave espacial” especial. Três salas acolhem três segmentos de um filme que, funcionando autonomamente, constituem um todo. Outras três salas apresentam poemas inéditos, em Inglês, que se cruzam com a narrativa fílmica e propõem outros caminhos de leitura. No filme, temos uma história aparentemente simples e melancólica de cinco personagens, com as suas rotinas e os seus pequenos dramas, ao longo de uma viagem, de séculos, até um planeta distante. O desenho expositivo, contrastante com a arquitetura neogótica do espaço, mas curiosamente integrado, é da responsabilidade de Diogo Passarinho Studio. E, como é realmente preciso tempo para ver esta instalação, houve um atento cuidado no conforto. Duas salas de exibição do filme têm cadeirões/tronos almofadados e a terceira sala espreguiçadeiras – em francês, chaises loungues – minimais-futuristas nas quais os espetadores assistem confortavelmente deitados a cada segmento do filme. Num palácio tão distinto como o Franchetti, a intervenção dos DPS tem marca, personalidade e afirmação. Os poemas expostos estão em vitrinas estofadas, preciosamente guardados/expostos atrás de vidros. Tudo é cuidado, e a proposta é a entrada paradoxal numa “nave espacial” que não o pode ser já que o palácio está lá, maravilhosamente impositivo e belo. Então, ficamos entre um estar aqui e no espaço, numa instalação imersiva: a viajar no tempo, num tempo de questões referenciadas no universo estético da obra da antecipação, “2001, Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968). Um vampiro é ser noturno, ou uma personagem da crença popular, quase eterno, que sobrevive alimentando-se da essência vital das criaturas vivas – por norma, o seu sangue. Múltiplos filmes sobre este tema forneceram-nos banhos de sangue. Não há sangue neste espaço de vampiros, clean, quase acéptico, mas sim questões de identidade de género, de reprodução não convencional, de famílias não-nucleares, de intimidade e, muito curiosamente, sobre a saúde e a diversidade mental, uma problemática que atravessa toda a exposição principal e que vamos reencontrar em vários momentos da bienal e no Pavilhão Madnicity, no Museo della Folia na ilha de San Servolo, também com marca portuguesa. Segundo a lenda, um vampiro vive eternamente, na noite, se não lhe espetarem uma estaca no coração. Seres fantásticos e perfeitos para uma viagem espácio-temporal incomensurável. Do comunicado de imprensa: “A longevidade imaginada do vampiro, reforçada aqui pela distância física do planeta Terra e pela noção de humanidade, permite um exercício retrospetivo que se poderá designar de ‘autoficção científica’, ancorada na própria experiência trans não-binária de Neves Marques, bem como uma revisão política de uma extensa história de controle sobre os corpos e o desejo. Se os vampiros sempre refletiram debates sobre género em diferentes épocas, desde a era vitoriana até a libertação feminista e a crise da SIDA, como respondem hoje aos avanços da biotecnologia ou à emancipação de vidas e ecologias queer?” A leitura dos poemas no espaço expositivo é uma aventura discursiva dentro da viagem espacial (literal e metaforicamente). Complementa a audição hipnotizante dos seus lentos diálogos. O dispositivo permite que cada poema se torne uma espécie de slideshow de palavras. Pela sua localização precisa e pela sua estruturação interna, lemo-los não como legendas da componente audiovisual do pavilhão, mas como um percurso paralelo. Questionamentos fenomenológicos – Whose taste / Is this / That sometimes viralizes / Our tongues – cruzam-se com nano-manifestos – We are all the same / In time / Your time as well / Will come. O filosofar – How ironic / The dead / Might bring life / To a twin planet – mergulha no surrealizar – A family of two / Is sometimes enough / To make dreams / Solipsistic. E tudo pode conduzir a uma máxima – Inhumans / Are ideal / Candidates / To roam the stars – ou uma evidência intratextual: Even / Vampires / Need / Vitamin D. Lê-se o texto, os seus blocos de quatro muito curtos versos, a sua sucessão regular, como uma mensagem do futuro. A linguagem, no seu jogo de antecipação, comunica um tempo outro, ou mesmo uma era outra. Com uma espécie de neutralidade clean. E nela, o que é hoje um tema da moda – o queer –, resgata a sua legitimidade às agendas atuais, conseguindo oferecer o prazer da sua leitura como essa viagem ao futuro. Ou seja, as palavras são encenadas no espírito e na lógica de todo o pavilhão. Ao ritmo da eternidade que é antecipada. É por essa via que são concisa e delicada cartografia de condições. Demarcam assim uma posição subtilmente interativa. Mais não seja porque – aqui e agora, aqui na Terra – há um mundo ainda: árvores e rios, a par de tecnologias e corporações, em que corpos sonhando acordados são o veículo para paradoxais paisagens. Pela sua veloz passagem por nós (mais do que de nós por elas), é possível retirar dessas paisagens, na ótica de Pedro Neves Marques, um horizonte narrativo tão perturbante quando fascinante. Vampires in Space é, por outras palavras, uma experiência estética total. Uma arquitetura-cinema-teatral que remete para um distanciamento do imediato, do próprio ativismo, para que a crítica na esfera da sociopolítica passe para o espetador como um sedutor mistério em que mito e tecnologia dialogam. A arte, enquanto espaço de poesia e reflexão, agradece. A noção de empoderamento, traduzida para a ideia-experiência da viagem, é simultaneamente irónica e trágica e sedutora. Talvez. có(s)mica. No texto curatorial, lê-se: “A prática de Neves Marques, que inclui trabalho nas artes visuais, mas também no cinema, poesia e teoria, tem vindo a desenvolver uma forma de ficção especulativa que aborda algumas das questões mais prescientes do nosso tempo, desde a ecologia às políticas do corpo. Neves Marques entende os códigos da ficção científica de uma maneira única, interrogando os futuros distópicos que se avizinham no horizonte e, nesse processo, dar-nos um vislumbre de outras formas, críticas, de estar no mundo.” O statement é certeiro e enquadra com rigor um trabalho tão interdisciplinar – abrangendo arte e cinema, escrita crítica, ficção e poesia – quanto capaz de verter uma sensibilidade especulativa. Há diletâncias que são viagens ao futuro. Paralelamente, o projeto inclui um programa público com curadoria de Filipa Ramos – uma plataforma discursiva para mediar e discutir os temas explorados em Vampires in Space através de um conjunto de filmes, música, performances e palestras.
Levina Valentim
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Pedro Neves Marques (Lisboa, 1984)
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VAMPIRES IN SPACE Artista |