Links

O ESTADO DA ARTE


Frame do filme O desprezo, de Jean-Luc Godard, 1963.


Frame do filme O demónio das onze horas (Pierrot le fou), de Jean-Luc Godard, 1965.


Frame do filme Bando à parte, de Jean-Luc Godard, 1964.


Frame do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard, 1962.


Frame do filme Alphaville, de Jean-Luc Godard, 1965.


Frame do filme Roteiro do filme Paixão, de Jean-Luc Godard, 1982.


Frame do filme Paixão, de Jean-Luc Godard, 1982.


Frame do filme Prénom Carmen, de Jean-Luc Godard, 1983.


Frame do filme Elogio ao amor, de Jean-Luc Godard, 2001.


Frame do filme Adeus à linguagem, de Jean-Luc Godard, 2014.

Outros artigos:

2024-10-30


CAM E CONTRA-CAM. REABERTURA DO CENTRO DE ARTE MODERNA
 

2024-09-20


O MITO DA CRIAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE JUDY CHICAGO
 

2024-08-20


REVOLUÇÕES COM MOTIVO
 

2024-07-13


JÚLIA VENTURA, ROSTO E MÃOS
 

2024-05-25


NAEL D’ALMEIDA: “UMA COISA SÓ É GRANDE SE FOR MAIOR DO QUE NÓS”
 

2024-04-23


ÁLBUM DE FAMÍLIA – UMA RECORDAÇÃO DE MARIA DA GRAÇA CARMONA E COSTA
 

2024-03-09


CAMINHOS NATURAIS DA ARTIFICIALIZAÇÃO: CUIDAR A MANIPULAÇÃO E ESMIUÇAR HÍPER OBJETOS DA BIO ARTE
 

2024-01-31


CRAGG ERECTUS
 

2023-12-27


MAC/CCB: O MUSEU DAS NOSSAS VIDAS
 

2023-11-25


'PRATICAR AS MÃOS É PRATICAR AS IDEIAS', OU O QUE É ISTO DO DESENHO? (AINDA)
 

2023-10-13


FOMOS AO MUSEU REAL DE BELAS ARTES DE ANTUÉRPIA
 

2023-09-12


VOYEURISMO MUSEOLÓGICO: UMA VISITA AO DEPOT NO MUSEU BOIJMANS VAN BEUNINGEN, EM ROTERDÃO
 

2023-08-10


TEHCHING HSIEH: HOW DO I EXPLAIN LIFE AND CHANGE IT INTO ART?
 

2023-07-10


BIENAL DE FOTOGRAFIA DO PORTO: REABILITAR A EMPATIA COMO UMA TECNOLOGIA DO OUTRO
 

2023-06-03


ARCOLISBOA, UMA FEIRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA EM PERSPETIVA
 

2023-05-02


SOBRE A FOTOGRAFIA: POIVERT E SMITH
 

2023-03-24


ARTE CONTEMPORÂNEA E INFÂNCIA
 

2023-02-16


QUAL É O CINEMA QUE MORRE COM GODARD?
 

2023-01-20


TECNOLOGIAS MILLENIALS E PÚBLICO CONTEMPORÂNEO. REFLEXÕES SOBRE A EXPOSIÇÃO 'OCUPAÇÃO XILOGRÁFICA' NO SESC BIRIGUI EM SÃO PAULO
 

2022-12-20


VENEZA E A CELEBRAÇÃO DO AMOR
 

2022-11-17


FALAR DE DESENHO: TÃO DEPRESSA SE COMEÇA, COMO ACABA, COMO VOLTA A COMEÇAR
 

2022-10-07


ARTISTA COMO MEDIADOR. PRÁTICAS HORIZONTAIS NA ARTE E EDUCAÇÃO NO BRASIL
 

2022-08-29


19 DE AGOSTO, DIA MUNDIAL DA FOTOGRAFIA
 

2022-07-31


A CULTURA NÃO ESTÁ FORA DA GUERRA, É UM CAMPO DE BATALHA
 

2022-06-30


ARTE DIGITAL E CIRCUITOS ONLINE
 

2022-05-29


MULHERES, VAMPIROS E OUTRAS CRIATURAS QUE REINAM
 

2022-04-29


EGÍDIO ÁLVARO (1937-2020). ‘LEMBRAR O FUTURO: ARQUIVO DE PERFORMANCES’
 

2022-03-27


PRATICA ARTÍSTICA TRANSDISCIPLINAR: A INVESTIGAÇÃO NAS ARTES
 

2022-02-26


OS HÁBITOS CULTURAIS… DAS ORGANIZAÇÕES CULTURAIS PORTUGUESAS
 

2022-01-27


ESPERANÇA SIGNIFICA MAIS DO QUE OPTIMISMO
 

2021-12-26


ESCOLA DE PROCRASTINAÇÃO, UM ESTUDO
 

2021-11-26


ARTE = CAPITAL
 

2021-10-30


MARLENE DUMAS ENTRE IMPRESSIONISTAS, ROMÂNTICOS E SUMÉRIOS
 

2021-09-25


'A QUE SOA O SISTEMA QUANDO LHE DAMOS OUVIDOS'
 

2021-08-16


MULHERES ARTISTAS: O PARADOXO PORTUGUÊS
 

2021-06-29


VIVER NUMA REALIDADE PÓS-HUMANA: CIÊNCIA, ARTE E ‘OUTRAMENTOS’
 

2021-05-24


FRESTAS, UMA TRIENAL PROJETADA EM COLETIVIDADE. ENTREVISTA COM DIANE LINA E BEATRIZ LEMOS
 

2021-04-23


30 ANOS DO KW
 

2021-03-06


A QUESTÃO INDÍGENA NA ARTE. UM CAMINHO A PERCORRER
 

2021-01-30


DUAS EXPOSIÇÕES NO PORTO E MUITOS ARQUIVOS SOBRE A CIDADE
 

2020-12-29


TEORIA DE UM BIG BANG CULTURAL PÓS-CONTEMPORÂNEO - PARTE II
 

2020-11-29


11ª BIENAL DE BERLIM
 

2020-10-27


CRITICAL ZONES - OBSERVATORIES FOR EARTHLY POLITICS
 

2020-09-29


NICOLE BRENEZ - CINEMA REVISITED
 

2020-08-26


MENSAGENS REVOLUCIONÁRIAS DE UM TEMPO PERDIDO
 

2020-07-16


LIÇÕES DE MARINA ABRAMOVIC
 

2020-06-10


FRAGMENTOS DO PARAÍSO
 

2020-05-11


TEORIA DE UM BIG BANG CULTURAL PÓS-CONTEMPORÂNEO
 

2020-04-24


QUE MUSEUS DEPOIS DA PANDEMIA?
 

2020-03-24


FUCKIN’ GLOBO 2020 NAS ZONAS DE DESCONFORTO
 

2020-02-21


ELECTRIC: UMA EXPOSIÇÃO DE REALIDADE VIRTUAL NO MUSEU DE SERRALVES
 

2020-01-07


SEMANA DE ARTE DE MIAMI VIA ART BASEL MIAMI BEACH: UMA EXPERIÊNCIA MAIS OU MENOS ESTÉTICA
 

2019-11-12


36º PANORAMA DA ARTE BRASILEIRA
 

2019-10-06


PARAÍSO PERDIDO
 

2019-08-22


VIVER E MORRER À LUZ DAS VELAS
 

2019-07-15


NO MODELO NEGRO, O OLHAR DO ARTISTA BRANCO
 

2019-04-16


MICHAEL BIBERSTEIN: A ARTE E A ETERNIDADE!
 

2019-03-14


JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO – O JOGO DO INDIZÍVEL
 

2019-02-08


A IDENTIDADE ENTRE SEXO E PODER
 

2018-12-20


@MIAMIARTWEEK - O FUTURO AGENDADO NO ÉDEN DA ARTE CONTEMPORÂNEA
 

2018-11-17


EDUCAÇÃO SENTIMENTAL. A COLEÇÃO PINTO DA FONSECA
 

2018-10-09


PARTILHAMOS DA CRÍTICA À CENSURA, MAS PARTILHAMOS DA FALTA DE APOIO ÀS ARTES?
 

2018-09-06


O VIGÉSIMO ANIVERSÁRIO DA BIENAL DE BERLIM
 

2018-07-29


VISÕES DE UMA ESPANHA EXPANDIDA
 

2018-06-24


O OLHO DO FOTÓGRAFO TAMBÉM SOFRE DE CONJUNTIVITE, (UMA CONVERSA EM TORNO DO PROJECTO SPECTRUM)
 

2018-05-22


SP-ARTE/2018 E A DIFÍCIL TAREFA DE ESCOLHER O QUE VER
 

2018-04-12


NO CORAÇÂO DESTA TERRA
 

2018-03-09


ÁLVARO LAPA: NO TEMPO TODO
 

2018-02-08


SFMOMA SAN FRANCISCO MUSEUM OF MODERN ART: NARRATIVA DA CONTEMPORANEIDADE
 

2017-12-20


OS ARQUIVOS DA CARNE: TINO SEHGAL CONSTRUCTED SITUATIONS
 

2017-11-14


DA NATUREZA COLABORATIVA DA DANÇA E DO SEU ENSINO
 

2017-10-14


ARTE PARA TEMPOS INSTÁVEIS
 

2017-09-03


INSTAGRAM: CRIAÇÃO E O DISCURSO VIRTUAL – “TO BE, OR NOT TO BE” – O CASO DE CINDY SHERMAN
 

2017-07-26


CONDO: UM NOVO CONCEITO CONCORRENTE À TRADICIONAL FEIRA DE ARTE?
 

2017-06-30


"LEARNING FROM CAPITALISM"
 

2017-06-06


110.5 UM, 110.5 DOIS, 110.5 MILHÕES DE DÓLARES,… VENDIDO!
 

2017-05-18


INVISUALIDADE DA PINTURA – PARTE 2: "UMA HISTÓRIA DA VISÃO E DA CEGUEIRA"
 

2017-04-26


INVISUALIDADE DA PINTURA – PARTE 1: «O REAL É SEMPRE AQUILO QUE NÃO ESPERÁVAMOS»
 

2017-03-29


ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE FEIRA DE ARTE
 

2017-02-20


SOBRE AS TENDÊNCIAS DA ARTE ACTUAL EM ANGOLA: DA CRIAÇÃO AOS NOVOS CANAIS DE LEGITIMAÇÃO
 

2017-01-07


ARTLAND VERSUS DISNEYLAND
 

2016-12-15


VALORES DA ARTE CONTEMPORÂNEA: UMA CONVERSA COM JOSÉ CARLOS PEREIRA SOBRE A PUBLICAÇÃO DE O VALOR DA ARTE
 

2016-11-05


O VAZIO APOCALÍPTICO
 

2016-09-30


TELEPHONE WITHOUT A WIRE – PARTE 2
 

2016-08-25


TELEPHONE WITHOUT A WIRE – PARTE 1
 

2016-06-24


COLECCIONADORES NA ARCO LISBOA
 

2016-05-17


SONNABEND EM PORTUGAL
 

2016-04-18


COLECCIONADORES AMADORES E PROFISSIONAIS COLECCIONADORES (II)
 

2016-03-15


COLECCIONADORES AMADORES E PROFISSIONAIS COLECCIONADORES (I)
 

2016-02-11


FERNANDO AGUIAR: UM ARQUIVO POÉTICO
 

2016-01-06


JANEIRO 2016: SER COLECCIONADOR É…
 

2015-11-28


O FUTURO DOS MUSEUS VISTO DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO
 

2015-10-28


O FUTURO SEGUNDO CANDJA CANDJA
 

2015-09-17


PORQUE É QUE OS BLOCKBUSTERS DE MODA SÃO MAIS POPULARES QUE AS EXPOSIÇÕES DE ARTE, E O QUE É QUE PODEMOS DIZER SOBRE ISSO?
 

2015-08-18


OS DESAFIOS DO EFÉMERO: CONSERVAR A PERFORMANCE ART - PARTE 2
 

2015-07-29


OS DESAFIOS DO EFÉMERO: CONSERVAR A PERFORMANCE ART - PARTE 1
 

2015-06-06


O DESAFINADO RONDÒ ENWEZORIANO. “ALL THE WORLD´S FUTURES” - 56ª EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DE ARTE DE VENEZA
 

2015-05-13


A 56ª BIENAL DE VENEZA DE OKWUI ENWEZOR É SOMBRIA, TRISTE E FEIA
 

2015-04-08


A TUMULTUOSA FERTILIDADE DO HORIZONTE
 

2015-03-04


OS MUSEUS, A CRISE E COMO SAIR DELA
 

2015-02-09


GUIDO GUIDI: CARLO SCARPA. TÚMULO BRION
 

2015-01-13


IDEIAS CAPITAIS? OLHANDO EM FRENTE PARA A BIENAL DE VENEZA
 

2014-12-02


FUNDAÇÃO LOUIS VUITTON
 

2014-10-21


UM CONTEMPORÂNEO ENTRE-SERRAS
 

2014-09-22


OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro - Parte II
 

2014-09-03


OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro – Parte I
 

2014-07-16


ARTISTS' FILM BIENNIAL
 

2014-06-18


PARA UMA INGENUIDADE VOLUNTÁRIA: ERNESTO DE SOUSA E A ARTE POPULAR
 

2014-05-16


AI WEIWEI E A DESTRUIÇÃO DA ARTE
 

2014-04-17


QUAL É A UTILIDADE? MUSEUS ASSUMEM PRÁTICA SOCIAL
 

2014-03-13


A ECONOMIA DOS MUSEUS E DOS PARQUES TEMÁTICOS, NA AMÉRICA E NA “VELHA EUROPA”
 

2014-02-13


É LEGAL? ARTISTA FINALMENTE BATE FOTÓGRAFO
 

2014-01-06


CHOICES
 

2013-09-24


PAIXÃO, FICÇÃO E DINHEIRO SEGUNDO ALAIN BADIOU
 

2013-08-13


VENEZA OU A GEOPOLÍTICA DA ARTE
 

2013-07-10


O BOOM ATUAL DOS NEGÓCIOS DE ARTE NO BRASIL
 

2013-05-06


TRABALHAR EM ARTE
 

2013-03-11


A OBRA DE ARTE, O SISTEMA E OS SEUS DONOS: META-ANÁLISE EM TRÊS TEMPOS (III)
 

2013-02-12


A OBRA DE ARTE, O SISTEMA E OS SEUS DONOS: META-ANÁLISE EM TRÊS TEMPOS (II)
 

2013-01-07


A OBRA DE ARTE, O SISTEMA E OS SEUS DONOS. META-ANÁLISE EM TRÊS TEMPOS (I)
 

2012-11-12


ATENÇÃO: RISCO DE AMNÉSIA
 

2012-10-07


MANIFESTO PARA O DESIGN PORTUGUÊS
 

2012-06-12


MUSEUS, DESAFIOS E CRISE (II)


 

2012-05-16


MUSEUS, DESAFIOS E CRISE (I)
 

2012-02-06


A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE DIGITAL (III - conclusão)
 

2012-01-04


A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE DIGITAL (II)
 

2011-12-07


PARAR E PENSAR...NO MUNDO DA ARTE
 

2011-04-04


A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE DIGITAL (I)
 

2010-10-29


O BURACO NEGRO
 

2010-04-13


MUSEUS PÚBLICOS, DOMÍNIO PRIVADO?
 

2010-03-11


MUSEUS – UMA ESTRATÉGIA, ENFIM
 

2009-11-11


UMA NOVA MINISTRA
 

2009-04-17


A SÍNDROME DOS COCHES
 

2009-02-17


O FOLHETIM DE VENEZA
 

2008-11-25


VANITAS
 

2008-09-15


GOSTO E OSTENTAÇÃO
 

2008-08-05


CRÍTICO EXCELENTÍSSIMO II – O DISCURSO NO PODER
 

2008-06-30


CRÍTICO EXCELENTÍSSIMO I
 

2008-05-21


ARTE DO ESTADO?
 

2008-04-17


A GULBENKIAN, “EM REMODELAÇÃO”
 

2008-03-24


O QUE FAZ CORRER SERRALVES?
 

2008-02-20


UM MINISTRO, ÓBICES E POSSIBILIDADES
 

2008-01-21


DEZ PONTOS SOBRE O MUSEU BERARDO
 

2007-12-17


O NEGÓCIO DO HERMITAGE
 

2007-11-15


ICONOLOGIA OFICIAL
 

2007-10-15


O CASO MNAA OU O SERVILISMO EXEMPLAR
 

QUAL É O CINEMA QUE MORRE COM GODARD?

LÚCIA MONTEIRO

2023-02-16




 


Na origem destas linhas está o desafio de pensar o valor da imagem na passagem do século 20 para o 21 à luz da obra de Jean-Luc Godard. É um assunto enorme, ao qual venho me dedicando (entre outras coisas, evidentemente, como sói acontecer na vida de uma pesquisadora multitarefas) ao longo dos últimos 15 anos. Que o leitor ou a leitora não se preocupem: não se inicia aqui um tratado. O espaço e o tempo de que disponho me permitem esboçar hipóteses com base em um recorte da obra godardiana, uma mirada lacunar e posicionado. Com o perdão da redundância: falo a partir de minha perspectiva e de meu encontro com os filmes e o pensamento do cineasta franco-suíço morto recentemente.

Pensei em começar com a indagação proposta por Fredric Jameson no artigo que publicou em setembro passado na New Left Review: “Godard foi o maior cineasta de todos os tempos?”, questiona ele. E prossegue, não exatamente com uma resposta, mas com uma hipérbole bem ao gosto do homenageado: “Ele era o próprio cinema, o cinema redescoberto no momento de sua desaparição”. Quando escreve “momento de sua desaparição” (em inglês, “its moment of disappearing”), Jameson faz referência à crise pela qual passa a sétima arte neste período pós-pandêmico – salas tradicionais fechadas (ou esvaziadas, em maior ou menor grau), produção e distribuição reconfiguradas pela atuação de plataformas de streaming, substituição da película pelo digital.

Para Godard, há algo de sagrado no gesto de erguer a cabeça para assistir a um filme na tela grande; hoje se consome audiovisual sobretudo em casa, individualmente, em monitores ou televisores que “nunca passarão de eletrodomésticos”. Jameson conclui: “Se o cinema de fato está morrendo, então Godard está morrendo com ele; ou melhor, foi o cinema que morreu com Godard”. O teórico marxista tem sido um observador arguto do cinema e da literatura ao longo das últimas décadas. Apesar de soar exagerada, sua frase parece-me até bastante plausível. Dos 127 anos passados desde a primeira exibição do cinematógrafo dos Lumière, em dezembro de 1895, em Paris, Godard esteve ativo, filmando, por mais de sessenta. Experimentou a película, preto e branco e em cores; o vídeo (VHS, DV, HD); o 3D.

Ainda assim, parece-me mais produtivo pensar qual é o cinema que morre com Godard. Tentarei fazer isso em instantes. Deixe-me antes propor um outro início para este mesmo texto, agora com imagens de JLG. Do primeiro curta-metragem, Operação concreto (Opération béton, 1954), filmado durante a construção da barragem da Grande Dixence, na Suíça, até o último longa, O livro da imagem (Le livre de l’image, 2018), que estreou no festival de Cannes, Jean-Luc Godard realizou mais de 100 filmes, nos mais variados formatos, entre curtas e longas, ficções e documentários, programas para televisão e videoinstalações. Poderíamos escolher qualquer título desse universo – afinal, encontramos as mesmas interrogações políticas, estéticas e éticas ao longo das décadas, com frescor constantemente renovado. Mais importante: do curta documental dos anos 1950 ao mais recente longa, sua maneira de associar imagem e palavra nunca foi óbvia nem boba.

 

Nosso silêncio, nossas palavras

Comecemos pelo início de Bando à parte (Bande à part, 1964). O longa (sétimo na carreira do cineasta) baseia-se no romance policial Fool’s Gold, publicado em 1958 por Dolores Hitchens e ocupa um lugar de certo modo marginal na filmografia de Godard. É uma produção menor do que seu filme anterior, O desprezo (Le Mépris, 1963), adaptação da Odisseia de Homero, obra fundadora da tradição literária ocidental. Já em Bando à parte, o livro adaptado é um “polar” obscuro, de autoria feminina, um livro menor. A trama envolve a preparação de um assalto protagonizado por três adolescentes. Arthur e Franz conhecem Odile em um curso de inglês; ela conta ter visto muito dinheiro no armário da casa onde trabalha e eles armam um plano para roubá-lo. A cena que me interessa está na passagem da sequência inicial, na sala de aula, para a externa em que o trio, a bordo de um Simca bem encerado, dirige-se até Joinville-le-Pont, subúrbio onde funcionavam na época os estúdios da Pathé. Essa passagem é conduzida pela voz do narrador – o próprio Godard –, que diz: “Aqui, seria possível abrir parênteses e falar dos sentimentos de Odile, Franz e Arthur. Mas isso já está claro o bastante. Melhor deixar que as imagens falem e fechar o parêntese”.

Interpretada por Anna Karina, Odile está sentada entre Arthur (Claude Brasseur) e Franz (Sami Frey) no banco dianteiro do conversível, que avança pelas ruas do leste de Paris, entre árvores desfolhadas e edifícios desprovidos da pompa haussmanniana, num dia de chuva. Ela toma o chapéu de Franz, coloca na própria cabeça e se ajeita no retrovisor. Surgem então os acordes da trilha sonora de Michel Legrand. Num só instante, temos desenhada a tensão que estruturará todo o filme e também a memória de triângulos amorosos cinematográficos mais ou menos platônicos – de Sócios no amor (Design for Living, 1933), de Lubitsch, a Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg, 1963), de Jacques Demy, passando, é claro, por Jules et Jim (1962), de Truffaut.

Muitas coisas me comovem em Bando à parte, assim como em Viver a vida (Vivre sa vie, 1962) e outras preciosidades da primeira fase do cineasta. A começar pela beleza melancólica de Anna Karina. O modo como nela se combinam charme e inadequação, sedução e ingenuidade, força e fragilidade, sintetiza minha relação ambivalente com Godard: seus filmes despertam em mim amor e incômodo, emoção e razão, erotismo e revolta. (Não consigo esquecer que ela não havia completado 18 anos quando assina o primeiro contrato com o cineasta, com quem se casaria pouco tempo depois e que permaneceria amando até o fim da vida, em 2019. Imagino-a esperando-o, no hall de um hotel, ao lado do telefone, por horas, dias, semanas, sem dinheiro ou liberdade, conforme me descreveu numa entrevista. Fecho esse parêntese sobre sentimento e deixo falar as imagens).

Chamo atenção para a presença, na imagem, da palavra escrita, desde os filmes dessa primeira fase. Ainda na escola de inglês, a professora escreve no quadro negro, com giz, “clássico = moderno”, equação que remete ao apreço que Godard e seus companheiros de Nouvelle Vague, os jovens turcos, nutriam pelo cinema clássico, ao mesmo tempo em que inventavam um cinema moderno. Em seguida, Odile recebe um bilhete de Arthur: “to bi or not to bi contre ta poitrine [entre teus seios]. That is ze question”. E depois outro: “Esse penteado deixa você com um ar fora de moda”. O galanteio em inglês precário a perturba menos do que a humilhação pelas tranças ajeitadas em caracol. (Reconheço em mim esse sentimento de inadequação).

Em Viver a vida, a escrita manual aparece em uma cena emocionante: Nana (Anna Karina) encontra-se em um bar e redige, num francês hesitante, uma carta para a conhecida de uma amiga, provavelmente uma cafetina. “Gostaria de um lugar em sua casa. Tenho 22 anos. Acho que sou bonita. Meço 1,69 metro. Tenho cabelos curtos, mas eles crescem rápido.” (Dói-me ler os dados objetivos de uma mulher encerrada em seu corpo que se põe a venda e se desculpa pelos cabelos, mais uma vez inadequados).

Para além da caligrafia, a palavra escrita aparece também nos livros que os personagens leem ou trocam. No final de Viver a vida, o amante de Nana lê para ela O retrato oval (1842), de Edgar Allan Poe, traduzido para o francês por Baudelaire. É a voz de Godard que ouvimos. “É nossa história, quer que eu continue?”, pergunta ele, entre uma descrição e outra do amor do pintor por sua modelo.O nome da personagem de Anna Karina em Bando à parte vem do livro de Raymond Quéneau, Odile (1937), que Franz compra em um bouquinista, numa pausa do trajeto de carro pelas margens do Sena. Haveria muitos outros exemplos de livros citados e exibidos por Godard em seus filmes.

O verso que abre esta seção – “Nosso silêncio, nossas palavras” – está entre os declamados por Anna Karina em Alphaville (1965), quando seu personagem, Natacha, precisa definir o que é o amor e ela cita o poeta surrealista Paul Eluard. E, um pouco mais adiante: “Todas as palavras ditas inesperadamente. Os sentimentos à deriva”. Passarelas entre cinema e literatura, palavra e imagem, emoção e expressão que, conforme avançamos na filmografia do mestre, se tornam mais complexas, acrescidas de novas camadas.  Com o passar dos anos, a voz do narrador, as capas de livro, os bilhetes, páginas de jornal e inscrições na lousa se somam a incrustações na imagem e em cartelas de texto. A enunciação godardiana se torna mais direta nessa forma de escrita na montagem que nunca se contenta em dizer o que vemos. Ao contrário: somos incitados a duvidar do que vemos, incitados a olhar melhor.

 

A beleza feminina se torna algo todo poderoso

A relação entre imagem e palavra no cinema ganha, por vezes, centralidade nas reflexões do cineasta, como é o caso na díade de 1982, formada por Paixão (Passion) e Roteiro do filme Paixão (Scénario du film Passion). “Gostaria de me calar e apenas ver”, ele diz, logo no início do segundo. “Penso que vemos primeiro o mundo, e em seguida o escrevemos”. Apesar de ter a palavra “roteiro” no título, o filme não traz a imagem do texto e, na realidade, nega seu interesse, ao menos do ponto de vista artístico: “o cinema que representa a vida começa sem roteiro”, diz um Godard posicionado de frente para a tela, de modo que seu corpo é ofuscado pela imagem projetada. O raciocínio apresentado é o seguinte: assim como a escrita surge com os mercadores, o roteiro surge da necessidade contábil de saber quanto custará cada pedaço do filme por vir. Mas, se não traz a imagem do texto, Roteiro do filme Paixão apresenta a visão da tela em branco, assemelhada à potência da página em branco, frente a qual vemos a silhueta do cineasta gesticular, como se escrevesse. Seu trabalho é “tornar o invisível visível”.

Quando Godard morreu, escrevi pela primeira vez sobre os sentimentos ambivalentes que sua obra despertava em mim, sobretudo por sua maneira de filmar as mulheres, que fascina e ao mesmo tempo incomoda. Meu amigo Mateus Araújo ponderou que eu havia sido injusta. Não tenho como discordar dele em pelo menos um ponto: ao longo das dezenas de filmes, dos filmes mais narrativos até as experimentações dos últimos títulos, passando pela fase marxista, a colaboração com Anne-Marie Miéville e os anos 1980, o cineasta não mantém um olhar estanque sobre o corpo feminino e o lugar da mulher na narrativa. Laura Mulvey, teórica britânica pioneira nos estudos feministas do cinema, havia estudado de perto a evolução das personagens femininas de Godard nas duas primeiras décadas de sua obra em textos que li por recomendação de Araújo. É curioso que Mulvey aborde pouco alguns dos filmes que mais me emocionam e perturbam, como os que mencionei acima. Já Paixão e Roteiro do filme Paixão estão no centro de suas inquietações, naquele início de anos 1980 que marca um divisor de águas: enquanto nos anos 1960 era importante desmistificar a sociedade do espetáculo e seu investimento na sexualidade, a partir de Paixão Godard “começa a reconstituir o corpo feminino como um acessório cenográfico do cinema”.

Em Paixão, Isabelle Hupert vive uma operária que acaba de ser demitida e se envolve com um diretor de cinema (Jerzy Radziwilowicz) que, junto com sua equipe, está hospedado no hotel comandado pela mulher de seu ex-patrão, interpretada por Hanna Schygulla. Em Roteiro do filme Paixão, Godard examina imagens de Hupert em Paixão e comenta: “Eu era patrão de Isabelle, ela era minha empregada. No cinema, as operárias são em geral apaixonadas pelo patrão”. A fricção entre imagem e palavra aí produzida salta de um filme a outro e causa um curto-circuito entre o universo da filmagem e o da diegese. Como bem esmiúça Mulvey, as preocupações godardianas relacionavam-se, então, ao trabalho e à sociedade de consumo, na qual a mulher é tanto consumidora quanto mercadoria – por vezes literal, quando a prostituição é tematizada, como em Salve-se quem puder (a vida) (1980). Um polo não se separa do outro, pois é para poder consumir que a mulher se prostitui.

Após apontar essas nuances e identificar pontos de virada, Laura Mulvey escreve, na conclusão de um de seus artigos sobre Godard, uma frase que diz respeito não somente aos objetos de análise centrais do texto – Paixão, Prénom Carmen (1983) e Je vous salue, Marie (1985) –, mas à obra do cineasta de maneira mais ampla: “cinema e sexualidade fundem-se em uma condensação desavergonhadamente masculina, ao mesmo tempo apologeticamente impotente”. Ao mesmo tempo, recorre à primeira pessoa do singular para afirmar sua emoção diante de Prénom Carmen e relembra uma passagem de Paixão à qual me parece importante retornar. Valho-me, para tal, das palavras de Constance Penley, teórica feminista que leciona na Universidade da Califórnia: “No momento em que é apresentada exatamente como o ícone inevitável da cena pornográfica de amor, através do close-up de sua face gemendo como garantia de prazer, Isabelle é ouvida pensando sobre as tarefas que tem pela frente”.

Aqui, a relação nada óbvia entre som e imagem, que tenho observado ao longo do texto, reforça a inacessibilidade do mistério da mulher para uma perspectiva masculina (e o temor da castração que vem junto). Num estudo anterior, Mulvey observara a diferença de escala entre as ações dos protagonistas masculinos de Godard (como o Ferdinand de Pierrot le fou) e das protagonistas femininas (a Nana de Vivre sa vie, a Charlotte de Uma mulher casada, etc.). Eles organizam a ação narrativa, não raro com violência, percorrendo territórios e geografias; elas, por sua vez, desempenham ações que fazem parte da vida cotidiana. Por essa razão, Mulvey afirma, em sintonia com a base freudiana de seus estudos, que “Godard vê a mulher de fora, em uma fantasia baseada em medo e desejo”. A teórica intuía a presença desse mistério na atenção que ela dedica a Uma mulher casada (Une femme mariée, 1964) e na frase que escolhe para abrir seu próprio artigo: “Isso é o que pode ser visto no rosto de uma mulher, a presença da consciência, alguma coisa que lhe confere uma beleza diferente, adicional. A beleza feminina se torna algo todo poderoso, e é por isso, eu acredito, que todas as grandes ideias em francês são do gênero feminino”.

 

As imagens pensam

Como espectadora, vi filmes como Acossado (À bout de souffle, 1960), Pierrot le Fou (1965), Elogio ao amor (Éloge de l’amour, 2001) e Nossa música (Notre musique, 2004). Como pesquisadora de cinema, minha relação com Godard começa ao estudar os documentos de sua passagem por Moçambique, no final dos anos 1970. Através da produtora Sonimage, que ele conduzia ao lado de Anne-Marie Miéville, o cineasta propõe ao presidente moçambicano Samora Machel que se tire proveito da ausência, até aquele momento, de uma rede de televisão no território, para criar um sistema audiovisual nacional revolucionário. Godard nunca lançou um filme sobre a experiência moçambicana, mas parte do projeto foi publicada em uma edição especial dos Cahiers du cinéma, em 1979, sob o título “Norte contra sul. Nascimento (da imagem) de uma nação”. Algo desse período moçambicano foi retomado na exposição Voyage(s) em utopia (2006),no Centro Pompidou, onde também se encontravam referências às experiências africanas de Jean Rouch. Havia, no projeto moçambicano, a consciência da importância da imagem para a constituição do sentimento nacional, um desafio para o jovem país independente formado por uma diversidade de povos e línguas.

Como terceiro-mundista, vi na postura de Godard muitas vezes um alento libertador e reconheço a força de sua influência sobre os novos cinemas latino-americanos. Na geopolítica do cinema, que tende a olhar tudo o que é feito fora de Hollywood e da Europa Central como exótico e digno de interesse etnográfico, a potência política das propostas e provocações de Godard me inspiram sempre. Talvez ainda mais potente seja a contribuição de sua obra para a libertação das próprias imagens. Aprendemos com ele que as imagens produzem efeitos, que as imagens pensam – e de maneira independente dos desejos e intenções dos realizadores.

Talvez não haja, na trajetória de Godard, momento melhor de formulação da potência de pensamento das imagens do que nas História(s) do cinema, que teve na pesquisadora Céline Scémama sua mais dedicada intérprete, a quem aproveito a oportunidade para homenagear. Num texto publicado no catálogo da retrospectiva brasileira de Godard no CCBB, Scémama faz referência a Benjamin e fala da “fraca força messiânica” que resta ao cinema e na possibilidade, oferecida pela montagem, de que as imagens retornem à vida. Essa montagem-ressurreição é posta em prática na série realizada entre 1988 e 1998, que tem no vídeo sua principal ferramenta. “Se a montagem não pode salvar ou ressuscitar os mortos, ela pode trazê-los de volta à imagem, e assim ‘salvar a honra de todo o real'”, escreve a estudiosa. Ela chama a atenção para algo que é essencial na obra do Godard e mais ainda nas História(s): o cinema é um sujeito: “cogito ergo video, penso logo vejo”. “O pensamento de Godard não existe independentemente do que se produz na tela, nessa forma cuja ordem é a desordem, a dissonância. Essa unidade no esfacelamento não é experimentação formal, mas pensamento audiovisual, uma escrita em sintonia com seu objeto”.

Há, em Godard, uma reflexão perene sobre o problema filosófico da divisão entre essência e aparência, problema evocado notadamente através da interpelação entre palavra e imagem, a voz a desconfiar do que as imagens mostram, as imagens a desafiar a necessidade do texto. Na homologia entre sexualidade feminina, artifício e engano que Laura Mulvey identifica nos filmes dos anos 1980, o corpo feminino tem lugar central, mas é lugar de objeto de análise e não de motor da ação. Isso explica parte da mistura de sentimentos que seus filmes despertam em mim e em outras críticas. Por isso, se há, como sugere Jameson, um cinema que morre com Godard, talvez seja, antes de mais nada, o cinema em que a mulher é objeto da investigação masculina. Hoje, para entender as mulheres, para pensar nosso lugar na sociedade, podemos filmar nós mesmas e assistir a filmes de mulheres.

 

 


Lúcia Monteiro
Doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, professora-adjunta do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense e integra o Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da mesma instituição (PPGCine-UFF).


 

:::

 

Este artigo foi originalmente publicado no dia 17 de janeiro de 2023 na Revista de Fotografia ZUM, a re-publicação aqui faz-se ao abrigo de uma parceria com a Artecapital.