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FRESTAS, UMA TRIENAL PROJETADA EM COLETIVIDADE. ENTREVISTA COM DIANE LINA E BEATRIZ LEMOSLUCIARA RIBEIRO2021-05-24
As actividades da Frestas - Trienal de Artes acontecem no primeiro semestre de 2021. Como primeira atividade, o colectivo Ayllu segue a programação do Programa Orientado à Práticas Subalternas (POPS), um espaço de experimentação crítica que parte de um questionamento do racionalismo, do cientificismo e da falsa objetividade do pensamento eurocêntrico. Passando pelo reconhecimento do corpo não branco, a oficina reúniu 40 pessoas de 8 países latino-americanos que, coletivamente, com o objectivo de desenvolver uma obra que fará parte da mostra O rio é uma serpente. A Trienal tem-se mantido ativa on-line com uma agenda voltada para formação de artistas e professores da rede pública de ensino. O encontro educativo O rio é uma serpente: tópicos para diferença e justiça social abordou, durante os meses de outubro e novembro, discussões sobre ausências e emergências na educação básica para ajudar a compreender como a sala de aula pode ajudar na educação antirracista. Ao todo, o programa coordenado por Renata Sampaio reuniu 12 intelectuais para falar sobre temas como “gênero e sexualidade”, “passado e futuro”, “infância, educação e antirracismo”, “a construção da sociedade brasileira”, “aplicando a lei 11.645”, “pedagogias de emergência” e “tecnologia e os desafios da pandemia”. Em outra ponta, os curadores Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza coordenaram um Programa de Estudos com 15 artistas que participarão da mostra O rio é uma serpente. Durante os encontros, foi pensado coletivamente o desenho curatorial e expográfico da exposição, bem como os trabalhos individuais de cada artista. O grupo também esteve em contato com curadores e agentes do mercado, colocando suas produções em constante diálogo. O resultado desses processos estará disponível para o público no site da mostra em 2021.
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A Revista Artishock convidou a curadora brasileira Luciara Ribeiro para conversar com os curadores e apresentamos abaixo a entrevista concedida por Beatriz Lemos e Diane Lima. Luciara Ribeiro: Vocês poderiam comentar um pouco sobre os caminhos individuais percorridos até a chegada ao Frestas? Como eles dialogam com o trabalho curatorial desta edição? Diane Lima: Como outros convites dessa natureza, somos um coletivo forjado institucionalmente o que nos leva a pensar naquilo que nos une enquanto interesse de pesquisa mas sobretudo, no que produzimos como diferença e singularidade. Olhar para essas contradições e buscar estratégias de negociação éticas, estéticas, econômicas, subjetivas e emocionais, para propor rotas de fuga tendo em vista as categorias de identidade, acredito que tenha sido uma preocupação que nos acompanha e em certa medida nos une, ainda que dentro da quebra e da recusa, desde o início. Partindo das aproximações, se há algo que precede sem dúvida, é o interesse por um debate e uma prática no âmbito da educação, tanto no sentido de pensar a educação de arte e cultura no país, como de refletir e expandir os modos como a arte contemporânea pode contribuir no campo das pedagogias radicais. Além disso, Frestas tem essa particularidade de ser uma plataforma que trabalha com diferentes espacialidades, que sai do campo museal, que dialoga com o espaço público, que convida o público a um deslocamento dos grandes centros urbanos e que esgarça as fronteiras da arte contemporânea em termos de sua historiografia, mas também no campo da linguagem, questões que foram primordiais em outros projetos que realizei como em 2018 e 2019 no “Valongo Festival Internacional da Imagem”, em Santos, ou na Residência PlusAfroT na Villa Waldberta na Alemanha. Beatriz Lemos: Acredito que a perspectiva da pesquisa, curadoria e educação articulada às dinâmicas de elaboração crítica e radical do presente contou muito para a formação institucional deste trio. Nossos interesses se cruzam, dialogam em muitas direções, mas o que me parece um dos dados mais potentes do projeto é que também seguimos por caminhos totalmente diferentes, às vezes, até mesmo opostos. E foi desta negociação, entre os nossos desejos de envolvimento com o projeto, que demos a partida para o processo curatorial. Assim, Frestas foi se entendendo como plataforma, reunindo múltiplos campos de ação e estudo. Por este histórico de coletividade, que vem pra frente enquanto conceito, vejo grandes reverberações com os processos já vivenciados na plataforma Lastro, em suas exposições, residências e grupos de estudos. LR: No texto de apresentação, vocês comentam que a frase “O rio é uma serpente”, que dá título à essa edição, surgiu durante o período de viagem de pesquisa. Como foi esse processo? DL: A relação com o movimento foi um ponto de partida de pesquisa nesses dois anos e esse texto está encarnado desse deslocamento. Nele, a gente diz, que: “O rio é uma serpente porque se esconde e camufla entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias no seu próprio movimento”. Nesse sentido, a viagem partiu desse interesse de ir ao encontro, não de algo objetivo, mas do que estava por vir no sentido do que conhecemos ou não reconhecemos como narrativa artística e cultural no Brasil. E isso sem dúvida tem a ver com pensar políticas de redistribuição que extrapolem a região sudeste do país e a centralidade de alguns territórios internacionais pois como é notório dentro do campo de pesquisa artística e curatorial, é muito mais possível receber um convite para ir para a Suécia ou a Suíça, do que chegar a Serra da Capivara, ou Raposa Serra do Sol, Alcântra no Maranhão ou até mesmo, algumas capitais brasileiras, como, Belém e Manaus. Passamos pelo Amazonas, Roraima, Pará, Maranhão e Piauí e foi depois na tentativa de traduzir a experiência na “contação de história”, na busca por encontrar imagens e figuras que pudessem narrar a experiência vivida e como esses aprendizados serviam como metáfora do mundo que surgiu “O rio é uma serpente”. BL: Todo o processo da Trienal foi pensado na coletividade e boa parte dele em deslocamento. Quando começamos a trabalhar no projeto eu e Diane estávamos em São Paulo e Thiago estava fora do país. Em outro período eu estive fora, Thiago em São Paulo, Diane em Salvador. Então, sempre estivemos pensando no movimento e em movimento. O título desta edição surgiu durante a viagem que fizemos para algumas cidades da região Norte e Meio-Norte, mais especificamente, durante passagem pela região amazônica. A escolha por essas localidades como itinerário de pesquisa curatorial se deu pelo interesse no estudo das diferentes narrativas de Brasil, que se fazem possíveis, que se atravessam e se contradizem simultaneamente. Nosso desejo também estava na experimentação de uma paisagem não-familiar para nós e de como nossos corpos poderiam reagir a partir do contexto. Viajar em conjunto para lugares distantes dos nossos de origem e de moradia, sempre esteve como uma das prioridades para pensarmos em outros discursos curatoriais. A nossa escolha surgiu do intuito dos cruzamentos de paisagens, sociabilidades e das dinâmicas próprias de cada cena de arte. LR: Como se dá essa relação mais profunda entre texto e imagem no título da mostra? BL: O título parte de uma metáfora que se torna imagem. Percorremos muitos rios durante a viagem até encontrar “O rio é uma serpente”. Mas ele não veio como texto, e sim como imagem. Olhar e sentir a presença dos rios serpenteados é onde habita nossa definição de título. Um rio imaginário e possível em muitos territórios. É um rio que se negocia enquanto possibilidade corporal e possibilidade espiritual. DL: “O Rio é uma serpente” não é um tema e é difícil fazer isso ser compreendido. Temos insistido que é uma imagem, uma metáfora que nos ajuda a compreender a partir de um aprendizado com a natureza, as contradições no nosso mundo. Ela nos ajuda a pensar sim questões como racismo ambiental mas também nos leva a fazer uma leitura do mundo fora da linearidade do tempo nos abrindo um debate à partir do próprio título, sobre os usos da linguagem que também é central no projeto curatorial. Nesse sentido que ‘o Rio é uma Serpente’ não é sobre um lugar, mas muito mais sobre as curvas que cortam espaços e tempos. Sobre contradições, negociações e os caminhos já percorridos por outros em tempos e espaços históricos distintos para agenciar permanências e estratégias de sobrevivência. LR: Vocês convidaram a Renata Sampaio para pensar as práticas educativas propondo ações que aproximem a curadoria e a educação. Como surgiu esse convite e o desejo por essa relação entre curadoria e educação? Vocês podem falar um pouco sobre isso? BL: Um dos pilares curatoriais dessa edição de Frestas é pensar a educação como um ponto de partida. Desde o início deste processo contamos com a presença da Renata Sampaio, o que foi fundamental para localizar o programa educativo enquanto eixo da plataforma, fazendo transparência aos seus propósitos em termos institucionais e em relação com a cidade. Tanto que a primeira etapa pública desta edição da trienal foi pensada em torno das práticas educativas e de aprendizagem onde realizamos o programa de formação de professores e o grupo de estudos com artistas da exposição. LR: Vocês convidaram 15 artistas para construírem estudos e debates coletivos em torno da exposição. Quais foram os critérios adotados para selecioná-los? Como está sendo a conexão entre eles? E entre vocês e eles? BL: O programa de estudos teve como objetivo o acompanhamento e aprofundamento de pesquisas de artistas presentes na exposição. Foi estruturado curatorialmente durante a pandemia como estratégia para maior redistribuição de recursos – tendo em vista o período conflituoso de cancelamento de projetos por grande parte da área da cultura -, para maior detalhamento dos projetos comissionados e para o exercício curatorial coletivo de pensar o espaço expositivo. DL: Esse aprofundamento e acompanhamento passava por expor coletivamente como se cria uma exposição ao passo que sendo um dispositivo emergencial tendo em vista a vulnerabilidade do setor cultural no auge da incerteza gerada pela pandemia. Ao abrir esse processo a partir da estrutura do próprio Frestas, criamos um programa de estudos que olhava para si mesmo como metodologia de aprendizado. Recebemos outros colegas curadores como o Thomas Lax, o Miguel A. López, Vivian Crockett, Amanda Carneiro e Fernanda Brenner; fizemos uma série de conversas ministradas pela nossa equipe executiva, expográfica e educativa, além de worshops e palestras que tangenciavam questões ora mais estruturais e históricas sobre o sistema da arte, ora mais conceituais e subjetivas sobre os portfólios e projetos. Penso que a situação pandêmica nos trouxe algo que já se fazia basilar em nossas práticas e discussões: a necessidade de se repensar as políticas e poéticas de exibição. LR: Após a etapa virtual, os artistas participantes continuarão na exposição presencial? Como vocês pretendem conectar essas duas etapas? BL: O grupo segue no projeto e encontra com as demais artistas, quase como afluentes desse rio. Estamos trabalhando com aproximadamente 60 artistas. A maioria das obras são comissionamentos, mas teremos também empréstimos nacionais e internacionais, e obras que serão refeitas, ou seja, que já foram apresentadas em outras exposições e que entendemos pertinente exibi-las. Contudo, o mais importante ao pensar nesta edição como plataforma é a proposta de expansão do dispositivo expositivo. Estamos propondo a ativação de diferentes espaços possíveis para a exibição de uma obra ou processo artístico, assim a atuação desse grupo de participantes será visível tanto no estacionamento do Sesc – espaço destinado para exposições da trienal – quanto em publicações, site, programação pública e parques da cidade de Sorocaba.
>> Biografias
Beatriz Lemos (Rio de Janeiro, RJ), pesquisadora e curadora, com mestrado em História Social da Cultura pela PUC-RJ. É idealizadora da plataforma Lastro – Intercâmbios Livres em Arte. A partir de perspectivas anticoloniais, atua na condução e articulação de processos em rede e transdisciplinares de criação e aprendizagem. Fez parte das comissões curatoriais do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017) e da Bolsa Pampulha (2018/2019), e coordenou a residência artística Travessias Ocultas – Lastro Bolívia, que se desdobrou em uma exposição no Sesc Bom Retiro (SP, 2016/2017). Atualmente é curadora adjunta do MAM Rio e integra a equipe curatorial da 3ª Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba, SP). Diane Lima (Mundo Novo – BA) é curadora independente, escritora e pesquisadora. Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, seu trabalho consiste em experimentar práticas curatoriais contemporâneas em perspectiva decolonial e antirracista. Entre seus principais projetos destaca-se a idealização em 2015 do programa de educação radical AfroTranscendence (Red Bull Station/Galpão VideoBrasil); a curadoria entre 2016 e 2017 do programa Diálogos Ausentes do Itaú Cultural – que culminou com as exposições homônimos nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro; e a curadoria em 2018 e 2019 do Valongo Festival Internacional da Imagem (Não me aguarde na retina / O melhor da viagem é a demora) em Santos, São Paulo. Em 2019 foi ainda co-curadora da Residência PlusAfrot na Villa Waldberta, residência artística da Secretaria de Cultura da Cidade de Munique e da exposição coletiva «Lost Body – displacement as choreography» ambos projetos ocorridos na Alemanha. Jurada de diversas comissões de seleção e premiação, é docente da Especialização em Gestão Cultural Contemporânea do Itaú Cultural e como escritora e crítica, escreve periodicamente para publicações e catálogos. Co-organizou o livro “Textos para ler em voz alta” (Brook Éditions) e integrou a curadoria do livro 20 em 2020 – Os artistas da próxima década (Act.). Luciara Ribeiro (Xique-Xique, Bahía, Brasil), educadora, investigadora e curadora. Interessam-lhe temas relacionados com a descolonização da educação e das artes e o estudo das artes não ocidentais, especialmente as artes africanas, afrobrasileiras e ameríndias. Tem um mestrado em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018), onde recebeu uma beca da Fundación Carolina, e pelo Programa de Posgraduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019), onde foi bolseira CAPES. É licenciada em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2014) com um programa de intercâmbio com a Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2012). É técnica de Museologia pela Escola Técnica do Estado de São Paulo (ETEC, 2015). Formou parte da equipa curatorial do Instituto Tomie Ohtake e actualmente é directora de conteúdos da Diáspora Galeria.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa. |