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CAMINHOS NATURAIS DA ARTIFICIALIZAÇÃO: CUIDAR A MANIPULAÇÃO E ESMIUÇAR HÍPER OBJETOS DA BIO ARTEINÊS FERREIRA-NORMAN2024-03-09
Sonhar é necessário.
Vou abrir este texto com uma afirmação algo contenciosa: desde 2016 sinto que o mundo ocidental (que por detrás de cortinas espessas de defensores de direitos humanos, mas que alimentam guerras por todo o mundo a nível governamental) entrou em guerra consigo mesmo a níveis muito profundos. Uma espécie de guerra interna coletiva. Não só entre os governos e os seus cidadãos (entenda-se que a fé na democracia e nos políticos que a representam está de rastos, enquanto a riqueza se acumula nos bolsos de políticos e outros líderes corruptos), mas como também entre as próprias pessoas, o que se manifesta em polarização ideológica, e que vai permeando cada vez mais a nossa sociedade. O impacto inteligível do Brexit – e pelo Brexit que se entenda as fragilidades da União Europeia e a forma como o processo político doméstico no Reino Unido se desenrolou – e a assimilação da realidade pós-verdade através da eleição e apoio a Trump por milhões de pessoas, revelou a uma escala sem precedentes a vasta inescrupulosa manipulação das nossas sociedades. Algo para o qual em 2010 Julian Assange - cuja extradição está hoje em audiência no Reino Unido - nos tinha alertado. Em adição, em 2020 o mundo foi abalado pela pandemia COVID-19, o que exacerbou ainda mais a dinâmica da manipulação e da polarização. Quem sofre de manipulação acaba por ter desordens do foro psicológico, incluindo depressão e ansiedade. E é neste estado permanente e auto-perpetuante depressivo de ansiedade que eu sinto que o mundo está hoje. Pós-humanismo, pós-natural, pós-antropocentrismo, pós-pós-moderno, pós-convencional, pós-estruturalista, pós-colonial, pós-industrial, pós-verdade, pós-genómico, pós-relacional, pós-patriarcal, pós-publico, pós-internet, pós-animalismo, pós-imagem.... Tantos pós criam uma poeira no pensamento, uma nuvem espessa que me impede de sentir o presente, e me puxa para o futuro constantemente; uma pressão na existência atual que não me permite disfrutar das coisas boas que ainda temos. O mundo à beira dum ataque de nervos só pode produzir linguagem como esta. O meu tom pode parecer crítico destes termos, mas na realidade sou crítica é da realidade da qual eles emergem, pois estes termos são estados atuais distópicos, mas também sonhos. E sonhar é necessário. É muitas vezes a nossa tábua de salvação. A arte tem vindo a demonstrar que uma das reações do pós-guerra por exemplo é o rejuvenescimento, a explosão de cor, como também a imaginação (os sonhos) e a expressão das emoções. O problema é que nós não estamos no pós-guerra, estamos em perpétua guerra. Este estado constante de predisposição a um Sindroma de Stress Pós-Traumático, induz-nos à histérica produção de hipóteses de cura. Muitos destes conceitos pós- defendem um sistema em que o capitalismo seja ultrapassado (Yanis Varoufakis defende que já o fizémos e que já vivemos na era do Techno Feudalismo, algo bem mais sinistro), porém, a produção histérica [1] mesmo que seja de conhecimento, é em si contraintuitiva aos ideais com que muitos de nós sonhamos para uma vida mais saudável. Não defendo de maneira nenhuma que o conhecimento pare de acontecer, se assim fosse, não estariam a ler estas palavras. Mas as minhas reflecções sobre a complexidade do mundo e da vida, giram em volta da aceitação de que um tema não é na realidade só um tema, e que conflitos não têm de ser incompatibilidades. No entanto, não posso deixar de exercer o espírito consciente de autocrítica e autorreflexão e apontar que a produção de conhecimento é em si também uma produção, e que a velocidade exponencial da multiplicação da sua informação, torna este ato histérico, e quiçá até contraproducente. Pelos menos até que os moldes desta produção e distribuição deixem de ser moldes capitalistas (e/ou techno feudalistas), não poderemos verdadeiramente dedicar-nos à adoção dos nossos sonhos. Mas podemos regalar-nos com as partes que irão tornar tais sonhos, realidades.
O que foi o cordão umbilical é a nossa existência.
Já há mais de quatro anos que tenho vindo a investigar, e a explorar através da produção artística e trabalho editorial, o que é o pós-humanismo. Cheguei até este termo através do Antropoceno, um termo que se tornou incendiário na comunidade das artes e humanidades desde a sua inserção em 2000 por Paul Crutzen e Eugene Stoermer. O Antropoceno ainda não foi acordado como uma unidade geocronológica pela comunidade científica, mas ganhou peso e influência pela decisão da Subcommission on Quaternary Stratigraphy em 2019, de adicioná-lo enquanto unidade cronostratigráfica. Rosi Braidotti, no seu ‘Posthuman Glossary’ define que ‘Teoria Crítica Pós-humana se desenrola na interseção entre, por um lado o pós-humanismo, e por outro o pós-antropocentrismo. O primeiro propõe uma crítica filosófica do ideal Humanista Ocidental do ‘Homem’ enquanto alegada medida universal de todas as coisas, enquanto o último baseia-se na rejeição da hierarquia das espécies e do excecionalismo humano.’ [2] Temos, portanto, uma teoria (ocidental) que quer retirar o homem do centro do mundo do homem. Não parece fácil, mas as forças cósmicas detestam um vácuo e a primeira coisa que fazem é tentar preenchê-lo. Isso vê-se a olhos vistos por exemplo nos nossos solos: quando retiramos a sua proteção dermatológica (a.k.a. ervas rasteiras ou mato), a natureza considera isso como um vazio e tenta repor o mais rapidamente suas plantas, um manto verde. Esta é uma força da criação que o homem tem tentado destruir para alimentar o lucro agrícola intensivo desde a era industrial, e que nos está a valer muito sofrimento biológico, económico e social. Esta vida do solo é uma fonte de inspiração constante para mim e para muitos artistas contemporâneos. Minhocas, bactérias, microrganismos, são eles as rainhas e os reis dos solos. Ainda esta semana disse à minha sobrinha de 9 anos ‘os seres mais importantes do mundo são as minhocas na terra e as abelhas no céu’. Mas na realidade, no solo, todos os microrganismos são igualmente importantes, pois formam subpaisagens (ecossistemas e biomas) que são reciprocamente interdependentes do clima. A sua dizimação, e a desregulação de vários biomas pelo nosso planeta fora, levaram-me a trabalhar 10 dias de performance na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha, tendo sido a primeira artista em residência nesta instituição. Este processo de pesquisa baseada na prática através de uma metodologia performativa, consistia em processar o luto de micropaisagens concebidas semi-ficcionalmente inspiradas pelos microrganismos que encontrei na água e no solo de Maceira em Torres Vedras, durante a minha residência na RAMA no ano anterior. O Conselho Fúnebre das Micropaisagens assumia a legitimidade de cada grupo de microrganismos enquanto merecedor de cerimónia fúnebre do foro xamânico e artístico. César Herrera explica em Micróbios e outros Seres Xamânicos: ‘mesmo aqueles seres que correspondem a micróbios, para os xamãs, são pessoas, e, para fazer as coisas ainda mais complicadas, são também parte das nossas pessoas – eles dotam-nos de alguns dos nossos afetos e capacidades’ [3]. Durante esta residência - um processo altamente experiencial enriquecido pela presença do público em algumas ocasiões - a dimensão política, ambiental e social não foi esquecida, e a segunda parte da performance consistia na produção de desenhos automáticos enquanto eu proclamava, declamava e cantava dados científicos sobre o impacto das alterações climáticas nos nossos sistemas (inclusive sociais, políticos e culturais). Mais uma vez, Herrera sublinha: ‘Nessa posição [porque são parte das nossas pessoas], seres xamânicos estão envolvidos não só nas dinâmicas ecológicas, fisiológicas ou emocionais, como também naquelas que resultam de relações sociais, políticas e económicas’ [4] Também os Landra (Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho) se fascinam por microbiologia e em particular por essas repercussões sociopolíticas que estes seres carregam em diferentes tipos de solo e em suas terras. Os Landra são contadores de estórias biológicas e os seus trabalhos também incluem voz e instrumentos musicais, e dados científicos que contextualizam a evolução das espécies (microbiológicas) e de biomas e estratos ecológicos. Não deixam, no entanto, de conferir um aspeto reverencial a estas criaturas através das formas como recontam as suas histórias, honrando materiais naturais e honrando os processos cíclicos quer sejam de um teor mais social e sistémico, quer seja a nível orgânico. No seu projeto A Desconsagração do Império de 2023, ergue-se uma pilha de composto dentro da Capela da Boa Viagem, no Funchal, ilha da Madeira, que consiste em camadas de material orgânico muito específico. Os Landra trabalham muito em modo site-specific, ou seja, com a importância do local. A história da capela foi um dos pontos de partida para o desenvolvimento deste trabalho. Fundada em 1655, esta capela não exerceu funções religiosas durante muito tempo. Na realidade ela era usada maioritariamente para a beatificação das mercadorias que iriam percorrer o mundo, originárias na Madeira. Estas mercadorias tiveram um impacto muito profundo na estratificação do solo, mas também da sociedade: nada seria melhor para simbolizar tais entrosamentos do que uma pilha de composto, onde camadas de nitrogénio (matéria orgânica fresca, verde) e camadas de carbono (matéria orgânica seca, castanha) se intercalam para criarem temperaturas acima dos 60º para que se transforme em matéria composta [5]. Este calor e processo químico são representativos das transições e transformações sociais que se apresentaram na época do Colonialismo Marítimo [6], que para a ilha da Madeira começou em 1425 quando os primeiros habitantes foram para lá trasladados. Na sociedade portuguesa, que nunca foi tão rigidamente feudal como em outros países da Europa (por exemplo a França, Itália, Inglaterra), e na qual o terceiro estado (o povo) sempre praticou atividades comerciais, viu-se durante os séculos XV e XVI a ascensão da sociedade mercantilizada e o estabelecimento de uma sociedade oligárquica, nobiliárquico-eclesiástica. ‘Se por um lado a nobreza se mercantiliza, por outro lado, os grupos mercadores e negociantes buscam (...) integrar-se na ordem nobiliárquica: a realidade é o mercador-cavaleiro e o cavaleiro-mercador, o fidalgo-negociante e o negociante-enobrecido’ [7]. Estas mudanças, que acabam por resultar na construção das fundações da ‘biografia moderna do capital’ [8], são para os Landra um dos pontos pelos quais é necessário expor e exorcizar estas matérias: a colheita da madeira, da cana-de-açúcar e dos grãos, e à posteriori a do vinho, são um ponto de viragem do sistema do Antigo Regime para o início do Despotismo Esclarecido. O rei deixa de usufruir de uma autoridade divina sobre os seus nobres e passa a usar a performatividade das terras, altamente impulsionada pela mão-de-obra negra escravizada, como forma de autocracia sobre os seus súbditos. Destas dinâmicas, gera-se o oposto de cuidado, e a exploração e a presença da manipulação intensificam-se. Através do uso do composto, os Landra focaram-se na ciclicidade da vida, sendo que uma das peças sonoras que compõe este trabalho narra precisamente a sucessão biológica da pilha de composto. Na outra peça, na qual vão atribuindo sons específicos (uma espécie de ‘tradução bioquímica do processo de compostagem’ [9]) a seres específicos, existe a vocalização destes através da vibração. E a vibração é uma forma poderosa de sentir, neste caso, a santidade dessa vida microbiológica que nos passa despercebida, mas que é o pilar, são os blocos da vida. A meu ver, esta é uma forma de personificação, o que enfatiza o conceito xamanista que Herrera menciona. A sociedade portuguesa desde o Antigo Regime até ao Iluminismo passou por nuances evolutivas comparáveis à dos seres na pilha do composto da capela da Boa Viagem, pois passaram por temperaturas diferentes e multiplicaram-se de formas diferentes até atingirem o seu ciclo de fertilidade. A diferença é que após a fase fértil, a evolução social não sofreu uma continuidade cíclica, mas sim uma rutura. Os processos de explorações cultivares da ilha da Madeira tiveram um ciclo ecológico e, principalmente devido à deflorestação, à produção da cana do açúcar e de grãos, o colapso da sociedade desencadeou-se devido à falta de chuva e exaustão dos lençóis freáticos (Detetamos algum padrão aqui?). Por isso, esclarece Rodrigo, é que veio a cultura do vinho, que é uma cultura com um impacto menor e que acaba por deixar alguma regeneração acontecer. Nas palavras de Sara, a criação desta pilha de composto, composta por bagaço, melaço e cana-de-açúcar esmagada, cereais de sequeiro, palha e feno, troncos, galhos, estilha, serradura e serrim de madeira, engaços, restos de poda e pés de vinha, pretende devolver à terra a fertilidade que lhe foi retirada. E a fertilidade é algo que é sagrado. Em alusão a esta dinâmica, houve também uma benção impromptu da pilha de composto com chá de composto (na realidade a incubação de mais microrganismos – criadores de vida - nesta), santificando o composto – fonte de vida -, desconsagrando o império – causa da morte de muitas vidas negras, alegadamente 3000 por ano no seu pico. Este microcosmo da ilha da Madeira, artificado pelos Landra neste trabalho, é um trabalho altamente político na sua conceção, mas também não podemos deixar de dizer que é altamente biológico e social. Estes campos de conhecimento e vivência (bio-politico-social-cultural e até mesmo ético) são na realidade o corpo da nossa existência enquanto indivíduos que fazemos parte da humanidade. E é dentro desse corpo (que previamente no artigo Dar o corpo ao trabalho: matéria, segregação e transformação, a história do outro defini como território) que a Bio Arte navega. Bio Arte, enquanto termo, foi cunhado em 1997 por Eduardo Kac a propósito do seu trabalho Time Capsule, uma intervenção no seu próprio corpo com um microship cuja informação foi recuperada remotamente por participantes online. Em 2000, ele criou Alba (GFP Bunny), um coelho verde transgénico. Aplicando ciência molecular, Kac, criou uma criatura imaginária. Foi também em 2000 que Marta de Menezes – pessoa incontornável da Bio Arte especialmente em Portugal - participou com o seu projecto Nature? na exposição Next Sex, parte da Ars Electronica em 2000 na Bruckner Haus em Linz na Áustria, com curadoria de Gerfried Stocker, o fundador e diretor criativo da Ars Electronica. Este projeto consistia em alterar os padrões das asas das borboletas: um sonho bem arrojado de como fazer uma pintura natural (mais exatamente biológica), onde o pincel são agulhas e a tela são escamas aladas. Ou será que é (uma pintura) artificial? Estas distinções começam a obscurecer-se muito facilmente, quando falamos de seres que estão vivos, emergiram da natureza, continuam vivos, mas foram manipulados por nós, coincidentemente, também nós seres vivos da mesma natureza. É sobre este embaciar que se debruçam muitas das discussões sobre pós-humanismo e pós-naturalismo. Onde está a linha que define que o que é feito pelo homem é algo natural ou artificial? A definição de artificial é mesmo essa, que é algo feito pelo homem. Mas o homem tem a capacidade de fazer coisas naturais, biológicas. O que é uma filha? Lembro-me agora também de Jane Bennet e a sua definição de matéria vibrante. Ela contrapõe e esfuma, para voltar a definir noções, o que é matéria viva. A matéria transforma-se mesmo que não esteja viva, e por isso ela questiona se isso também não é vida, pois continua a ser habitat de agentes que permitem tal transformação, e admite a possibilidade de animismo à lá off the record, mesmo de cariz xamânico. Em conversa com de Menezes, foi muito aparente a sua lucidez ética sobre os diversos campos de conhecimento com os quais interage, e o seu Bio Art Manifesto (que pode ser lido no seu website) é uma ode à biodiversidade das ecologias artísticas e científicas. Marta é diretora de dois centros de investigação artística transdisciplinar, Cultivamos Cultura em São Luiz, Odemira e Ectopia, em Lisboa. Ambos os centros organizam residências e recebem projetos. Para Marta, pioneira neste campo, a curiosidade foi sempre guiada pelas questões filosóficas que se prendem com o que significa ser humano; quer seja no singular, com questões de identidade que se prendem com as idiossincrasias de cada ser, por exemplo, quer seja no plural ou coletivo, com questões relacionadas com o que fomos e com o que vamos ser. No seu manifesto diz: ‘A vida tem uma especificidade material que não é reduzível a outro médium’ [10]. Do meu ponto de vista, é a sua complexidade que não é reduzível. Os campos bio-politico-social-cultural-ético e agora insiro também transcendental, sobrenatural, espiritual, estão todos imbricados em nós e no que nos rodeia. Ainda que a palavra sobrenatural me está a pedir para expandi-la e tenho em mim um artigo inteiro só para ela, vou, no entanto, mencionar outra das palavras que mais me habita recentemente, que é a interseccionalidade. As crises que vivemos hoje em dia, são constituídas por uma pletora de agentes e vetores, e por isso compreendo a necessidade de pensarmos numa realidade pós- ‘híper objeto’ (Timothy Morton), uma realidade que possamos melhor compreender... O nosso calcanhar de Aquiles é afinal de contas o controlo! E a nossa linguagem é muitas vezes o espelho disso. O pós-natural, por exemplo, é um termo que nasceu inicialmente de uma realidade científica bastante específica e que está a evoluir para abranger a formação de vários momentos. O Centre for PostNatural History, fundado em 2008 em Pittsburgh, Estados Unidos da América, define que ‘história Pós-Natural é o estudo das origens, habitats, e evolução de organismos que foram intencionalmente alterados por humanos através de domesticação, reprodução ou engenharia.’ [11] O pós-humanismo (sem a sua componente de teoria crítica) engloba todas as discussões do continuum natureza-cultura, incluindo as questões que eu há pouco colocava relativamente à identidade da atividade humana, e não se revê na realidade binária (construtivista) entre ‘natureza inata’ e ‘natureza construída’ (Braidotti). Considera-se, portanto, uma subjetividade que ‘reformula a identidade das práticas humanas, ao enfatizar a heteronomia e a relacionalidade multi-facetada, em vez da autonomia e pureza autorreferencial disciplinar’ [12]. Devido à complexidade e nuances que lhes são devidas e porque partem do mesmo ponto teórico de dissolução binária, as correntes pós-humana e pós-naturalista não são necessariamente incompatíveis, mas parecem-me potencialmente conflituosas, em particular na prática. A natureza intrínseca de assumir a heterogeneidade da vida do pós-humanismo, propõe intrinsecamente que o homem já esteja a segmentar os seus interesses de forma a que ele mesmo não seja o centro dos seus estudos (quer se adote uma posição de teoria crítica ou não), no entanto, o pós-naturalismo utiliza técnicas e ações que são manipulações que só são possíveis através de um exercício hierárquico forçado de poder: o poder do antropos fazer e transformar as coisas à sua medida. A ideia de descentralização, a meu ver, reforça que atividades hegemónicas não são adequadas. São possíveis, mas não adequadas. Em relação às suas culturas celulares, bacterianas e outras demais, Marta de Menezes afirma que pode ter uma relação de cuidado, de se sentir enquanto kin (Donna Haraway), como guardiã de tais entidades vivas, mas na realidade não é uma relação de colaboração, não são partes iguais de um acordo, não há consentimento da parte da outra entidade viva. Consequentemente, esta acaba por ser uma relação hierárquica, unilateral, muito frequentemente para fins antropocêntricos. Seria então aqui que o xamã entraria no laboratório, para percebermos e consciencializarmo-nos da potencial agência do outro ser.
As mulheres não precisam de batas brancas, mas podem vesti-las.
Não exatamente um xamã, mas sim fundadora de um sabá de bruxas (BioArt Coven), WhiteFeather Hunter é uma artista transdisciplinar que completou o seu doutoramento em Biological Art na SymbioticA na University of Western Australia que se autointitula de bruxa. Enquanto o trabalho artístico de Marta de Menezes é motivado por uma curiosidade que acaba por ser materializada como matéria política (não sendo este o intuito motivador), o trabalho de WhiteFeather parte de um princípio feminista, mesmo desde antes do seu interesse em Bio Arte se manifestar em práticas assumidamente científicas e biotecnológicas. Hunter começou por uma prática artística que se focava em materialidades orgânicas provindas do seu próprio corpo, especificamente cabelo e sangue menstrual em tecelagem e também em escultura mole. O seu interesse residia na forma como o corpo das mulheres tem sido tratado socioculturalmente num contexto contemporâneo, mas também histórico. Com esta pesquisa, muito rapidamente se deparou com a demonização da sexualidade feminina, que muito evidentemente se prende com os temas da sexualidade e da menstruação, pois muitas tradições religiosas, especialmente as abraâmicas mas também algumas hindus, associavam os fluídos vaginais a impurezas e corrupção. Hunter está atualmente a investigar ideias relacionadas com o prazer, de forma reacionária a estigmas ligados ao clitóris por exemplo, que afirma ser descrito como ‘o mamilo da bruxa’ por causa da sua forma anatómica e carga simbólica do que é o pecado. De momento Hunter, em colaboração com Jiabao Li, está a criar clitóris em laboratório e a investigar os seus poderes sensoriais. Hunter vê a figura da bruxa como algo perturbador no sentido em que se tornar uma bruxa desafia o status quo - nomeadamente dentro da própria comunidade científica - mas como também uma figura de prestadora de cuidados, por norma ritualizados. Na realidade, as curandeiras, as herbalistas, eram (e estão a voltar a ser, ora vejam-se as inúmeras contas de Instagram de mulheres que se autointitulam herbalistas) as referências médicas nas tradições populares. Eu lembro-me de quando era criança ter sido levada várias vezes à curandeira. Muito vivas estão as memórias de ser esfregada com álcool etílico em posições especificas, benzida nas costas em forma de cruz com um raminho de alfazema enquanto ladainhas incompreensíveis eram rezadas e o meu tronco atado com ligaduras durante uma semana. Esta mulher, a Estrudes Palaia, não era descrita como uma bruxa na minha aldeia, nem curandeira, era só a Estrudes. E só hoje entendo que era por temor à discriminação que não se lhe dava um nome. Lembro-me perfeitamente de perguntar à minha mãe o que é que a Estrudes era, sem que uma resposta me fosse dada. A Estrudes representava este arquétipo da mulher nas margens, que ameaça a ordem social, que agita as crenças estabelecidas. Era sempre num grande secretismo que nós lá íamos. Eu, no entanto, sempre entusiasmada pelo mistério! Estas mulheres, que fazem um trabalho de cuidado e um trabalho cuidado, foram a inspiração para Marta de Menezes e Dalila Honorato começarem a organizar o FEMeeting desde 2018. Ainda que nas margens, ambas perceberam que ‘as mulheres no campo da arte e ciência têm uma presença mundial inquestionável.’13 [13] Vejo o deleito de Marta em descrever a atmosfera desta conferência e através do seu palpável entusiasmo percebo que não só o trabalho das mulheres que participam nesta comunidade é de extrema importância para o desenvolvimento das práticas transdisciplinares entre arte, ciência e tecnologia, mas que é a magia de ver o apoio que estas mulheres partilham entre si, ao simplesmente serem escutadas com a mesma precisão com que falam, que importa igualmente. Uso a palavra magia deliberadamente aqui, pois uma das definições de magia é ‘arte, ciência ou prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, valendo-se da intervenção de seres fantásticos e da manipulação de algum princípio oculto supostamente presente na natureza, seja por meio de fórmulas rituais ou de ações simbólicas’ [14]. Esta definição aplica-se perfeitamente à prática de WhiteFeather Hunter, e de muitas artistas que trabalham dentro do escopo da Bio Arte. Para além dos seres fantásticos serem muitas vezes as artistas a criá-los, e o princípio oculto ser o que não é possível ver sem equipamento tecnológico, o influenciar do curso dos acontecimentos e produzir efeitos não-naturais é uma prática humana diária! Dentro de uma realidade pós-humana, podemos é redefinir o que é o não-natural e consequentemente redefinir o que é magia. Mas isso fica para um próximo artigo. Hunter descreve a sua prática laboratorial como performativa e com um calibre ritualístico sendo que ela segue uma série de procedimentos com vista a influenciar os resultados pretendidos. Ritual é também a formulação de significados, refere WhiteFeather, e o que a Bio Arte alcança primeiro no laboratório e logo no espaço expositivo, é exatamente isso. Pode-se argumentar, e Hunter refere isso também, que esse é um papel associado ao do artista, por isso ela considera que vai ao laboratório para desconstruir uma significação, construindo outra sobre o trabalho de laboratório, e que se revela na sua artificação.
Cuidar das incomensurabilidades: 39 triliões x 8 biliões
WhiteFeather constrói aqui também uma rede de pensamento bem firme ao associar esta construção de significado ao seu próprio corpo, reclamando a personalização do campo científico. A tradição académica, e no seu cúmulo o contexto biomédico, é uma que se baseia na objetividade e isso é ‘alcançado’ através da despersonalização dos processos. No entanto, refrescantemente, práticas com as de Hunter, a de Menezes e dos Landra levam-nos a questionar a identidade - diria mesmo até a personificação - do que é ser. Podemos assim argumentar que esta personificação (e muitos outros aspetos das suas práticas) é uma forma de dar corpo à heterogeneidade tão típica dos discursos pós-humanos e pós-naturalistas. Em adição, todas estas práticas têm uma componente técnica muito especifica que depende de diversas tecnologias, algumas de ponta, outras ancestrais, e avançam discussões sobre o que podemos considerar manipulação ou cuidado. Ambas estas ações (manipular e cuidar) são (altamente) intrínsecas aos ofícios da arte e da ciência. Podem funcionar de forma complementar ou opostas, homogéneas ou heterogéneas. Muitos artistas referem-se às suas obras como os seus bebés, e que montar uma exposição é como parir um filho (não sei se partilho desse sentimento pois não tenho filhos, mas percebo a analogia). Esta analogia vem da ideia do ato de criar algo com uma certa alma, e acredito que a biodiversidade e a biodiversidade do pensamento são os critérios mais importantes para a proliferação de conhecimento que construa espaços que nos tragam um bem-estar contagioso, integrado e rigoroso. Do ponto de vista da sociedade médica ocidental focada nos humanos, a World Health Organization já reconheceu a importância sistemática da interseccionalidade da heterogeneidade da vida através do conceito One Health (Uma Saúde). Formaram um painel de experts em 2021 para consultoria e ‘investigação do impacto da atividade humana no ambiente e habitats selvagens, e como isso gera ameaças sanitárias. As principais áreas incluem a produção e distribuição de comida, urbanização e desenvolvimento de infraestrutura, comércio e tráfego internacional, atividades que levam à perda de biodiversidade e mudanças climáticas, e aquelas que põem pressão na base dos recursos naturais.’ [15] Este conceito de One Health, é já muito antigo, especialmente para as comunidades indígenas, que por norma praticam alguma forma de xamanismo. O xamanismo é mesmo isso, o reconhecimento da nossa união com a natureza e consequentemente o receber de informações para-dimensionais que nos levam a manipulá-la com o intuito de cuidá-la. Não de um ponto de vista de que a ‘vamos salvar’, mas de um ponto de vista integrado, em que o próprio cuidado é uma ferramenta para o nosso bem-estar. O bem-estar é uma ideia bem romântica, no entanto, o conceito de cuidado é crucial para que mesmo que as necessidades de diferentes agentes entrem em conflito, ou se hibridizem, ou se transformem, haja um espaço seguro para que estas ideias sejam expressas e postas em prática. O Institute for Postnatural Studies, fundado em 2020, em Madrid, Espanha, define que ‘um espaço seguro não é seguro porque seja livre de conflito ou de danos, mas porque é permanentemente aberto a que o processo de reparação e de cura seja concretizado’ [16]. Todos nós precisamos de cura, se não, não estávamos no caos onde nos encontramos. E fecho este texto com uma citação, desta vez de uma autora que não pode deixar de ser mencionada quando falamos de cuidado no contexto da estrutura de pensamento pós-humano e pós-natural, Maria Puig de la Bellacasa. Ao falar de como denominar constituintes pós-humanos, ela escolhe falar de ‘mundos mais do que humanos’. Um testemunho que partilho de como a linguagem importa, especialmente se queremos pelo menos tentar que o mundo não sofra de um esgotamento nervoso! Ela escolhe esta terminologia e não o pós-humanismo porque dessa forma descreve ‘de um só fôlego, não-humanos como as coisas, objetos, outros animais, seres vivos, organismos, forças físicas, entidades espirituais, e humanos. Englobar este escopo ontológico é tão vital como se está a tornar indiscutível (...) [pois] em tempos que as tecnociências e as culturas naturais se unem, os meios de vida e destinos de tantas espécies e entidades neste planeta estão inevitavelmente enredados’17 [17].
Não à intolerância, mas precisamos de Karl Popper!
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Notas [1] Em Feminism and Psychoanalysis: A Critical Dictionary histeria é definido como causado pela ‘divisão de um discurso, e sujeito desejante’ (Ragland citado em Wright, Elizabeth (1992), Feminism and Psychoanalysis: A Critical Dictionary, Willey-Blackwell)
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Legendas completas
[*] Astrodesia, parte do projeto Sentient Clit: The Pussification of Biotech por WhiteFeather Hunter e Jiabao Li, com contribuições de Lera Niemackl, células menstruais da artista diferenciadas por tipos neurais. © WhiteFeather Hunter [**] Sentient Clit: The Pussification of Biotech (WhiteFeather Hunter, Jiabao Li e Lera Niemackl) vista da instalação no Duende Art Museum, China, apresentado como parte de Progenitorial Hysteresis por Jiabao Li. © Jiabao Li
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