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BIENAL DE FOTOGRAFIA DO PORTO: REABILITAR A EMPATIA COMO UMA TECNOLOGIA DO OUTROSARA MAGNO2023-07-10[for the English version click here]
O momento em que vivemos obriga-nos a reconsiderar a forma como nos relacionamos uns com os outros. Legados coloniais e projectos que promovem a globalização continuam a ser os discursos dominantes que nos obrigam a comprometermo-nos e a ligarmo-nos uns aos outros, ao mesmo tempo que assistimos a um reforço das fronteiras nacionais, o que reduz as possibilidades de nos envolvermos e de empatizarmos com os outros. O outro distante existe maioritariamente através de imagens ambíguas, filtradas e mediadas, com as quais tendemos a não conseguir empatizar. Em Regarding the Pain of Others, Susan Sontag escreve: "O nosso fracasso é o da imaginação, da empatia: não conseguimos conceber esta realidade" (Sontag 2003). Dado o papel da fotografia mais convencional como uma disciplina que produz documentação sobre a realidade, poder-se-ia pensar que esta iria promover a nossa identificação emocional com os outros. Em vez disso, argumenta Sontag, a mercantilização da fotografia conduziu a, não só ao que tem sido considerado como uma exploração engenhosa das imagens pela sociedade burguesa, mas também a uma falta de empatia no discurso e prática dos media. Actos de Empatia é o título da Bienal'23 Fotografia do Porto, um ambicioso conjunto de exposições que propõe problematizar a falta de empatia na nossa cultura e sociedade contemporâneas e ao mesmo tempo propõe reverter esta situação. Se o choque epistemológico da fotografia nos ensinou a desconfiar das imagens também nos ensinou que não podemos viver sem elas, tal foi a forma como se enraizaram no tecido da nossa sociedade. Como conciliar, então, a fotografia e a sua linguagem expandida de imagem em movimento, animação, visão em alta definição e interatividade, com a nossa capacidade de empatia com os outros? - este é, creio, o maior desafio que nos é colocado por esta edição da Bienal. Para abraçar este desafio, precisamos de reconhecer que a fotografia no seu sentido mais lato não é, nem pode ser entendida num sentido redutor, como simples documentação da realidade. Ao invés, somos convidados a reencontrar a "arte na era da reprodução mecânica" de Walter Benjamin (1935), um texto provocador onde o autor posiciona a fotografia como o meio artístico por excelência que caracteriza a nossa sociedade contemporânea; como um meio que alterou radicalmente a nossa relação com o mundo, incluindo os meios de o conhecer. A fotografia contemporânea não é estática; na sua forma expandida, em particular, a fotografia é imagem em movimento, que circula por vários canais, participando naquilo a que Jacques Rancière (2004) chamou a "distribuição dos sentidos", provocando um curto-circuito na nossa perceção do passado e do futuro, e das culturas do Norte e do Sul Global. A fotografia trabalhada a partir do léxico tanto das tecnologias convencionais como das tecnologias mais recentes apresentadas no âmbito desta Bienal, também se posiciona em diálogo com a ideia que Ariella Azoulay apresenta no seu livro The Civil Contract of Photography (2012), no qual ela argumenta que a fotografia não se limita ao objeto fotográfico mas inclui a relação triangular entre fotógrafo, sujeito e espetador. Nas palavras de Azoulay, “O Contrato Civil da Fotografia é uma tentativa de ancorar o espetador no dever cívico para com as pessoas fotografadas que não cessam de “lá” estar, para com os cidadãos despossuídos que permitem, por sua vez, repensar o conceito e a prática da cidadania” (Azoulay 2012, 17). Ao longo do leque diversificado de exposições que constituem esta Bienal, somos constantemente convidados a reavaliar em profundidade o nosso entendimento do estatuto ético da fotografia, da nossa responsabilidade cívica e do nosso papel enquanto espectadores. Aprendemos que a fotografia é inseparável das muitas catástrofes da história e que gera um conjunto de relações muito particular entre indivíduos e os poderes que os governam. O "contrato civil" desta Bienal, por conseguinte, é aquele que promove uma mudança individual, e que tem a intenção de reparar a nossa capacidade de empatia não só com os outros, mas também com as principais questões globais que assinalam a necessidade de uma mudança colectiva urgente.
Zoom in A primeira edição da Bienal Fotografia do Porto, "Adaptação e Transição" (2019), começou por colocar a questão: "De que forma podemos colaborar na transição para uma sociedade mais adaptada e sustentável? Como pode o pensamento e a criação artística contribuir para expandir o discurso em torno destas questões e traduzi-las em ação?" Desde então, esta Bienal produzida pela Ci.CLO, uma organização sediada no Porto, tem seguido este princípio de aliar a prática artística a uma intenção de mudança social. O programa da Bienal interliga projectos paralelos ou plataformas de produção artística, nomeadamente os projectos Vivificar, Sustentar, Conectar e Expandir. Cada verbo de ação serve para descrever uma das várias actividades que decorrem no período entre as apresentações públicas da Bienal que acontecem em colaboração com diferentes municípios regionais de Portugal. Cada um destes projectos tem um programa de exposições próprio em colaboração com espaços públicos e com a comunidade local. Este ano foi a terceira edição da Bienal evidenciando seis anos de trabalho conjunto de artistas nacionais e internacionais com as comunidades locais com base na partilha de conhecimentos e na promoção do cuidado e da criatividade. Mas, acima de tudo, evidencia um trabalho que se destina a reabilitar a empatia.
Forest Mind, Ursula Biemann. Bienal'23 Fotografia do Porto: 'Speculative Ecologies' exposição no Centro Português de Fotografia, curadoria de Jayne Dyer e Virgílio Ferreira.
A relação entre a fotografia e a empatia - aprendemos através do trabalho destes artistas - é complicada. Os cenários especulativos que eles criam ilustram a ambiguidade que existe nas imagens que retratam catástrofes – por exemplo, imagens de massacres de comunidades indígenas devido a economias extrativistas – que tanto podem evocar empatia como compaixão. Estes são dois estados emocionais muito diferentes que podemos aqui considerar. Para Hannah Arendt (1990), por exemplo, a compaixão é a demonstração silenciosa de co-sofrimento: "a compaixão fala apenas na medida em que tem de responder diretamente ao som e aos gestos expressivos através dos quais o sofrimento se torna audível e visível no mundo" - o que Arendt considera verdadeiramente indesejável para o discurso político. A empatia, por outro lado, pode ser definida como a capacidade de se identificar ou compreender a perspetiva, as experiências ou as motivações de outro indivíduo, bem como de compreender e partilhar o seu estado emocional. A empatia implica, portanto, um duplo movimento: a projeção do eu e a compreensão do outro. A empatia, neste sentido, é mais útil para a ação e a mudança socio-politica que essas imagens evocam, pois não se limita a ligar-se ao outro no seu sofrimento, mas obriga-o a falar e a ultrapassar o seu sofrimento. Actos de empatia, mais do que de compaixão, é o que vemos fortemente representado na didática e na poética cuidadosamente equilibradas nos filmes de Ursula Biemann, bem como na estética pop e no ativismo político articulado através da animação e da imagem em movimento de Hyeseon Jeong e Seongmin Yuk, que contrasta mas também complementa a abordagem documental de Eliana Otta que recorre à fotografia e ao vídeo interactivo. Empatia, para estes artistas, significa "ficar com o problema", no entender de Donna Haraway. Nas palavras de Haraway: "Nós - todos nós na Terra - vivemos em tempos perturbadores, tempos misturados, tempos problemáticos e turbulentos. A tarefa é tornarmo-nos capazes, uns com os outros, e em todo o tipo de solavancos, de responder" (Harraway 2016, 1). De acordo com esta perspectiva, os artistas que se envolvem profundamante com outra pessoa, que sentem compaixão pelo outro, podem ter dificuldade em separar as suas próprias necessidades e desejos dos da outra pessoa, o que os pode levar a não conseguir empatizar com o que a outra pessoa realmente precisa ou quer, interferindo desta forma nas suas decisões políticas. O mecanismo de empatia que vemos implementado no programa desta Bienal parece, no entanto, ter um objetivo mais profundo: o estado de emancipação ou autonomia do sujeito representado, ou mesmo do espetador.
The knight of the long knives I, Athi-Patra Ruga.
A exposição Deep Blue, comissariada por Mónica de Miranda, ilustra bem a forma como a empatia pode conduzir a um sentimento de emancipação ou autonomia dos indivíduos representados. Nesta exposição reúnem-se os artistas Athi-Patra Ruga, Buhlebezwe Siwani, Faisal Abdu'Allah, Helena Uambembe, Kudzanai Chiurai, Mónica de Miranda, Sandim Mendes, Sethembile Msezane, Silvia Rosi, Xaviera Simmons e Zineb Sedira, cujas obras se distribuem por várias salas do Museu do Porto - Palacete dos Viscondes de Balsemão. Muito do trabalho que encontramos aqui são fotografias de grandes dimensões que documentam actos performativos que podemos identificar com o que Kodwo Eshun descreve em More Brilliant than the Sun (1998) como Black Accelerationism: uma tentativa intencional de eliminar certos hábitos de pensar e sentir no sentido de imaginar um novo futuro que tenta realizar-se no presente. Este grupo de artistas propõe-se a ultrapassar certas barreiras socio-politicas para criar um espaço de autonomia e emancipação do indivíduo, uma ideia que pode ser vista em cada uma das suas obras, bem como na exposição como um todo.
O Carpinteiro, Helena Uambembe, 2018.
"A empatia não deixa a pessoa onde a encontrou pela primeira vez. Se funcionar (como uma tecnologia do outro), então atrai-a para outro lugar e para um estado diferente" (Lobb 2015, 232). Deixar alguém num estado diferente é o que marca a diferença entre empatia e compaixão. Outro exemplo de empatia dentro do contexto da Bienal é a exposição com o título À Luz ou à Sombra do que Foi e Continua a Ser - uma iniciativa da Casa Árabe de Espanha que reúne várias perspectivas contemporâneas do Líbano, precisamente trinta anos após a guerra civil que assolou o país. A complexidade dos temas representados em cada uma das fotografias desta exposição patente na Casa Comum - Reitoria da Universidade do Porto, convida-nos a considerar que o que é necessário não é apenas uma identificação parcial com o outro mas, acima de tudo, uma compreensão das suas diferenças. As fotografias escolhidas cuidadosamente para esta exposição promovem uma espécie de vontade de empoderamento (will to empower), no sentido que Lobb refere, pois foram captadas por artistas que estiveram sujeitos à mais recente catástrofe libanesa: aquilo que ficou conhecido como a explosão de Beirute de 2020. No limite, a vontade de empoderamento tem a intenção de preparar o outro para o momento em que a pessoa que empatiza cessará a sua autoridade e se inicia o processo em que o outro se torna ele próprio uma autoridade. Ao contrário da vontade de poder (will to power) - que é uma certa forma de dominação do outro com um determinado fim - a vontade de empoderamento irá sempre conduzir a um fim incerto.
Zoom out Eis o paradoxo da autonomia: se a empatia ajuda a criar condições de autonomia para o ‘outro’, o empatizante não pode esperar que este, uma vez autónomo, se comporte de uma determinada maneira. Se a empatia acontecer como uma "tecnologia do outro" (Lobb 2015, 230), pode provocar um curto-circuito na emergência do outro em que este pode finalmente articular verbalmente o seu protesto e sinalizar a natureza das suas próprias necessidades. Assim, podemos vislumbrar uma possível conclusão: Actos de Empatia têm o potencial de ativar formas de reflexividade e consciência progressiva que podem conduzir a uma forma de autonomia crítica e a um efeito de empoderamento no espectador, mas, no final, é totalmente impossível medir a extensão do seu impacto no mundo. O que torna actos de empatia possíveis? Talvez possamos dizer que se trata de uma tarefa comum de compreender o mundo. Embora apenas algumas das exposições tenham sido aqui mencionadas para resumir as principais questões levantadas pelo tema da empatia, na verdade, esta Bienal apresenta um programa muito ambicioso que reúne o trabalho de setenta artistas e catorze curadores de vinte e sete países. Este projeto merece uma atenção detalhada (pois é um passo importante na problematização da nossa falta de empatia). Em última análise, não podemos deixar de notar que talvez seja melhor compreender o trabalho que o Ci.CLO faz indiretamente, recorrendo à parábola de um grupo de cegos que encontra um elefante. Cada elemento do grupo toca, sente e reconhece uma parte do elefante, declarando-a semelhante àquilo em que toca: a tromba, a presa ou a cauda. As pessoas que conseguem ver o elefante não poderão dizer que o conhecem melhor do que aquelas que não o conseguem ver. Isto porque, embora possam ver a cor cinzenta da sua pele, podem não estar familiarizadas com a sua textura ou cheiro. No final, nenhum dos elementos do grupo pode afirmar que conhece verdadeiramente a totalidade do elefante, apenas são capazes de nomear elementos particulares que conhecem, sentem e reconhecem. Talvez nem sequer seja possível combinar estes relatos parciais numa imagem completa do elefante como um todo - ou como um mundo. A forma como cada um de nós apreende o mundo molda, em parte, as coisas que conhecemos e com as quais empatizamos. O projeto de tornar o mundo conhecível é paradoxal neste sentido: nada indica que os seus componentes constituem o todo. Como tal, esta Bienal centra-se em algumas esferas de conhecimento, de construção de empatia, em vez de pretender compreender o mundo inteiro de uma só vez. A produção artística, assim como as técnicas fotográficas envolvidas nos processos artísticos, permite-nos tornar parte do mundo conhecível. O que podemos retirar desta Bienal é que o estado atual das coisas, aquilo que viemos a designar como o Antropoceno, é particularmente preocupante. Cada exposição individual da Bienal aborda pequenos elementos de um problema mais vasto, mas trabalha em colaboração, como uma tarefa comum, para juntar as partes. Não tanto para produzir uma imagem perfeita do todo, mas para compreender as diferenças sensoriais de algumas partes do mundo. A tarefa comum é, através de actos de empatia, conhecer o mundo e entender o nosso lugar nele. A noção de empatia pode ser pensada como uma ponte, ligando-nos ao mundo e convidando-nos a fazer mudanças concretas, passando da nossa atual indiferença para um novo conceito de responsabilidade cívica.
Sara Magno
Referências bibliográficas Arendt, H. (1990) On Revolution. Penguin Books: London Azoulay, A. (2008) The Civil Contract of Photography. The MIT Press: Cambridge Lobb, A. Technologies of the Other: renewing empathy between Foucault and psychoanalysis. Foucault Studies, No. 20, pp. 218-235, December 2015 Slote, M. (2007) The Ethics of Care and Empathy. Routledge: New York Sontag, S. (2003) Regarding the Pain of Others. Picator, New York Eshun K. (1998) More Brilliant than the Sun: Adventures in Sonic Fiction. Quartet Books, London Haraway, D. (2016) Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Duke University Press: Durham and London. Rancière, Jacques. 2004. “Artistic Regimes and Shortcomings of the Notion of Modernity.” In The Politics of Aesthetics. The Distribution of the Sensible, translated by Gabriel Rockhill. 157-170. London and New York: Continuum. |