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AVELINO SÁQUASE NADA![]() GALERIA FERNANDO SANTOS - ESPAÇO 531 Rua Miguel Bombarda, 531 4050 – 379 Porto 29 JUN - 07 SET 2019 ![]() ![]() Quem por estes dias passar pela rua Miguel Bombarda, no Porto poderá visitar o Espaço 531 da Galeria Fernando Santos onde se encontra uma exposição de trabalhos recentes de Avelino Sá. Era assim que, há algumas décadas, os jornais apelavam à visita a determinada exposição. É necessário parar e não apenas transitar ou deambular por ali. A pausa requerida é condição sine qua non para ver arte, mas, neste caso, ela é mais do que isso, é parte intrínseca do processo do espectador. Explico porquê. Dezasseis peças de pequena dimensão alinham-se na parede do lado esquerdo da galeria, enquanto à direita apenas dois trabalhos, de idêntica dimensão, pontuam o espaço e fornecem algumas chaves de leitura da totalidade das obras expostas. Ao fundo, mais duas peças, de maior dimensão, fecham a exposição. É o que verá, de relance, o transeunte pouco empenhado. Aquele que se detiver na entrada verá manchas de cor, dispostas cuidadosamente, num ritmo agradável ao olhar. Nenhum viu ainda pintura. Será preciso entrar e aproximar-se de cada obra para que a pintura se manifeste. Subtil, discreta, parcimoniosa. Fascinante, no entanto, pela delicadeza da sua matéria, pela suavidade de pigmento e cera, pelo brilho macio laboriosamente atingido. Estes atributos concorrem para dar a esta pintura uma espessura e profundidade que têm mais a ver com uma dimensão temporal do que espacial ou mesmo objectual. A encáustica sobre madeira – técnica que o artista tem privilegiado ao longo dos anos – e o relevo negativo ou a incisão que lhes é inerente conferem a estas peças um carácter objectual, um valor escultórico, como tem sido referido, e dota-as de uma densidade inegável, de uma presença volumétrica e corpórea. No entanto, a sua construção evoca mais o lastro do tempo do que a espacialidade pictorialmente entendida. Aqui ter-se-á alcançado a superfície e o corpo material da pintura. Neste ponto, e não obstante o lado atraente destes trabalhos, a sua visão pode tornar-se deceptiva. Com ela chega-nos uma escrita indecifrável; às vezes, a “figuração da escrita”, o desenho como quem escreve e a escrita como quem desenha; outras vezes, uma escrita reconhecível, mas truncada, fragmentada; outras ainda, letras dispersas antes de formarem a palavra; finalmente, um texto coberto pela matéria que invade a superfície, quase apagando os gestos anteriores da mão que escreve. Sobre essa superfície apercebemos outros elementos que fazem parte dos dispositivos da escrita, particularmente linhas paralelas que recordam uma folha pautada. A escrita é gravada na mesma cor do fundo, apenas de tonalidade diferente, o que contribui para o seu quase apagamento, o seu “quase nada”, como informa o título escolhido. É então que já não nos limitamos a ver, queremos ler, queremos compreender, mas nem sempre isso nos é concedido. Escrita e pintura constituem-se em mútuas interferências de ocultação e desocultação, de encobrimento e revelação. Por esta altura, o visitante percebeu que a pintura não se esgota nos seus elementos visivelmente discerníveis. Desejo e paciência tomam conta dele. A descoberta da arte de Avelino Sá está fora da galeria, tal como o sentido último do trabalho do pintor se encontra antes, durante e depois da criação destes objectos, num continuum artístico, num devir. Um caderno de referências – de poetas, escritores e pensadores – acompanha o artista. Robert Walser (1878-1956), Paul Célan (1920-1970), Matsuo Bashô (1644-1694) estarão entre os mais importantes e, no que se refere à presente exposição, o primeiro é determinante. Pintura, leitura e escrita num processo único. Por isso, no atelier do artista, os livros daquele escritor ostentam pingos de cera que caíram inadvertidamente sobre as suas folhas abertas durante a produção das encáusticas. Depois de sair da galeria, o visitante percorrerá o seu caminho numa deriva poética e filosófica, levando na memória a obra de Avelino Sá. O seu conhecimento fortalecer-se-á no diálogo permanente entre essa memória e a leitura. E identificar-se-ão, talvez, algumas das palavras e das frases que inscreve no seu trabalho, os títulos das obras, as imagens literárias e visuais que propõe, um caminho, uma floresta, uma montanha, a neve, os lugares de um passeio, configurações e contornos de um universo que se tornará progressivamente familiar. E porque a caminhada errática de remissões é imparável, admito, digo eu, que o visitante possa, mais tarde, ler de outra forma W. Wordsworth (1770-1850), H. D. Thoreau (1817-1862), W. Benjamin (1892-1940) ou Peter Handke (1942). E foi nesta errância que não pude deixar de lembrar um autor que li há alguns anos. Trata-se do geógrafo Jay Appleton que, no clássico The Experience of Landscape (1975), classificou as paisagens em função de dois comportamentos de sobrevivência do sujeito: o acto de observar (ligado ao panorama) e o acto de não ser observado (ligado ao refúgio), comportamentos inatos que se transformariam em quadros de referência culturais e em compromissos estéticos. A teoria do panorama-refúgio parece definir o modo de estar de Avelino Sá: é o próprio quem sai do campo de visão, retira-se, protege-se para assim exercitar a percepção do horizonte e da paisagem, fundada nas suas leituras. A maior parte dos trabalhos preparados para esta exposição aprofundou um projecto apresentado no Espaço Adães Bermudes, no Alvito, cujo catálogo, com textos de Mariana Marin Gaspar e Maria de Fátima Lambert, se recomenda. Na verdade, o projecto teve início em 1992 com a obra Vertigem (Robert Walser) e não deverá ficar por aqui.
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