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COLECTIVAPara o cego no quarto escuro à procura do gato preto que não está láCULTURGEST Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, Rua Arco do Cego 1000-300 Lisboa 29 MAI - 29 AGO 2010 A POTÊNCIA DO ESCURO (Sobre Liberdade, Dúvida e Sentido)1. A minha primeira visita à exposição (fui lá duas vezes) foi importunada por uma inesperada visita guiada; à entrada não me apercebi que aquele grupo me iria perseguir no meio da arte – por muito que apressasse o passo e a atenção, que descurasse salas atrás de salas para depois lá voltar, acabava sempre acompanhado, de perto, por uns fugitivos, de longe, pela voz da guia, que se interpunha na experiência, e que, digamos, como uma lanterna, ia iluminando a escuridão peça a peça. Acontecer uma visita guiada numa exposição com este carácter parece ser paradoxal, pois o pressuposto conceptual do comissário era o de querer proporcionar uma experiência que não fosse espartilhada pela informação. Quer dizer, Anthony Huberman, defende que a informação constrange a liberdade do espectador, e que, ao contrário, a confusão e o não-conhecimento estimulam a curiosidade e a mudança, como se pode ler no ensaio solteiro do catálogo da exposição (objecto muito elogiado, mas quanto a mim algo maneirista, com demasiados tiques inconsequentes); confusão e não-conhecimento estimulam, diria eu, a potência de cada peça. E a guia, como é suposto e bem, ia debitando informação sobre peças e artistas, e por proximidade e convivência, a escuridão ia-me sendo negada. 2. “Deteve-o um quarto; nesse quarto, uma só flor numa taça de porcelana; ao primeiro toque as pétalas antigas desfizeram-se. no segundo andar, no último, a casa pareceu-lhe infinita e crescente. A casa não é assim tão grande, pensou. Aumentam-na a penumbra, a simetria, os espelhos, os muitos anos, o meu desconhecimento, a solidão.”(1) O escuro, a penumbra, o desconhecimento, aumenta a casa. Quem tem medo do escuro, tem-no porque enche a luz vazia com acontecimentos prodigiosos; têm medo porque não suportam o vazio, não acreditam nele; como desconhecem, inventam. Este medo é uma máquina de povoar escuros com o inexistente – de um zumbido de ar, percebe-se o esvoaçar de um fantasma, do tremelicar das folhas de uma planta, uns passos estranhos, de um estalido da madeira, um trinco a abrir, e por aí fora – e o amedrontado vai ouvindo tudo, e o suor arrefece. A sala enlutada é afinal um espaço engendrador dos maiores perigos, dos encontros mais inesquecíveis – da alma perdida e incerta ao ladrão terreno. E agora se percebe como o escuro expande um espaço – através da ignorância e da solidão, do medo e do susto. O escuro atiça o medo, e este a imaginação. “Na presença de uma realidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação”, lê-se num aforismo de Wallace Stevens. 3. O escuro é a cor da potência, diz-nos Agamben (2) lendo o De Anima de Aristóteles, o que se percebe, pois o escuro nunca nos aparece como limite intransponível ou fechamento; pelo contrário, o preto do escuro é sempre oportunidade ou perigo, buraco ou abismo, mas sempre abertura. O escuro inquieta-nos por ser uma proposta de liberdade, uma indeterminação, o desconhecido (o salto no escuro). O escuro é a cor da potência e o lugar por excelência da dúvida, que por sua vez, é a sua figura mental; a dúvida é a experiência da potência no pensamento. 4. Ao contrário do que se poderia julgar, a dúvida é o que faz de nós potentes, ou, por outras palavras, é o que nos torna poderosos, o que nos dá poder, na medida em que, na dúvida, podemos poder. Enfim, se podemos, é porque podemos poder; é porque temos poder para isso. A dúvida existe quando se torna possível a escolha, e quanto maior a escolha maior a liberdade. A dúvida é pois um reflexo de liberdade. A dúvida é a encruzilhada, é o que permite vários caminhos, que por sua vez se bifurcam. Se há dúvida não há certeza, e todos sabemos como uma certeza pode ser perniciosa, “O domicílio e a secretária são ideais para a dúvida e têm a vantagem acrescida de impedir que enlouqueçamos, o que, bem vistas as coisas, não está nada mal, sobretudo se pensamos, como eu penso, que nunca será uma dúvida o que nos enlouquecerá, mas sim uma certeza, qualquer certeza (…).” (3) O homem que possui o sentido do possível (a potência) vê não só o futuro como abertura, mas mais significativamente, a própria história como incerta, duvidosa. Num certo sentido também ela permanece aberta. Assim, este homem é o homem com o tempo indeterminado; é, poder-se-á dizer, o homem livre. (4) 5. Ora, é esta ideia de liberdade que parece ocupar as intenções de Huberman; o problema é que, no escuro, estendemos os braços e abrimos as mãos e demoramos os passos, mais como reflexo de sobrevivência, cuidado de si e preocupação, do que por curiosidade, busca de conhecimento ou desejo. O problema é que, no escuro, não procuramos o gato mas antes a luz, a não ser que tenhamos sido nós a desligá-la; quer dizer, a não ser que a escuridão seja já ela uma consequência da nossa liberdade. Já aqui escrevi (5) que o espectador livre, emancipado, não procura o significado de uma obra, antes, indaga como pode esta ser-lhe útil, como pode ele, no fundo, ligar a arte à vida. Mas este impulso emancipador deve partir do próprio espectador e não de uma obra ou de uma intenção de um comissário ou de uma exposição. Como diz Rancière, filósofo também citado por Huberman, “uma arte pode ser emancipada e emancipadora (…) quando deixa de querer emancipar-nos.”(6) 6. Há dias, numa visita a um hospital, fui ouvindo as histórias habituais de enfermidades e males de todo o género, e ouvi que alguém algures tinha perdido os sentidos; anotei – perder os sentidos é como um desmaio semântico; desmaio semântico, perder os significados, perder o contacto com o mundo, perder a direcção, perder a orientação – desorientados seremos mais livres? Lembrei-me de Cioran, “O pessimista vê-se obrigado a inventar todos os dias novas razões para existir: é uma vítima do ‘sentido’ da vida.”(7) O sentido é afinal o que obvia o suicídio. No escuro, na dúvida, na desorientação, a procura de um sentido (espacial e conceptual) aproxima-nos daquela estratégia matinal de sobrevivência do pessimista. 7. Parece-me que a exposição promete mas não cumpre. O que leio à partida é uma preocupação com a utilidade e finalidade possíveis da arte – os pressupostos do comissário parecem perguntar, para que serve a arte, ou pode o espectador ser livre? Dentro da galeria porém, essas perguntas não se ouvem. Claro que é o espectador a montar na sua cabeça a instalação de Matt Mullican, e a completar os interstícios entre os flashes na projecção de Nashashibi/Skaer, e a efabular com Fishli & Weiss, mas parece pouco; pelo caminho vamos ainda encontrando peças de carácter mais ou menos lúdico, a tentar o humor quase sempre pelo lado do absurdo. No final somos brindados pela bela e silenciosa instalação de Hans-Peter Feldman – simplicidade e inteligência, dispositivo todo à mostra, numa prova de clareza e eloquência; e vamos vendo as danças na parede, tocando-se, afastando-se, sobrepondo-se; as formas repetem-se numa cadência lenta e triste, mas parecem sempre diferentes; e espantados, vamos adiando a saída. 8. Por fim lembrei-me de Quignard, “Conferir sentido ao que se ama é mentir.” (8) NOTAS (1) Jorge Luis Borges, “A Morte e a Bússola”, in Ficções, Lisboa, Editorial Teorema, 1998, p.131. (2) Giorgio Agamben, “On Potentiality”, in Potentialities, Stanford, Stanford University Press, 1999, p.181. (3) Enrique Vila-Matas, Paris Nunca se Acaba, Lisboa, Editorial Teorema, 2005, p. 75. (4) Sobre Potência e arte, ler “A Obra Potencial”, in www.lightinthefridge.blogspot.com/2008/08/obra-potencial-4.html (5) Jacques Rancière, Literature, Politics, Aesthetics: Approaches to democratic Disagreement interviewed by Solange Guénoun and James H. Kavanagh, Substance 29.2, University of Wisconsin Press, 2000, p.3. (6) Filipe Pinto, “Para uma crítica da interrupção”, Artecapital in www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93 (7) E. M. Cioran, Silogismos da Amargura, Lisboa, Livraria Letra Livre, 2009, p.13. (8) Pascal Quignard, Terraço em Roma, Lisboa, Editorial Notícias, 2002, p.59.
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