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DANIELLE MCKINNEYHAVENGALERIE MAX HETZLER Bleibtreustraße 45 & 15/16 10623 Berlin-Charlottenburg 07 SET - 26 OUT 2024
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A pintura de Danielle Mckinney situa-se no limiar entre quietude e desassossego, claridade e escuridão, reunindo estas esferas de modo inesperadamente harmonioso. Trata-se de uma obra simplesmente bela, como se, numa concepção kantiana da obra de arte, emergisse do acordo entre uma forma sensível concebida para exprimir uma ideia e uma ideia concebida para ser expressa enquanto forma. Com formação em fotografia, Mckinney compõe e encena o belo para o captar, mas utiliza como meios o pincel sobre a tela, o óleo sobre o linho. Mckinney é reconhecida por se dedicar, quase exclusivamente, a retratos de mulheres negras, um corpo de trabalho que assim transcorre as suas próprias realidade e identidade. É, justamente, um valioso exemplar desse trabalho que encontramos na sua primeira exposição individual na Galerie Max Hetzler, em Berlim, entre 7 de Setembro e 26 de Outubro. Através de onze pinturas, datadas deste ano, Mckinney revela e expõe as retratadas, os seus corpos nus e os seus espaços privados, convidando-nos a entrar, tornando-nos voyeurs. As obras são apresentadas pela galeria como “story paintings”, pinturas de histórias, onde “cenas interiores capturam momentos de introspeção humana com um lirismo pictórico”. Com efeito, o trabalho de Mckinney é lírico, emotivo e sensorial, tanto quanto cinematográfico. Apresenta-nos personagens anónimas em cenários simples, embora dramáticos, drama este acentuado pela predominante sombra e pela técnica da pintura, de pinceladas largas, encorpadas, expressivas. Cada obra narra uma história, sugerindo e instigando diferentes leituras e interpretações. Trata-se de um trabalho profundamente envolvente, especialmente para o olhar feminino. Foi assim que me senti interpelada desde a primeira pintura que encontrei na exposição, “Afterglow”. Experienciei um sentido de familiaridade, para o qual contribui a representação do domínio doméstico, o que poderá ser interpretado enquanto reflexo da sociedade patriarcal. A mulher e a casa, a mulher em casa.
Danielle Mckinney, Afterglow, 2024. Óleo sobre linho. 61 x 45.7 cm. © Danielle Mckinney / Cortesia da artista e Galerie Max Hetzler Berlin | Paris | London | Marfa. Fotografia: Pierre le Hors
Numa outra perspetiva, e sob o prisma de uma análise formal e visual, identifico que as várias pinturas de Mckinney são semelhantes entre si. Destaca-se a escuridão, cujo efeito imediato é o ímpeto de nos aproximarmos para visualizar, com precisão e detalhe, as representações em causa. Ao fazê-lo, apesar da ausência de claridade, pois a ela se sobrepõe uma neblina profunda, as silhuetas revelam-se nítidas e distintas, na medida em que os seus contornos se encontram cuidadosamente demarcados. Não obstante, num sentido geral, prevalece a simplicidade. Aliás, a inteligebilidade inerente às composições de Mckinney constitui um dos principais e transversais elementos do seu trabalho, contribuindo para a sua imediata apreciação estética. Contudo, curiosamente e paradoxalmente à sua herança afro-americana, a artista remete para a tradição da pintura holandesa e espanhola, para o ciaroescuro (a técnica do claro-escuro), e as vanguardas do Modernismo do século XX. Na sua obra “Rhythm with Blue”, reproduz um fragmento de uma das pinturas mais reconhecidas de Henri Matisse, “Danse”, de 1910, um magnífico retrato de corpos femininos nus, em movimento. A influência de Matisse pode ainda ser identificada, na referida pintura de Mckinney, no ênfase dado aos contrastes cromáticos, nomeadamente entre a pele escura da mulher e o sofá bege, no qual ela se estende. Igualmente na simplicidade da composição da imagem e na ilustração não detalhada da figura e do rosto.
Danielle Mckinney, Rhythm with Blue, 2024. Óleo sobre linho. 50.8 x 40.6 cm. © Danielle Mckinney / Cortesia da artista e Galerie Max Hetzler Berlin | Paris | London | Marfa. Fotografia: Pierre le Hors
Uma outra referência de Mckinney é a obra-prima “Olympia”, de Édouard Manet, de 1863, um retrato feminino revolucionário que ultrapassou a abordagem comum da mulher como mero objeto sensual de contemplação, alinhando-se com o movimento feminista que se constituía desde 1848. Ao mesmo tempo, Manet dignificou a prostituta enquanto digna de retratar, apresentando-a forte, confiante, com uma certa autoridade. Quanto ao trabalho de Mckinney, inscreve-se na continuamente urgente e vital luta pela emancipação das mulheres negras. Dito isto, assinalo que não se trata de estabelecer uma correspondência paralela entre tais mestres da pintura e a artista plástica contemporânea, o que constituiria uma análise extremamente generosa. Não obstante, entendo que reconhecer tais referências permite compreender o processo criativo de Mckinney e poderá, inclusivamente, conduzir a uma recepção e a uma experiência estética mais estimulantes e completas.
Danielle Mckinney, Day Dream, 2024. Óleo sobre linho. 29.9 x 30.5 cm. © Danielle Mckinney / Cortesia da artista e Galerie Max Hetzler Berlin | Paris | London | Marfa. Fotografia: Pierre le Hors
Por fim, destaco uma das obras mais distintas da exposição, “Day Dream”, na qual a figura feminina, envolvida em lençóis azuis claros, comporta uma inocência e uma calma etérea que contrastam com as pinturas mais ousadas, tais como “Firefly”, e turbulentas, caso de “White Noise”. Esta duplicidade do trabalho de Danielle Mckinney leva-nos a refletir sobre a ideia de refúgio, o “haven”, conceito que nomeia a exposição e uma das pinturas. Pode um refúgio, um abrigo, um sustento, ser simultaneamente lugar de solidão e de angústia?
Constança Babo
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