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NADIR AFONSOEUTOPIA![]() AP'ARTE GALERIA ARTE CONTEMPORÂNEA Rua de Miguel Bombarda 221 4050 381 Porto 22 MAR - 10 MAI 2025 ![]() A Eutopia nadiriana![]()
No 15º aniversário da Galeria AP’ARTE, Eutopia de Nadir Afonso surge como a celebração mais adequada e exacta para a ocasião (a primeira exposição da Galeria em 2010 fora também dedicada ao artista). Neste espaço podemos voltar a pressentir a intuição harmoniosa que rege os espaços nadirianos, os enquadramentos morfométricos que estabilizam as cidades, que para onde nos viremos, apresentam a sua vasta e multímoda disposição caleidoscópica, de sensações, justaposições, sobreposições e segmentações implicadas num certo e mensurável espartilho geometrizante de figurações, linhas, fórmulas compósitas (linearidade e aproximação à volumetria num plano bidimensional) que atravessam as formas numa incidência persistente e delongada, como uma certa neguentropia lenitiva e suavizadora dos espaços caotizáveis e caotizantes da expressividade urbana. Os guaches Rua Escura e Imponderável (como exemplos entre muitos outros) transmitem-nos o refreamento pulsional alicerçado pela ordenação formalista que se evidencia no confronto entre zonas de inscrição volumétrica e vazios intervalares, investidas como inversão compositiva da infrene e soberana saturação anunciadora de uma totalização do espaço. Por muito que existam (ou pareçam existir) zonas de indiscernimento nos espaços nadirianos, o artista opera sempre, embora pela complexificação, na depuração e concretização de formulações cristalizadas de atmosferas sensíveis.
Nadir Afonso. Rua Escura. Guache sobre papel, 23,5x39,5 cm © Hugo Lagarto Nadir Afonso. Imponderável. Guache sobre papel, 23x37,5 cm © Hugo Lagarto
Atentemos no título da exposição Eutopia. Eutopia é um espaço exterior que materializa os valores locais, suscitando-os como aspiração e medida de construção, mas pensemos a expressão de uma outra forma, pensemo-la através da prefixação eu que se insere na palavra utopia: Eu-topia. Desta forma, pressentimos uma intervenção de aglutinação ou coalescência entre duas posições, embora não necessariamente antitéticas, pelo menos contrastantes. Se de facto, Nadir Afonso escolhe o caminho utópico como a impassibilidade imutável das formas e posições estáveis da incidência sempiterna regedora do universo, as leis geométricas, existe uma constatação da contínua deviniência da estrutura não só puramente ontológica do homem enquanto condição essencial de ser, mas também enquanto ser percipiente e senciente que sente, intui, pressente, conhece e adequa o seu conhecimento numa instrumentalização racionalizante, mas afectada pela carga temporal da voragem transitiva da mudança. Tudo, na vida do homem, parece ser regido pela manipulação da intervenção do acaso ou da problematização contextual de uma certa compreensão limitada de um dado sujeito. Esta impressão ínsita num estrato arqueológico mais denso ou profundo, cuja visão clarificada se anula quando vista à superficialidade desinteressada, contudo, promete-nos uma recuperação da acalmia na turbulência dos redemoinhos e das vagas entrópicas das mutações, levando o artista a efectuar uma operação intransitiva que modula e modela os elementos naturais pela sua imperturbabilidade regedora da codificação construtiva. O homem volta-se para a geometria como as plantas se voltam para o sol [1], pois a geometria é o passo utópico para a estabilização e consolidação da permanência das leis que se manifestam na natureza eutópica. Nadir Afonso, teorizador dos mecanismos sencientes e perceptivos das formas, elaborou não só através dos seus textos, mas também por intermédio do seu corpus de obra uma redefinição estética assente na exclusão das posições antinómicas entre perspectivas e posições materialistas ou idealistas, a favor de uma concretização consistente, depurada e enredada no desvelamento sensorial das leis que subjazem o universo. Deste modo, a sua concepção artística inverte os postulados cognoscitivos (assentes na geometria como fonte puramente matemática e racional) para relevar como metodologia positiva de trabalho hilemórfico artístico, os valores operativos da elaboração e construção formal retirados da natureza experienciada pelo homem, por intermédio da intuição, do pressentimento das formas elementares (geometria natural, a de Tales de Mileto). Através desta cerrada posição quantitativa, as assimetrias e oscilações metodológicas deixadas pela diferenciação histórica entre a perspectiva naturalis (percepção esférica produzida pelo sistema retiniano) e a perspectiva artificialis (artifício matemático-racional criado pelo artista numa solução plana) são neutralizadas, se não mesmo destituídas para despoletar por inerência estética uma impressão de complexificação de espaços e superfícies cromáticas e lineares descentradas de uma referência unívoca, eliminando a ideia de dispositivo totalmente racional. A obra Gronelândia elimina qualquer intervalo de profundidade explicitado pela figuração em escorço, pois em contraste, intensifica os valores cromáticos aliados às identificações fragmentárias de vários elementos geométricos (pressentidos, mais do que explicitamente expressos), rebatidos no espaço topológico, cuja disrupção de centros ou eixos de representação, levam a uma disposição estética categorizada por figurações distintas, mas rigorosamente estruturadas (caso único, pois as restantes obras em exposição representam fases mais tardias da estética nadiriana em que podemos verificar certas intuições perspécticas integradas em representações arquitectonicamente referenciáveis) .
Nadir Afonso. Les gemelles. Acrílico sobre tela, 97x108 cm © Galeria AP’ARTE
Parece numa primeira instância um contraste metodológico, servirmo-nos de uma ideia de Giorgio de Chirico (figura da metafísica poetizante dos espaços estranhamente familiares) para a confiarmos nos desígnios criativos de Nadir (figura da geometria naturalizante dos espaços impassivelmente intuídos), contudo a sua exequibilidade prende-se precisamente com a impressão de uma lei primigénia (enformadora do universo) de um antanho não quantificável pelas acções de Chronos. De Chirico menciona a existência de uma pré-história, visto que nada pode ser considerado absolutamente novo, daí que o mais antigo ou o mais profundo sejam categorias pertencentes à novidade. A experiência do inédito é a percepção do já-acontecido-outrora, pois a descoberta é sempre uma reminiscência [2]. Não será esta pré-história, uma adequação conceptual às leis geométricas enformadoras do mundo mencionadas por Nadir? Estas leis são assim o descobrir ou se quisermos o des-cobrir (tirar o véu, eliminar a película superficial, tirar a coberta) de uma estrutura matricial, de quantificação estrutural, sem idade, nem qualificação histórica, que o artista aplica nas suas estruturas morfométricas, que transitam dos exercícios mais puramente geométricos avant la lettre, até a contaminações paisagísticas de cidades ou ténues figurações cósmicas (Astro) e femininas (Les gemelles), sem nunca incorrer naquilo a que Nadir apelida de espíritos demiúrgicos [3] que transformam a imperfeição em perfeição, nem seres mediúnicos que por transdução sensitiva implementam na experiência cognoscente o mistério inefável dos ecos longínquos da transcendência, mas agentes mediados por leis quantitativas que suscitam pela impressão e delongada maturação das formas e das suas interpenetrações e consubstanciações, num todo irredutível a contaminações discursivas poetizantes (embora elas possam fazer parte da obra como atributos secundários), formas imanentes à própria perdurabilidade das forças telúricas e das suas manifestações primordiais. Esta é a condição paradoxal nadiriana, pois é assaz manifesto o levantamento de uma memória primordial desmemoriada de atributos historicamente reportáveis que se deixa alastrar na obra através de uma transmutação deviniente de formas cambiantes paisagísticas urbanas medidas pelo tempo e através dele, construídas, sedimentadas ou erodidas. As leis geométricas (a angularidade do quadrado, a circularidade eterna do círculo, a ascensão num único vértice do triângulo) são a manifestação polarizadora que tende a afastar os atributos qualitativos (relações de perfeição, de evocação e de originalidade) dos quantitativos (morfometria da harmonia). Se os primeiros se expandem pela contingência epocal, os últimos imobilizam o tempo na pureza cristalina da substanciação harmoniosa, configuradora da essência universal. Mencionamos, no entanto, modalidades temporais, podendo alicerçá-las na Eutopia de Nadir Afonso no acaso comemorativo da Galeria AP’ARTE. Se transcorridos 15 anos, a Galeria parece ter estacado o tempo, na sua reiteração ou na sua imobilização espelhada em Nadir Afonso, o tempo ínsito na obra do artista é a constatação da constância imorredoura, quem em si alberga as rupturas tripartidas (passado/presente/futuro) do jorro manancial temporal numa única instância que tudo absorve, sempre in statu nascendi.
Rodrigo Magalhães
::: Notas [1] AFONSO, Nadir. Da Intuição Artística ao Raciocínio Estético e as Artes: Erradas Crenças e Falsas Críticas. U. Porto Press. 2020, p.95. ![]()
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