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PATRICK H JONES / YOUNG DO JEONGTARGET / GIVE ME YOUR HANDGALERIA DUARTE SEQUEIRA R. da Galeria nº129, 4700-803 Braga 05 OUT - 30 NOV 2024
[A galeria Duarte Sequeira, em Braga, é formada por dois edifícios: uma galeria principal de 900 metros quadrados e um espaço de projecto de 140 metros quadrados, tendo ambos sido concebidos pelo atelier do arquitecto Carvalho Araújo. É também de salientar a existência de um Parque de Esculturas que envolve os dois edifícios e que recebe anualmente exposições e diversos eventos.
Cavalos à solta
O cavalo tem protagonizado múltiplas funções ao longo da história do Homem devido à condição multifacetada da sua natureza associada ao trabalho e à produção agrícola e, por outro lado, granjeado um importante estatuto simbólico pela profunda empatia que a sua presença tem gerado junto das pessoas e das comunidades. O cavalo serviu como animal de carga e como meio de tracção agrícola, tendo sido também usado em combate na guerra, tornando-se, depois, presente na actividade de lazer, através de passeios e da equitação, até que as célebres corridas de cavalos, surgidas em Inglaterra por volta do século XVIII [1], permitiram que o cavalo começasse a ser alvo de estudo científico e de interesse artístico por parte de fotógrafos, como Eadeward Muybridge, em Inglaterra, Étienne-Jules Marey em França, e Ottomar Anschütz na Alemanha, ou mesmo de pintores, como Thomas Eakins, nos Estados Unidos, George Stubbs, em Inglaterra ou mais recentemente um outro artista inglês, Mark Wallinger, com a série de cavalos intitulada Race, Class, Sex (1992). O cavalo, a par da sua milenar componente rural e guerreira, acabou por integrar um reportório de diferentes formas de arte (pintura, desenho, escultura, cerâmica, literatura, fotografia e cinema) devido, sobretudo, à sua beleza e elegância, tendo sido isso que terá seduzido os artistas, coleccionadores e mecenas pelo equídeo. A figura imponente do cavalo está por sua vez associada à imagem do salteador, do “cowboy”, do toureiro, do cavaleiro, do guerreiro, do rei ou do imperador, tendo, mais recentemente, conquistado uma aura particular no mundo das corridas de cavalos através da imagem emblemática do jóquei. Os detalhes morfológicos do corpo do cavalo encontrámo-los nas paredes pré-históricas das grutas e das cavernas em pinturas feitas pela mão hábil do homem primitivo, com espantosa precisão. O pintor inglês Patrick H. Jones (1987, Londres) na sua recente exposição na Galeria Duarte Sequeira, em Braga, procura explorar a expressividade quase sensorial e perceptiva da imagem do cavalo colocado em torno de um dispositivo pictural em que o corpo, o movimento e a imagem de cada cavalo geram uma multiplicidade de ocorrências, que estabelecem entre si uma correlação de forças marcadas por uma espécie de cavalidade impressiva. A dimensão exuberante do cavalo contrasta, por outro lado, com a ausência das figuras do jóquei ou do cavaleiro, ausentes da tela, como ainda pela inexistência de quaisquer acessórios da montaria como rédeas, freios ou estribos, restando-nos apenas para vislumbrar alguns flashses em que surgem números gravados no dorso dos cavalos ou os fragmentos de um tapete axadrezado, sem dúvida detalhes, mas que acabam por tornar estas pinturas num puzzle enigmático de cavalos à solta. Nesta excelente série de pinturas, intitulada Target, Patrick H. Jones procura transmitir sensações através da cor, sempre associada à figura do cavalo que percorre velozmente a tela como se o espectador estivesse diante de um feixe de forças animadas por um impulso animal descontrolado em que deparamos com formas cromáticas espessas que parecem derramar tinta para cima dos cavalos à medida que eles galopam rapidamente até alcançarem, com os seus focinhos apontados para a frente, uma improvável meta, que assinala o começo ou o fim da corrida. Nesta série de pinturas, a tela funciona como um “hipódromo” imaginário de forças contrastantes, à maneira de Bacon, quando ele traçava o redondo da pista e delimitava desse modo o lugar onde a personagem aparecia sentada, deitada, inclinada, de pé ou de cócoras. Do ponto de vista plástico há uma profundidade ampliada e distendida do corpo dos cavalos em movimento, que se projecta de forma espalmada na horizontal e que permite ao pintor forjar uma perspectiva cartografada do que acontece no espaço da tela daí resultando que forma e fundo parecem ter sido captados sobre o mesmo plano. Patrick Jones não pretende mostrar a figura do cavalo comprometida no enredo de um esquema figurativo, mas antes arrancá-la de qualquer trama narrativa e restituí-la a si mesma, enquanto pura imagem de um movimento colectivo fragmentado, que dissolve a oposição entre sujeito e objecto. A figura aqui é a do cavalo, ou seja, a sua silhueta sombreada e achatada à tela como se de uma pele se tratasse. H. D. Lawrence (1885-1930), um dos mais importantes escritores, críticos literários e ensaístas ingleses, no seu conhecido livro sobre Cézanne introduz a singular ideia de maçãneidade, a propósito do inusitado apelo do pintor francês, quando recomendava aos seus modelos “Sejam uma maçã”. Para Lawrence, ser uma maçã quer dizer “põe de parte todos os pensamentos, todos os sentimentos, toda a mente e toda a alma. (…) Porque a percepção intuitiva da maçã é feita de uma forma tão tangível, que ela se estende a toda a sua volta, e não só ao que lhe é frontal”. [2] A maçãneidade de Cézanne, à semelhança da cavalidade de Patrick Jones, resulta, neste caso, em uma série de telas, que glosam de forma diferenciada a figura do cavalo apreendida repetidamente em diversas posições, sem que haja qualquer traço ilustrativo ou narrativo da sua representação, nem que a imagem figurativa do cavalo seja derivada ou reproduzida a partir de qualquer modelo real. Os cavalos parecem mover-se a uma velocidade vertiginosa, o que pode levar o espectador a interrogar-se, ao olhar para esta série de pinturas, sobre o barulho produzido pelos cascos dos cavalos quando pisam a pista ou sobre o cheiro da relva ou da lama. Esta pintura, apesar de não ter olfacto nem ser audível, é capaz de proporcionar, mesmo assim, alguns níveis sensitivos de percepção, tornando assim possível, que a sensação de fixação e movimento do cavalo possa ser simultaneamente visível, audível e inteligível, à imaginação do espectador. Target resulta numa admirável série de pinturas que permanecem num registo que oscila entre o movimento animal do corpo do cavalo durante a corrida e a expressividade sensorial conferida à cor e à figura, através da mão e do olho de Patrick H. Jones.
Turbilhão
A outra mostra foi a do artista coreano nascido em Seul, Young Do Jeong (1985), com uma exposição a solo inaugural, intitulada Give me your hand, que decorreu na Galeria Duarte Sequeira num edifício barroco do final do século XIX, no piso térreo da casa que foi reformulada para exposições desta Galeria, fundada em 1994. Por este espaço, passaram importantes exposições de Andy Warhol, Richard Long, George Baselitz, Anselm Kiefer, Sigmar Polke Gerhard Richter e Lúcio Muñoz entre muitas outras. O trabalho do jovem pintor coreano Young Do Jeong resulta, em parte, do cruzamento de experiências apreendidas em circunstâncias culturais e artísticas diferentes, sobretudo através de aprendizagens feitas em instituições consagradas ao ensino da pintura, tanto na Ásia como nos Estados Unidos. Dessa interacção resultaram experiências interessantes no modo como Jeong concebeu as suas pinturas, as quais acabam por gerar um tipo de padrão cromático e formal bastante intenso, em que a cor negra surge em alguns trabalhos destacada do fundo da tela como acontece com Dawn Again, Ducking in space e Flowing armored snatcher. Aí somos surpreendidos com uma multiplicidade de pequenas e grandes formações caóticas de motivos, arranjos e configurações, que criam um tipo de percepção estética em que espírito e matéria se equilibram mutuamente, arrastando consigo conteúdos inconscientes sem sentido. Algumas pinturas surgem de um turbilhão de traços e linhas, plasmados por cores vivas que contrastam entre si, como se estivéssemos diante de uma experiência mental feita de sensações, associações de ideias e liberdade espiritual, que desconhece as leis mecânicas do Universo e nos revela um profundo estado de alegria que a vida deve ter e que Espinosa definiu como a passagem do homem de uma menor para uma maior perfeição, já que esse afecto favorece a nossa potência de agir. Há uma alegria que emana de cada uma destas pinturas, que se projecta sobre a tela como se um gozo profundo saísse do Cosmos para nos abraçar. Talvez a mensagem de Give me your hand - título da exposição e de um quadro exposto - seja a de exaltar a energia da vida espiritual, de que é feita a vontade de poder presente em todo o acto da criação artística. A cor tem uma função importante na pintura de Jeong, na medida em que ela se liberta da representação e se ergue no espaço como uma síntese abstracta de sensações, que buscam exprimir o “sentimento da forma visual” (o Formgefühl de Worringer), o qual impregna o ser humano e o liga ao mundo que o rodeia. O sentido da significação interior da forma está contido na expressão abstracta que a pintura de Kandinsky procurou atingir ao pintar pela primeira vez, em 1910, a sua famosa aguarela “não-figurativa”. “A arte pictórica de Kandinsky”, dizia o conhecido filósofo hegeliano, Alexandre Kojève, “é concreta e não abstracta porque ela se produz sem re-produzir o que quer que seja”. A abstracção não é o paraíso perdido tal como a figuração não é o inferno encontrado, do mesmo modo que a beleza de uma árvore pintada ou desenhada no paraíso é diferente da beleza de uma árvore real pintada ou desenhada no inferno da Terra. Daí que um pintor clássico, ao desenhar uma bela árvore, esteja unicamente interessado na sua beleza, mas não na própria árvore. Acho que Young Do Jeong, nos títulos que deu aos seus trabalhos, procurou que eles tivessem um ar de diálogo, de apelo e ajuda em relação ao Outro, evitando assim aquele tom mais hermético com que os grandes mestres do abstracionismo europeu, como Kandinsky, Malevitch ou Mondrian, costumavam designar as suas obras com títulos como “improvisação”, “composição”, “sinfonia”, “letras”, “quadrado preto” ou “números”. A linguagem plástica das pinturas de Young Do Jeong é marcada por um registo híbrido de imagens abstractas, que abrangem um conjunto de correntes artísticas (abstraccionismo, simbolismo, expressionismo), que geram um curioso efeito de contaminação visual, no modo como cada pintura é transposta para a tela. Neste sentido, cada pintura retoma um código sensorial carregado de múltiplas tensões, percepções cromáticas e linhas de força, que exploram o limiar entre abstracção e figuração, sem que isso se torne num dilema ou tendência para o artista, mas antes num fenómeno em que Young Do Jeong procura questionar a pertinência de um novo olhar sobre a pintura e a sua história.
Carlos França :::
[1] O primeiro desporto a ser considerado olímpico, em 680 AC, envolveu um cavalo. Também houve corridas de cavalos na Roma Antiga tornando-as no mais popular dos espectáculos de entretenimento de massas na Roma Antiga.
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