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FERNANDA GOMESFernanda GomesMUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 28 JUL - 08 OUT 2006 Fernanda Gomes em SerralvesA arte começa talvez com o animal, pelo menos com o animal que traça um território e faz uma casa. (...) o território implica a emergência de qualidades sensÃveis puras, sensibilia que deixam de ser unicamente funcionais e tornam-se traços de expressão, possibilitando uma transformação das funções. Deleuze, in O que é a filosofia? O espaço no qual Fernanda Gomes nos recebe, as salas e parque do Museu de Serralves, parece essa casa e território que Deleuze nos fala. A casa como uma necessidade primitiva de abrigo, retirando as palavras à artista, que devolve à experiência o seu princÃpio animal. Logo que descemos pelo estreito corredor da escadaria, os objectos seleccionados pela artista importunam e dificilmente nos desviamos das pequenas pedras colocadas estrategicamente entre os degraus. Uma pequena provocação que poderá passar despercebida, mas como o trabalho em geral exige a revisita pela sua subtil complexidade, esta recepção introdutória coloca o espectador atento em alerta sensorial. Estamos a entrar numa casa, numa gruta, numa obra-exposição. A artista transporta para o museu tanto elementos que colecciona e guarda como outros improvisados no espaço, por exemplo, trouxe um novelo de fio dental usado, resto de um hábito quotidiano, ou cabelos que ficam no pente, apanhou folhas e ramos secos do parque. A matéria será o ponto de partida, a matéria em desuso, o resto do consumo, e a sua recolocação no espaço, a obra. Surpreendente é chegar à sala e verificar que o próprio espaço do museu se reduziu igualmente à matéria: é mármore, é cal, é luz vidro e madeira. A primeira sala é quase transparente: cacos e rectângulos de vidro, copos cheios de água, um pedaço de mármore levantado do chão, isto e pouco mais distribuÃdo aparentemente ao acaso pela perpendicularidade da sala. Uma espécie de dispositivo que em vez de mediar, procura derrapar a percepção constrangendo-nos a ultrapassar as evidências. O plano dos objectos chega a coincidir com o próprio espaço. Por vezes só se detecta os objectos quando incide a luz, ou quando o corpo passa e exerce movimento. Na segunda sala o vestÃgio e o desuso dos objectos quotidianos pedem um olhar arqueológico que descubra os diferentes tempos: uma folha feita de mortalhas fumadas, o tal fio dental que para se constituir novelo levou anos, as cadeiras que serão restituÃdas à cozinha. O espaço é sensÃvel, causa da encruzilhada de tempos. A ligação dos objectos entre si e o espaço tecem a rede que constitui a obra, excluindo qualquer pretensão hierárquica. Como opção processual a artista constrói aquilo que se poderia chamar de espaço sensibilia. Um espaço feito de objectos carregados de sensações, memórias e motivos que direccionam o espectador para um interior. Um espaço de reconsideração que requisita a experiência dos sentidos. E sem nos darmos conta, sem sabermos bem como ou porquê, vemo-nos aprisionados nesta teia de pequenas armadilhas camufladas que Fernanda Gomes, qual predadora passiva, tão laboriosamente preparou.
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