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JONATHAN ULIEL SALDANHASUPERFÍCIE DESORDEMGALERIA MUNICIPAL DO PORTO Palácio de Cristal Rua D. Manuel II 4050-346 Porto 26 OUT - 16 FEV 2025
Walk in silence Atmosphere (excerto), Joy Division
Reflito sobre os prenúncios da morte e como causam efervescência estomacal, palidez sentimental, expressão facial desfigurada e horrorizada e maresias no olhar. É o fim que se anuncia, são outros começos que se anseiam. Mas a hodiernidade do mundo, nos seus múltiplos parâmetros políticos, sociais, económicos e na forma como (não) cuidamos e respeitamos a natureza, extravasa para uma inquietação cada vez mais pungente sobre o devir. Em “Superfície Desordem”, exposição do artista Jonathan Uliel Saldanha, com curadoria de João Laia, configura-se um cenário urbano futurístico-especulativo e distópico no qual habitam os monstros que somos, que seremos e que criamos. Um anacronismo crepuscular. Ou nos termos de Man Ray, em L'Étoile de Mer” (1928), “nós estamos perdidos para sempre num deserto de l’éternèbre (éter-escuridão)”, neologismo que cria a partir da sua licença poética para a palavra. Éter - como condenados à escuridão eterna (la éternité) ou como fluído cósmico que conduz a luz e o calor pelo espaço escuro.
Vista da exposição Superfície desordem de Jonathan Uliel Saldanha. Galeria Municipal do Porto, 2024. © Dinis Santos / Galeria Municipal do Porto
Aguarda-nos um mundo inóspito. As duas obras que encontramos na antecâmara afirmam, de forma sintética, um alinhamento entre uma pré-condição e a atualidade daí resultante. Ao fundo da sala, “Campomental” (2016) é uma compilação de vídeos, realizados desde 2015 sobre relações de pré-linguagem, relações diferenciadas e, ainda, aspetos de fronteira. Dois pequenos bustos são manuseados, num teatro de gestos, numa alusão à erosão do discurso e à violação da lei, mimetizando a violência tóxica inerente aos sistemas territoriais da natureza. São criados traçados a giz que restringem as cabeças a um retângulo. E os fios a elas amarrados, não são mais que alusões à opressão e à manipulação. Por sua vez, a outra obra residente nesse lugar escuro, é uma imagem de uma arcada dentária, de diversas cores em tonalidades fluorescentes. Entenderemos, posteriormente, como é um elemento de ligação e de representação deste (novo) mundo. E não se espere nada menos que arrebatamento quando nele imergimos. Os sentidos são oxigenados com assaz pungência. As luzes saturadas movimentam-se e rompem a escuridão, como um embate frenético de corporeidades (i)materiais que dão origem a um teatro de sombras. As sonoridades, que se mesclam, são retumbantes e golpeiam cada um dos nossos átomos. E ainda nos chega ao olfato, um certo frescor da vegetação que, tragicamente, não é mais do que uma reminiscência do mundo natural. Serão estas as entranhas do abjeto? Kristeva, assim, o descreveu: “(...) um surgimento massivo e repentino de estranheza, que, por mais familiar que possa ter sido em uma vida opaca e esquecida, agora me atormenta como radicalmente separado, repugnante. (...) Um peso sem sentido, sobre o qual não há nada de insignificante, e que me esmaga. À beira da inexistência, da alucinação, de uma realidade que, se eu a reconhecer, me aniquila” [1]. Predomina, neste mundo, uma constelação de objetos tecnológicos que, interligados, constituem-se como um organismo, como uma hipermedia. Em “Arcanjos capital”, duas esculturas compostas a partir da desconstrução de uma mota, parecem formar corpos impossíveis de anjos antropomórficos. O que hipotetiza para uma nova, sarcástica e subversiva historiografia religiosa, e especificamente da Angeologia, em que a techne é figura doutrinal e de pregação. Até porque do mundo natural apenas temos reminiscências espectrais através da decomposição de uma carcaça vegetal (“Sistema-L Ovo Camuflagem”), numa estrutura que se estende pelo espaço como um fungo e que utiliza um Sistema-L, ou seja, um conjunto de regras de crescimento permite a expansão de formas complexas a partir de um axioma ou módulo principal. Imersos no grotto que forma esta carcaça, já só nos resta rememorar, com angústia, a floresta e o que existia “entre as suas árvores, entre a sua vegetação rasteira densa e suas clareiras, entre todos os seus ciclos de vida e as suas diferentes escalas de tempo, que vão desde a energia solar até os insetos que vivem por um dia” [2]. A regulação entre o interior e o exterior desta carcaça vegetal é realizada através da “máscara de anjo de carbono” (2024), uma peça suspensa num guindaste pneumático para motor, inspirada na forma de uma mota de alta cilindrada.
Jonathan Uliel Saldanha, Capital Archangels, 2024. © Dinis Santos / Galeria Municipal do Porto
Ainda sob a égide da interconexão entre sistemas tecnológicos, a “torre de Basilisco” (2024) é uma estrutura técnica semiviva operada por um mecanismo de controle cibernético com as funções de regular e distribuir luz, som e vídeo, que lhe permite coordenar as peças “Campo de vídeo Aglomerado” (2016-2024) e “Diálogo Vírus-Lobo” (2024). Utiliza, também para este fim, composições multicanais como Swarming Decay e Oxidation Machine, onde vozes interagem com sons de borracha, pneus e moedas. Estes sons, que evocam o movimento de enxames de insetos são ativados por palavras-chave como “capital”, “lítio” ou “vírus”, condicionando temporariamente todo o sistema. Especificando, “Campo de vídeo aglomerado” é uma cabine videográfica, controlada e sequenciada por um sistema de Inteligência Artificial que emana da Torre de Basilisco e que inclui peças de palco como “Lago Libidinal” e “SøMA”, e a instalação “Afasia Táctica”. Por sua vez, “Diálogo Vírus-Lobo” é um Bot de sexo no qual é estabelecido um diálogo erótico e de sedução entre duas entidades artificiais que assumem a identidade de um lobo e do vírus da raiva, no interior de um corpo humano. O diálogo é gerado por Inteligência Artificial, transmitido em dois écrans e exteriorizado por corpos-altifalantes subwoofers. Estas duas obras apresentam um detalhe que importa sublinhar: close-ups de arcadas dentárias. E rememore-se, neste sentido, a obra supramencionada e que fazia parte do espaço da antecâmara. Os dentes, parte da composição da cavidade bocal que se entende como um espaço liminar entre o interior e o exterior do corpo, são armas de devoração, servindo para cortar, rasgar e agarrar. Sendo constituídos por esmalte e dentina, os dois tecidos mais duros do corpo humano, são duráveis e, por norma, preservam-se com facilidade em contexto arqueológico e fóssil. Mais, ainda, são estruturas profundamente informativas sobre as particularidades dos seres humanos como a dieta, a saúde oral e até certos comportamentos culturais. E para além das suas funcionalidades físicas inerentes, ao longo dos séculos têm lhes sido atribuídos aspetos simbólicos, ritualistas e até espirituais. No caso particular da obra “diálogo vírus-lobo”, os dentes pontiagudos aludem ao animal não humano e ao monstruoso, e espelham o intuito de dilaceramento sádico. Assim, lobo e vírus, como as duas entidades artificiais e parasitárias que habitam um corpo humano, e que se fazem representar por essa arcada dentária, afrontam os limites do interdito através da violência e do erotismo. E desafiam a morte, nesse jogo vil de caça e sedução.
“Espalharei a morte, Excerto do diálogo vírus-lobo
Os seres mutantes, com vetores de mutação distintos, que habitam este mundo são o resultado de um novo materialismo que condensa uma heterogénese diferencial de matérias como óleos, fungos e cristais. Fazem parte de uma ecologia manipulada, redimensionam o conceito de natureza-cultura, e a sua função é o patrulhamento do espaço. A instalação “Milícia” (2024) apresenta, desta forma, um teor político-militar em que os corpos aglomerados destes seres, num espaço coreografado, surgem como uma alcateia envolvida em exercícios de caça e mimese. E a formação tática de crianças primatas é operada pela “Milícia de três gémeos Jumeaux” (2024).
Jonathan Uliel Saldanha, Militia, 2024. © Dinis Santos / Galeria Municipal do Porto
O diorama de um “Glaciar do futuro” (2024), projetado em sistema suspenso como um espectro flutuante, e que compõe o espaço cenográfico da Milícia, já não é um prenúncio de morte. É a sua constatação. Esta paisagem não existe mais, pelo que a sua representação é a única forma de a ela acedermos. Ficamos enclausurados na dimensão visual e só a imaginação nos conduz a uma abstrata fruição, a partir de outros sentidos. A partir daquele ponto, já não conseguimos avançar. É uma memória materializada, mas que se vai evaporar. Em súmula, este espaço urbano parece compor-se como uma caixa de pandora de moistmedia [3], formando um interespaço onde cabe o “mundo seco” da virtualidade e o “mundo húmido”, de uma outra biologia que integra ‘monstros’. Esta dilaceração entre a fronteira de hardware e wetware, instiga outras perspetivas do mundo, novas definições de vida e da identidade humana. Saldanha compõe a cenografia deste mundo na tangência paradoxal entre o feral e a Fantologia (Hauntology) [4]. Seguimos imersos no espectral, na nostalgia e no revivalismo, como assombrações do passado, perante o “fracasso do futuro”. Se adotarmos outro posicionamento intelectual, talvez possamos, como vaticina o curador João Laia, perspetivar que “os monstros que emergem na obscuridade de Saldanha [possam] ser faróis que iluminam múltiplas possibilidades, sem ditar ou limitar o futuro” [5]. Ou como, outrora, referiu o poeta e filósofo Gilles Ivain (1933-1998), na sua “Fórmula para um novo urbanismo” (1958): podemos explorar o espaço sinistro, não mais para temer as angustiantes manifestações da vida, mas para nos divertirmos com elas.
Sandra Silva
Notas [1] Kristeva, J. (1982). Powers of Horror - An Essay on Abjection. Nova Iorque: Columbia University Press, p.2
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