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JOSÉ LOUREIROO DEFEITO PERFEITO![]() GALERIA FERNANDO SANTOS (PORTO) Rua Miguel Bombarda, 526/536 4050-379 Porto 18 JAN - 15 MAR 2025 ![]() ![]()
José Loureiro Pele de ácaro desenrolada, 2023. Óleo sobre tela, 204 x 202 cm. © Bruno Lopes / Cortesia Galeria Fernando Santos
No texto que acompanha a exposição, José Loureiro, na sua maneira irredutivelmente subversiva, explica-nos as condições atenuantes de não se adoptar a depilação, pois considera-a como um pretenso acto imaculado da anulação das imperfeições e marcas indesejadas de um corpo, que se pretende não atinente às condições fisiológicas da sua constatação biológica. A meticulosidade, a impetuosidade da rasura, da anulação, da eliminação barbárica às mãos do elemento cortante, pode acarretar no agente humano uma indefinição, mais do que material, ontológica, podendo em casos extremos levá-lo ao soçobro, que na sua vertente idealizante traria a morigeração da aparência, mas que na realidade apenas consome a veracidade de um eu carcomido pelas instâncias do desinvestimento da realidade. Para nos encontrarmos com as teorias de Jean Baudrillard, é como se o corpo fosse uma entidade enredada nas supostas perfeições da hiper-realidade, onde a virtualidade do ser seria melhor manifesta, no apagamento da sua natureza, na sua contemplação desprovida de marcas maculadas de existência, incorrendo por isso no simulacro como condição possível de existência. Para isso, o artista, pedagogicamente indica-nos que devemos atentar melhor em Narciso, pois na sua condição apaixonada (mas também se quisermos ser transgressivos também lhe podemos chamar de onanista), não precisou nunca de se depilar, pois para si a técnica instrumental nunca passou da constatação especular de si mesmo, nunca lhe ocorrendo a necessidade de alijar alguma excrescência ou excedência anatómica que em si pululava. Até porque Ovídio escreve que aquilo que ele vê não sabe, mas a mesma ilusão que engana os olhos enche-o de desejo [1], por isso o artista ensina-nos que todas as acções instrumentalizadas pelo homem devem levar em si a impureza maculada do desleixo, da contingência ao arredio das cristalizações monadológicas. Tanto será assim para a depilação como para a pintura, diz-nos. Há na pintura como acontecimento criacional (a de José Loureiro não é indiferente) uma travessia de oscilação hilemórfica (matéria e forma) aristotélica, que pontua na aparição da matéria uma evidenciação da forma. Contudo, e elencando as apropriações lacanianas do conteúdo visual, Jorge Alemán refere que em qualquer formação há um resto que não pode ser de todo dominado pela forma, ou seja, na transitividade entre a matéria e a sua consequente formação, verifica-se uma perda, um resto arqueológico, impossível de ser dominado e formalizado pela perfeição. Neste sentido, não existem identificações plenas, tampouco esclarecimentos definitivos para antinomias suscitadas por este dilema [2]. É neste interstício que o defeito perfeito sobrevém como anúncio da dicotomia entre as realizações intensificadas pela pulsão desejante de criar e a necessidade posterior de a enquadrar num princípio de realidade que devém portador da sublimação da forma menoscabada. Nestas obras, assistimos a uma panóplia de figuras germinativas de composições onde reina a inexpugnável presença da mácula, da intensificação inelutável da permeação ao risco do falhanço, integrando-o como elemento emancipador dos postulados pictóricos tradicionais. Corpos em posições inusitadas, menosprezados nas suas possibilidades anatomicamente correctas da representação do dinamismo do movimento. Ademais, parece haver um trabalho de acumulação historial que se vai agrupando, pois ínsitas nestas estranhas figuras, apensas aos seus torsos ou encimadas às suas cabeças, surgem as idées fixes automatizadas nos princípios estetizantes das bolas, das linhas, dos resquícios geométricos que aparecem como vestígios obsessivos ou obsidionais de uma prática hipertrofiada em acúmulos de presenças. Fórmulas inseridas directamente nas superfícies despojadas como reforços polivalentes de serializações formais de barras, enredamentos, grelhas, tecidos multiplicados de pregas e pregueados de linhas, que se subdividem ou se multiplicam nas composições, socorrendo-se muitas das vezes por cores antinómicas aos cromatismos dos corpos das figuras (caso das séries Narciso e Espeleólogos). Nestes corpos, os limites são modelados por delineamentos corporais, implicados nas modulações das intensidades da inscrição, cujas superfícies ordenam inusitadas experiências de contornos, tanto preenchidos pelas saliências das linhas anatómicas, como por preencher pela recusa em formar contornos rígidos de continuidade. Estas linhas ora apresentam-se mais entumecidas pelo alargamento da tinta e coagulação subsequente, ora inscritas pela tenuidade timorata da linha que preenche os programas ambiguamente anatómicos destes seres. Os elementos geometrizantes de um passado que retorna, por sua vez, parecem dimensionar-se num registo de cissiparidade, cuja ordenação, no entanto, inverte as tendências da simetrização e da harmonização do todo, pois tanto surgem em pluralidades ímpares, desobstruindo a fluidez das planificações geométricas, como se impõem na tessitura pictórica pelas suas inusitadas configurações, distribuídas pela ordenação do evento contingente de preservação do fulgor primevo do acontecimento febril da sua criação. Há que manter a mácula, há que resistir à rasura do inconsequente humano, daí a falibilidade do processo, como uma certa dessublimação do acto criador. Não são os ciborgues apregoados por Donna Haraway, nem mesmo retratos do sous-homme identificado por Simone de Beauvoir, aquilo que intuímos nas composições de José Loureiro, mas uma promessa identificada em pintura de que aquilo que é necessário manter como condição insofismável da criação, pertence ao campo da fragilidade advinda do próprio acto humano. Mais do que livres associações mentais, cujos mecanismos desencadeiam torrentes de fluxos descondicionados na aniquilação de mimetizações, o artista pretende albergar o lapso, manter a brecha e a fissura, como eventos inaugurais determinantes e impreteríveis dos desígnios criacionais. No defeito perfeito, José Loureiro não só se afirma pelo exercício lúdico de uma pintura abnegada com a sua condição própria de homem-pintor como se regozija na sua compreensão irredutível a qualquer normatividade bem como a qualquer sistema padronizado epocal. Nesta medida, mais do que celebrar o defeito que pertence integralmente ao acto, o artista compraz-se naquilo que Milan Kundera caracteriza de insignificância [3]. Exige coragem o reconhecimento da insignificância e, contudo, ela está lá em todos os momentos vividos pelo homem. Ela permite ser consciencializada a partir do momento em que o homem coloca o travão à seriedade das expectativas da perfeição.
Notas [1] NASÃO, Públio Ovídio. Metamorfoses. Cotovia, Lisboa. 2007, p.96. ![]()
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