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TINA BARNEYFAMILY TIESJEU DE PAUME (CONCORDE) 1, place de la Concorde 75008 Paris 28 SET - 19 JAN 2025
No âmbito do seu 20º aniversário, o Museu Jeu de Paume, em Paris, inicia a temporada com uma programação de celebração do cinema e da fotografia no feminino: uma exposição e um ciclo de cinema da cineasta belga Chantal Akerman (1950-2015) e a estreia da maior exposição retrospectiva de Tina Barney (n.1945) na Europa. O que me fez optar pela última, sem conhecer a artista ou a sua obra em algum momento prévio, foi a imagem sedutora com que se anunciava a exposição nos media: “Jilly and Polly in the Bathroom” (1987) em robes cor-de-rosa, num pré- ou pós- celebração, (quase) camufladas pela parede do mesmo tom das vestes, numa composição que me leva à história da pintura (penso em Bonnard, Vuillard e até Manet, que vi dias antes no Musée d’Orsay). E não consigo resistir em não notar a casota do cão (quase) no centro da composição, como uma imagem-espelho (ou uma imagem-miniatura) da casa de bonecas onde acabámos de entrar. Longe de querer ser apenas um álbum dos seus melhores momentos (recusa-se, aliás, uma estratégia cronológica na montagem da exposição), Family Ties reúne cerca de 55 fotografias e 2 filmes caseiros super 8 da fotógrafa americana, uma seleção que percorre mais de 40 anos de carreira e que inclui imagens das suas principais séries - Theater of Manners (1977-1997), Europeans (1996-2004) e Players (1988-2010). Barney é conhecida por ser a cronista das elites, desde que começou, a partir dos anos 70, a fotografar a sua família e amigos no seio da socialite norte-americana da costa este. Um dos aspectos cativantes em Barney, além de ver as suas fotografias vibrantes de cor e profundidade, é conhecer-lhe o percurso: Descendente de uma família de colecionadores de arte e dos fundadores da Lehman Brothers, o avô era fotógrafo amador, e a mãe, manequim, mais tarde tornou-se decoradora de interiores. Este contexto assegurou-lhe um estilo de vida privilegiadíssimo, com acesso a um mundo cultural e artístico selecto, com o qual sempre se sentiu filiada. Tina cresceu no Upper East Side, em Nova Iorque, com Degas e Renoirs nas paredes de casa. Casou muito nova, foi mãe cedo, e foi quando se mudou com o marido e a família para Sun Valley, Idaho, um tanto ou quanto contrariada, a fotografia revelou-se ser um meio para escapar ao destino de uma “dona de casa desesperada”. Começou a fotografar o que lhe era próximo, e elege os seus temas nas férias passadas em New England, para onde retorna, divorciada, após 10 anos na costa oeste.
Tina Barney, Musical Chairs, 1990. Cortesia Jeu de Paume.
Barney permitiu assim, nas últimas décadas do século XX, o acesso a um mundo raramente visto em imagens: o de uma classe rica exposta na intimidade das suas casas e propriedades, entre aniversários, casamentos, nascimentos, festas de final de curso, dias na praia no verão, churrascos no jardim, almoços e encontros familiares diversos. Quentin Bajac, diretor do Jeu de Paume, refere no catálogo da exposição que os primeiros comentários à sua fotografia foram de perplexidade, pois deram a conhecer o denominado WASP Paradise (White Anglo-Saxon Protestants Paradise) num tipo de testemunho visual imparcial, com poucos ou nenhuns antecedentes históricos na fotografia. Diga-se que fotografar os ricos é diferente de fotografar os pobres. Requer uma postura alternativa que, segundo Bajac, “evite as armadilhas da proximidade e da empatia, sem cair nos engodos demasiado fáceis da sátira e da paródia, contrários a uma estética documental”. Barney faz parte de uma comunidade e fotografa-a a partir de dentro, por vezes incluindo-se nas fotografias. O que poderia advir da consanguinidade e afinidade com o fotografado, por sua vez, afasta qualquer posição crítica (e política) perante o seu estrato social, assim como qualquer tipo de sentimentalismo inerente ao acto de fotografar os seus. Ela apenas quer retratar o meio ao qual pertence e a forma como as pessoas que conhece se comportam. Captar “a ideia de que as famílias, independentemente de onde vêm, fazem sempre a mesma coisa” empolga-a. Por isso, conotar o trabalho de Barney à exibição da riqueza de famílias abastadas é injusto, e algo que a própria recusa. O seu olhar assenta nos pilares da família, camuflados nos seus encontros casuais ou planeados, na repetição anual de costumes e tradições, nos lugares a que sempre voltam e pertencem. Não obstante, mesmo que Barney queira desviar essa discussão da recepção ao seu trabalho, os símbolos e códigos que estão associados à classe que retrata não conseguem ser ignorados. É difícil não ser seduzido pelo estilo de vida que parece estar reservado aos mais privilegiados, mesmo com todas as suas falácias. Penso na atual tendência da estética Old Money, identificada no guarda-roupa de muitos jovens adultos da geração Y e Z. Os retratos de Barney ressoam esse desejo atual de riqueza e sofisticação hereditárias, associadas a um determinado tipo de luxo semelhante àquele que documenta. No entanto, os millennials e a geração Z, que não têm o suporte financeiro familiar ou a previsão de uma herança para assegurar um futuro com estes padrões, tentam simular uma projeção social idêntica pela aquisição dos produtos mais acessíveis, como por exemplo, peças de roupas em combinações semelhantes.
Tina Barney, Self Portrait, 2023. Cortesia Jeu de Paume.
Tina Barney é conhecida por ser uma retratista e fotógrafa de interiores, cujo trabalho adquiriu um peso sociológico e antropológico particular. E também é notória a variedade e a forma como explora o género: seja no interior como no exterior, os retratos fazem-se em grupo ou individuais, mais pousados ou mais espontâneos, em close-ups ou de corpo inteiro, na aparência enganadora do snapshot (as linhas oblíquas, próprias do instantâneo, são recorrentes). Desde logo, denota-se um profundo conhecimento da história da arte, da percepção visual e da teoria da cor, assim como da técnica da fotografia. Tina articula o aparato de uma view camera 4x5 com tripé, com a rapidez do seu manejo, para a captura de uma imagem imediata, em mise-en-scènes que são, em sentido inverso, cuidadosamente preparadas e coreografadas. Ao documentar os ambientes domésticos, Barney convida-nos a entrar nestes espaços exclusivos através da dimensão da impressão fotográfica - 120x150cm - dimensão que raramente abandonou. A escolha do aparato e formato prende-se com a capacidade focal e descritiva da imagem fotográfica, ao ponto de colocar vários planos com a mesma nitidez e importância da cena principal (se é que ela existe). Tudo é visível ao pormenor: as porcelanas, os cortinados, os papéis de parede, as roupas, o mobiliário, a arquitetura, a paisagem ao longe. Tina confunde as noções de hierarquia visual e narrativa ao atribuir, por exemplo, aos títulos das obras o nome de elementos ou objetos que estão num plano secundário ou posição à margem na imagem. No início de carreira, as composições surgiam complexas, espacial e domesticamente dinâmicas. Com a entrada do novo milénio, quando expande o seu repertório a outras geografias e famílias - a aristocracia europeia, actores de Hollywood e grupos de teatro -, as fotografias constituem-se com maior simplicidade e com menos elementos (mas não menos enriquecedoras). A adaptação a outros contextos influencia a estética das imagens - o interior das casas é diferente, a cultura é outra, a barreira linguística impõe-se em alguns casos. O próprio comportamento dos modelos torna-se mais estático, mais contido, pelo distanciamento que têm com a fotógrafa. Em igual medida, passa a existir um maior trabalho de direcção por parte de Barney e uma diminuição do tempo de fotografar, próprio da encomenda. Sempre focando a sua atenção na relação intergeracional, também realiza trabalhos comerciais e editoriais para revistas de moda e jornais, onde a dimensão narrativa tem um peso preponderante. Algumas destas imagens, presentes na mostra, não estão identificadas como tal e, por isso, o seu propósito original passa despercebido no conjunto expositivo. Apr(e)endemos que o poder das suas imagens reside na sua metodologia mista situada entre a direcção fotográfica e a improvisação, num diálogo constante entre verdade e ficção da imagem.
Tina Barney, Jill and Mom, 1983. Cortesia Jeu de Paume.
Quando Tina começou a fotografar famílias que lhe eram próximas, fê-lo porque sentia que elas não demonstravam afeição suficiente entre os seus membros. Notamos, em muitas delas, que as pessoas raramente se tocam ou expressam gestos de afecto. Apesar dos cenários elegantes, profusos de decoração requintada ou de uma atmosfera idílica, o interior dos espaços não nos dá acesso ao interior das criaturas. Elas permanecem sempre na reserva, isoladas, impenetráveis. E não quero deixar de referir o aspecto que sobressai em toda a exposição: a presença superlativa de um capital - a juventude. Não apenas por ser frequente o retrato de crianças, adolescentes e jovens. É no contraste geracional entre membros de família que se acentua a passagem (e a inflexibilidade) do tempo, fazendo-nos questionar sobre o que recebemos dos mais velhos, e o que devolvemos aos mais novos. A família é vista como uma teia complexa de relações que estão em constante mutação, transição e tensão, acabando por ser essa a razão do seu encantamento: a de um intrigante (por vezes, bizarro) sentido de passagem de testemunho. Atrás da lente, Barney capta a transmissão de conhecimento nos gestos e nos objectos, sendo claro que os laços familiares não se fazem só da genética e da biologia. Ao longo da exposição, a ambiguidade do título torna-se evidente: tanto sugere a ternura dos laços de sangue como as amarras que ele cria, para o bem e para o mal. Como começou Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Acabamos a exposição a perguntar: são estas famílias felizes ou infelizes? Visita obrigatória para quem está ou planeia ir a Paris até 19 de Janeiro de 2025.
Cláudia Handem
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