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ARTE DIGITALA LINHA DA IMAGEMLUÍS ALEGRE2007-05-17A primeira ideia que nos surge ao pensar na linha é a de contorno, de limite, uma linha gerada pelo traçar do desenho — real ou imaginária, essa linha descreve formas e delimita-as, de alguma maneira, as individualiza. Geometricamente, a linha contínua ou não, mais do que uma sucessão de pontos, é a trajectória de um único ponto que se move, ou, para utilizar a linguagem típica dessa disciplina, é “o lugar geométrico das posições desse ponto”. Com isso, quase que de imediato se revelam no nosso pensamento as memórias do desenho, os livros para colorir onde as crianças preenchem, mais ou menos pacientemente, formas sintetizadas do real, apreendidas pelo contorno negro da linha. Pensamos, ainda, nos primeiros desenhos conhecidos, elaborados pelo Homem (nos registos gravados nas rochas ou nas paredes das grutas primitivas), que mais não eram do que simples contornos ou silhuetas de pessoas ou animais, com pequenos detalhes no interior. Contudo a linha é, essencialmente, um conceito abstracto, mesmo quando descreve formas que reconhecemos. Imaginemos um tapete contemporâneo e encontremos nos fios que o tecem uma metáfora para as linhas que definem ideias, objectos e seres. Assim, o tapete pode comportar um conjunto alargado de fios, que podem ser de linho, de seda, de algodão, de lã, com cores variadas. Para conhecer esta tapeçaria, seria interessante conhecer as leis e os princípios respeitantes a cada um destes tipos de fio (linhas). No entanto, a soma dos conhecimentos sobre cada um destes tipos de fio que entram na tapeçaria é insuficiente, não apenas para conhecer esta realidade nova que é o tecido (quer dizer, as qualidades e as propriedades próprias de cada textura) como, além disso, é incapaz de nos ajudar a conhecer a sua forma e a sua configuração. Matematicamente, a análise é complexa e implica a consideração da linha no plano e da linha no espaço, de acordo com as suas infinitas representações paramétricas e, portanto, com infinitas representações vectoriais. Seguindo esta metáfora estabeleçamos três etapas de complexidade: Primeira: temos conhecimentos simples que não ajudam a conhecer as propriedades do conjunto, mas retiramos uma constatação banal que tem consequências não banais - a tapeçaria parece ser mais que a soma dos fios que a constituem. “O todo é mais que a soma das partes que o constituem.” Segunda: o facto de existir uma tapeçaria faz com que as qualidades deste ou daquele tipo de fio não possam exprimir-se plenamente. Estão limitadas, inibidas ou virtualizadas. “O todo é então menor que a soma das partes.” Terceira: a simultaneidade das duas constatações anteriores apresenta grandes dificuldades para o nosso entendimento e para a nossa estrutura mental - “O todo é simultaneamente mais e menos que a soma das partes.” Tendo em conta esta complexidade, pensemos no actual momento do mundo, na relação dos acontecimentos e na velocidade vertiginosa que as imagens (através das quais vemos o mundo) adquirem, dotando-se de cada vez mais importância e determinação. É a rápida alteração destas “imagens”, que a cada segundo se renovam, sobretudo através dos suportes técnicos (digitais), que por aceleração determina grande parte dos processos sociais. A novidade desta situação não reside nas imagens, pois sempre foi através delas que vimos o mundo, o que se altera é a sua permanente presença em quase todas as manifestações culturais, entendendo-se a palavra “cultura” como o conjunto das experiências vividas, materializadas em objectos e instituições e (rememoradas) pelos indivíduos. Contudo, esta precipitação de “imagens” parece ter um efeito relativo no que diz respeito às supostas alterações induzidas à realidade. Pensemos, nesse sentido, no mundo actual, em que quase tudo nos é dado a ver através de infindáveis replicações visuais, e verifiquemos como continua, à semelhança de outras épocas, a existir uma certa exterioridade, da qual fazem parte as coisas (objectos, instituições, imagens e desejos) dotadas de uma certa materialidade. As múltiplas possibilidades que a vida nos suscita decorre pela acção do relacionamento entre os objectos, as imagens e as “ideias”, que deste ponto de vista, não são menos materiais. É a constituição deste fundo matérico que possibilita todo o agir e, não apenas o do passado, mas também o do presente e eventualmente o do futuro. Não nos parece, também, constituir um dado novo o facto de a era em que vivemos se caracterizar por uma certa hibridização imagética. Não a hibridização proposta pelos artistas modernistas, como por exemplo surrealistas e dadaístas, uma ponte entre o sensível e o intangível. Ao paradigma criativo introduzido por estes artistas, que pressupunha a inserção de uma “linha” de pensamento na formulação do trabalho artístico, a pós-modernidade contrapõe uma “linha” de trabalho acerca das questões da desmaterialização, virtualização e simulação imagética. Então, tratar-se-á apenas de uma alteração da própria “linha” ou uma das suas múltiplas circunvoluções? As “novas” formas de linearização e esquematização do real, suportadas pelas tecnologias digitais, parecem querer “suturar” um mundo, ora rasgado, ora recortado que apenas sobreviverá como imagem do mundo se for costurado através de uma forma que impõe a “montagem” e a “colagem” como estratégias de determinação. É esta linha, que noutros tempos servira sobretudo à escrita, que parece estar a alterar-se, mudando de rota e tornando-se o fio que costura as imagens já prontas e que os diversos media disseminam freneticamente (pensemos na publicidade, no jornalismo, no design, etc.). Provavelmente esta constatação não constitui uma alteração de paradigma, mas uma mudança na cultura do lento tecer originado pela escrita. Uma espécie de perda de lugar para a cultura que se determina, rápida e vorazmente, através da imagética da colagem e da montagem. Este sentido orientador da linha da imagem transforma-a na metáfora da colagem e da montagem e estas estratégias, técnicoformais, constituem o exemplo máximo da representação da imagem que se consome a ela própria. Uma espécie de “iconofagia”. Uma violência que aponta na direcção de um precipício onde a cada queda de uma imagem se seguem novas imagens. Onde umas escondem as outras. Onde umas contêm outras. Onde as imagens se devoram a elas próprias. Mas se a escrita se transformou em linha, a partir dos desenhos, das pinturas e das imagens figurativas (representações unidimensionais) a linha, por seu turno e paradoxalmente transformou-se em superfície, ao organizar-se em trama, em tecido ou em rede. Estes movimentos aparentemente invertidos da linha escrita e da imagem (superfície), apontam nos dias de hoje para uma certa convergência. É no momento do advento da imagem que a escrita se torna uma vez mais imagética. Em primeiro lugar coube à arte, ao design e à publicidade iniciarem um processo de valorização e de transformação iconográfica da escrita e da letra — pensemos por exemplo na actual comunicação gráfica e na importância que lhe é atribuída e nos inúmeros “tipos” disponíveis de fontes, ou, na anterior importância atribuída às letras pelas composições artísticas Futuristas e Dadaístas (início do Século XX) — ; em segundo lugar, é actualmente através da escrita que a imagem digital se constitui. Os pixeis que determinam a sua existência mais não são do que linhas de escrita — codificação digital. Assim, o que ressalta desta aparente convergência das linhas é, por um lado a recuperação da bidimensionalidade originária da escrita e por outro uma maior facilidade e rapidez na observação/absorção das superfícies bidimensionais que constituem as imagens. A aparente dificuldade de decifração da escrita ou o tempo implicado à sua interpretação (leitura linear) constituía uma diferença fundamental em relação à imagem que imediatamente nos convidava à sua decifração. E falamos no passado no sentido em que hoje a escrita, ironicamente, é a base (código) constituinte da imagem digital. Contudo a leitura de uma imagem, no que esta encerra de observação, é ainda de facto diferente da escrita. Pelo contrário, as imagens convidam-nos, quase imediatamente, a entrarmos nelas. Absorvem-nos de forma voraz. Sobrepõem-se. Fazem desaparecer tudo o que não é imagem. A sua sobranceria e proliferação parece querer armadilha-nos os movimentos e os trajectos. Luís Alegre Artista Plástico e Professor Universitário Bibliografia FLUSSER, Vilém, “Line and Surface” in Writings, University of Minnesota Press, London/Minneapolis, 2002. LATOUR, Bruno e WEIBEL, Peter, Iconoclash: Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art, The MIT Press Paperback, 2002. MIRANDA, José A. Bragança de, “Richard Tuttle ou o infindável trabalho da linha”, in Richard Tuttle – Memento, Xunta de Galicia e Fundação de Serralves, 2002. MORIN, E., La complexité et l’entreprise in Introduction à une pensée complexe, tradução de José Maria Tavares de Andrade (UFBA), ESF, Paris, 1997. |