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Neste texto, um conjunto de breves fragmentos escritos sem preocupação demonstrativa, José Miranda Justo fixa-se nalgumas fotografias da série Evergreen, de 2005, de Hugo Canoilas.
Trata-se de imagens que fixam um conjunto de intervenções escultóricas - vários objectos são retirados da rua, pintados de verde e devolvidos ao contexto urbano - realizadas ao acaso de uma deriva pela cidade.
Hugo Canoilas apresenta actualmente em Lisboa, na Galeria Quadrado azul, a exposição Peinture Architecture Sculpture Politique.


Talvez, por certo...
(a propósito de 13 fotografias de Hugo Canoilas)*


Degraus

Desde quando te sentaste assim, a meio das escadas, reclinado sobre o degrau que te tocava os rins? A manhã estava fria. E o que viste? À tua frente estendia-se, não a cidade, mas somente o caminho, o pavimento, a rua, os quadrados de betão que podias pisar. E depois levantaste mais os olhos: havia paredes, portas, janelas. Havia nomes, vários, abundantes.
Decidiste trocá-los.

Passaste a mão esquerda pelo rebordo do degrau. A manhã continuava fria. Quiseste um tubo. Quiseste-lhe as dimensões certas. Em polegadas. Quiseste-lhe a cor. A cor certa. Quiseste assim porque assim era. Assim fora. Assim seria.
Deslocaste a mão na direcção do tubo. Murmuraste-lhe o nome.


Teoria dos nomes próprios

Uma imagem poderia chamar-se: manhã.
Um intervalo de pedras poderá chamar-se: entardecer.
Manhã e entardecer passaram perto, muito perto, e desencontraram-se. Recolheste então a recordação dessa experiência. E deixaste que o tempo transcorresse.
Depois, um dia, sentiste que havia chegado o momento. Dispuseste no pavimento as placas de cartão. Colocaste sobre elas o que havia a colocar. Pintaste cuidadosamente os dois objectos. Pela frente, primeiro. Depois por trás. Ergueste-os com o cuidado de uma respiração tranquila. Inclinaste-os sobre o muro. Voltaste a olhar e aproximaste-os um pouco mais.
Estava concluído o teu dia.


Rua

Depois que te levantaste, avançaste pela rua. Os teus passos tinham o mesmo peso da véspera. Porém detiveste-os no instante exacto. Voltaste-te. Procuraste com os olhos o teu lugar de há pouco, sobre os degraus. Preenchera-o uma forma sem nome. Procuraste o nome.
Sim, porque lhe sabias a cor. Depois prosseguiste o teu caminho na plenitude da palavra.


Cadeira

Podia ser uma mesa. Mas na noite anterior sonharas com uma mulher de doçura insondável e corpo pleno, e em tanto que acordaste pareceu-te certo que fosse uma cadeira.
A água do canal agitou-se um pouco. O calor dos últimos dias dissipara-se. Abriste a caixa das cores e não precisaste de tempo para escolher. Dobraste as extremidades de um lenço sobre as pontas dos lápis. Guardaste no bolso, junto ao peito, e saíste.


Apontamentos

Não. Os rios não correm por dentro das cidades. Não há cidade acidental nas cidades. São antes as cidades que escorrem para os rios. Neste sentido, cada cidade tem o seu. Cada cidade segrega o seu. Mas nem todas as cidades têm uma foz. Nem todos os quartos guardam uma colecção precisa de apontamentos do ser lutando contra os acidentes de uma luz ingrata. Nem todos os corpos despem a cor para ganharem nitidez sobre o papel.
Não. Nada estava antes de os teus passos te terem encaminhado para a esquina da rua. Os apontamentos nasceram depois. Eram de água, por vezes, e brilhavam na luz da manhã. Se deles digo que são «apontamentos do ser», é porque me surgem como pura voz. Sem outro significado que não o da ausência. Sem outra presença que não seja a da mão. Sem outro abraço que não seja o que o corpo devolve à boca. Antes da própria voz. Mas durante ela. Durante ela, também.


Barco

Algumas cidades caberiam num barco.
E ele vogaria, ao sabor de um vento novo. Erguido do lado do Sul.
E depositaria os traços trazidos junto à boca de um rio desconhecido. Então o teu olhar decidiria a cadência, a respiração. Talvez mesmo o cais, as ruas, a cidade.


Rigor

Não há muitos transeuntes a esta hora. Alguns escutam os pássaros.
A linha do desejo dobrou-se em ângulo recto.


Pavimento

Desceste à rua. Deixaras, porém, uma outra versão dos teus olhos junto à janela da tua sala. Para que te vissem; para que depois te contassem o que haviam visto.
Atravessaste a rua quase deserta. Debruçaste-te sobre o pavimento. Os teus olhos fixavam um único ponto. Dir-se-ia escolhido ao acaso.
Mas não. Foi isso que te contaram os teus outros olhos, ao cair da tarde, quando regressaste.


José Miranda Justo
Julho e Setembro de 2005

* texto publicado na Revista Egoísta – número Cidade em Outubro de 2005 - na qual foram publicadas apenas 13 fotografias da série “Evergreen”.