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IMAGEM EM MOVIMENTODA MATéRIA; TRêS TRABALHOS DE JOãO SIMõES![]() PAULO JOSé MIRANDA2008-01-10![]() No seu percurso tão consistente quanto discreto, João Simões tem vindo a problematizar e a cruzar as relações materiais e linguísticas da imagem e do som com as virtualidades da tecnologia. Disso nos dá conta o ensaio inédito de Paulo José Miranda sobre o trabalho do artista. Os trabalhos de João Simões remetem-nos, não para uma pergunta acerca da arte e dos seus próprios limites, mas antes para uma pergunta acerca das coisas que permitem a arte. Antes do engenho humano há aquilo que o engenho humano transforma e os instrumentos através dos quais transforma. Mas não se trata aqui de mostrar uma qualquer coisa que deixa precisamente de ser coisa através da intervenção humana, na tradição de Duchamp, por exemplo, em que um urinol se transforma em arte por uma descontextualização desse mesmo objecto. Se o que subjaz a esta posição, de Duchamp, é a convicção de que temos de começar a ver as coisas de um outro modo, de que tudo pode ser uma outra coisa que não ela mesma e que o artista cria as próprias coisas ao conferir-lhes um novo sentido, isto é, está implícito um precisar de ver mais, no trabalho de Simões o que está em causa não é uma falta de dar novos sentidos às coisas, mas antes uma falta de ver as próprias coisas, porque vemos de menos; ver mais é ver de menos. Por conseguinte, estes trabalhos mostram a incómoda evidência de que não sabemos bem as coisas que utilizamos, não as vemos bem. E, independentemente disto, não só as utilizamos constantemente como ainda nos usamos delas para produzir obras de arte. Quando se olha para um projector o que é que se vê? Uma coisa que se usa para mostrar outra coisa. E essa outra coisa não é mais importante, essa outra coisa é que é importante. Quando se olha para um leitor de vídeo o que é que se vê? Novamente, uma coisa que se usa para outra coisa, mais importante que ela mesma. Essas coisas, que servem para vermos as outras mais importantes, não nos interessam verdadeiramente senão enquanto meio para aquilo que é importante: aquilo que elas mostram. Mas o que elas mostram estão já à partida inflacionadas de sentido. É como se, na pintura, as cores fossem menos importantes do que aquilo que representam. Insistindo numa comparação com a pintura: para Simões, independentemente do uso que se dá à cor amarela, é necessário compreender o amarelo. O que é a cor amarela? O que é a cor azul? O que é a cor? A pergunta, aqui, não é filosófica, mas artística. É a arte que pergunta pelo seu próprio corpo, não a teoria. Não é uma pergunta pela arte, mas pelo corpo da arte, pelas suas matérias. Não se pergunta «o que é a arte?», mas antes «o que é que faz a arte?». Quais as coisas, as matérias, entenda-se, que fazem com que a arte seja arte. Não é uma pergunta pelas coisas, mas pelas coisas que fazem a arte. Não é sequer uma pergunta pelo critério (o juízo que faz com que isto seja arte e aquilo não). Porque não se trata de uma pergunta pelo depois (aquilo que vai decidir o que é arte), mas uma pergunta pelo antes (aquilo com que se faz a arte). E o mais interessante nestes trabalhos de Simões é mostrar-nos que, sejam quais forem as definições que se tenha acerca da arte, ela começa sempre com um inimigo. Digo inimigo e não dificuldade, porque se pode viver bem com mais ou menos dificuldades, mas não se pode viver bem com um inimigo. E a arte começa com este não viver bem, com um inimigo. Este inimigo não é da ordem do quotidiano (ainda que o artista possa ou não tê-lo), mas da ordem do espírito. Isto é, a arte começa com a experiência de se sentir a matéria como inimiga. A matéria não é necessariamente inimiga da vida, pode até ser o contrário, mas não para a arte. E é precisamente isto que os trabalhos de Simões nos mostram. Aquilo que vemos é o inimigo, apenas o inimigo se nos apresenta. Mais: sentimos, compreendemos nos seus trabalhos que sem inimigo não há sequer arte. Assim, podíamos arriscar dizer (salvo quaisquer mal entendidos) que nos trabalhos de Simões não vemos a arte mas porquê a arte. Ficamos tão-somente face à evidência do inimigo, isto é, ficamos a saber que a origem da arte, de toda e cada vez, é o inimigo, de toda e cada vez é a matéria cravada no espírito. Ou, de outro modo, uma guerra entre a matéria e a anti-matéria. Voltando ao amarelo, mas um passo adiante: não é sequer o amarelo que está em causa, mas a aplicação do amarelo. O amarelo da parede de uma casa, interior ou exterior, o amarelo de uma cadeira ou de uma mesa não estão aqui em causa. Mas o amarelo que se usa no quadro, na pintura. Esse amarelo que se constitui em parte de uma obra de Mondrian, por exemplo (ou o branco no quadro White on White de Malevich), é o que está em causa nos trabalhos de Simões. Não é a cor transformada que importa, mas a cor que transforma. Melhor: a cor que se cria a si mesma. As cores das telas são, em muita da arte contemporânea, um projector ou um leitor de vídeo. São estas as cores na tela pelas quais Simões indaga nos seus trabalhos. O amarelo não forma uma coisa artística, ele apresenta-se como coisa artística; o projector não mostra uma coisa, apresenta-se como coisa. O amarelo não diz: faço-me em girassol; ele diz sou, amarelo. Com Simões, o projector e o leitor de vídeo são. Isto é, não são meros meios para mostrar girassóis artísticos, mas entidades que se apresentam a si próprias enquanto arte ou parte de uma obra de arte. É evidente a adesão destes trabalhos ao abstraccionismo, do mesmo modo que, por exemplo, os trabalhos de Pedro Cabral Santo (artista da mesma geração de Simões) aderem totalmente à arte figurativa (narrativa). Por outro lado, contrariamente ao abstraccionismo, em Simões não é a ideia que está em causa, mas a matéria. Aliás, e uma vez mais, à imagem do trabalho de Mondrian na pintura. A matéria é tudo. Simões, ao recusar a narrativa e a ideia, reconduz-nos à matéria, à insuportabilidade da matéria. A insuportabilidade do inimigo constantemente diante de nós. Contrariamente ao trabalho de Cabral Santo, em que a matéria apresentada é sempre ultrapassada por uma qualquer ideia. Veja-se, por exemplo, o seu trabalho onde surge um urso de peluche com uma faca espetada: o trabalho não pretende seguramente que nos detemos nas matérias envolvidas, mas precisamente na sua ultrapassagem, isto é, um para além do que aparece. Enquanto o trabalho deste é meta-material, o de Simões é puramente material. A matéria é tudo. A matéria é tudo, não na negação do resto, mas na concentração de um ponto de vista, de uma preocupação estética. A matéria é tudo, mas tudo no trabalho, nesta particular preocupação estética. Não há resquícios de contaminação ou ambições subliminares de construções de teses. Não há um para além a ser decifrado. Não há hermenêuticas construtivas ou des-construtivas. A matéria apresenta-se na sua materialidade, isto é, na sua condição de aparecer diante de nós enquanto inimigo, isto é, enquanto uma coisa que oferece resistência. Matéria e resistência são indissociáveis nestes trabalhos de Simões. Os instrumentos com que se trabalha, com os quais se apresentam as obras de arte aparecem então diante de nós, não como aliados, mas como inimigos. Um pincel não é uma coisa que se usa para fazer uma outra, mas antes uma coisa desconhecida. Desconhecida porque, outra razão não houvesse, é uma coisa pela qual não se pergunta. Aquilo, pelo qual não se pergunta, usa-se. E é precisamente o uso que é recusado em Simões. Do mesmo modo que alguns escritores centram o seu trabalho na indagação por aquilo que faz a escrita, a linguagem, Simões centra estes seus trabalhos na indagação pelas coisas que hoje fazem grande parte da arte contemporânea: os aparelhos de vídeo, os projectores, os aparelhos de som. Materiais que, para ele, são coisas pré-determinativas numa obra de arte; coisas que nos oferecem resistência. Aquilo que é antes e necessário à obra de arte é uma condição prévia e inexcedível, uma resistência, portanto, isto é, aquilo ou aquele que se nos opõe. Qual é então a relação que se estabelece entre o artista e o seu inimigo? Os trabalhos de Simões mostram-nos que a atitude mais comum é a de desconhecimento completo, isto é, a arte contemporânea não pergunta por aquilo que a concebe; ela não pergunta pelas coisas sem as quais ela mesma não existia. E é precisamente neste desconhecimento, na revelação deste desconhecimento, que os trabalhos de Simões alcançam uma incontornável pertinência. Sem dúvida, não é necessário indagar acerca da linguagem para se escrever livros, nem tão pouco indagar acerca de projectores e aparelhos de vídeo para se fazer obras de arte contemporânea. Mas a apresentação de um trabalho que nos revela a matéria como um inimigo material invisível, na concepção de uma obra, é um trabalho que assume um lugar muito próprio na arte contemporânea. Dir-se-ia, o lugar da matéria. Os trabalhos a que aqui me refiro são os das exposições de São Francisco (PAL,2001), de Berlim (NTSC,2002) e a da Sala do Veado, Museu Nacional de História Natural, em Lisboa ( 10 giugno - 30 ottobre 2001, 2002 ). Paulo José Miranda, 2004 Paulo José Miranda é poeta, escritor e dramaturgo. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa. É membro do Pen Club desde 1998. Viveu em Istambul entre 1999 e 2003. Publicou três livros de poesia, quatro novelas e uma peça de teatro. O seu primeiro livro de poesia venceu o Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e a sua segunda novela venceu o primeiro Prémio José Saramago em 1999. |