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ANTÓNIO SENACahiers. BooksFUNDAÇÃO ARPAD SZENES - VIEIRA DA SILVA Praça das Amoreiras, 56 1250-020 Lisboa 14 JUN - 27 SET 2009 “Tout est bien, dites-vous, et tout est nécessaire.” Quoi! L’univers entier, sans ce gouffre infernal Sans engloutir Lisbonne, eût-il été plus mal?” Voltaire, Poème sur le désastre de Lisbonne ou examen de cet axiome: «tout est bien», 1756 “Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos? Nem música nem cantaria. Foi-se ver no livro: de um certo ponto de vista de: terror sentido beleza acontecera sempre o mesmo – quebram-se os selos aparecem os prodígios” Herberto Hélder, «Os Selos», Ou o Poema Contínuo, Assírio e Alvim, 2001 É pela poesia que conseguimos reconstruir o mundo, especialmente nesta cidade ameaçada por terramotos e inércia generalizada. Pela poesia em imagens, desenhos, frases - esboços de movimento - que abrem horizontes. Há em certos criadores, e felizmente ainda continuam a nascer alguns assim, esta capacidade de permitir abrir brechas no imaginário do espectador, e as formas são múltiplas: começamos a lê-los, a ver um plano de filme, a contemplar a pintura e conseguimos ver passado e presente que se desenrolam para além e durante as imagens. António Sena (Lisboa, 1940) é tudo isto, porque entre a imagem em cor e a letra que se anuncia e desaparece existe uma beleza absoluta. Foram inúmeros os críticos, curadores, poetas e mesmo dramaturgos que escreveram sobre António Sena: Leonor Nazaré realça o carácter arqueológico da escavação nos tons argilosos da sua pintura; João Fernandes refere a singularidade desta obra radicar no permanente exercício de uma resistência às suas condições de legibilidade, sejam estas herdeiras de uma tradição pictórica ou literária; João Pinharanda, comissário desta exposição salienta a importância da pintura e do desenho em Sena, figura determinante na história de arte portuguesa desde 1960, pela sua intervenção gestualista e contemporaneidade gráfica (do grafite urbano, ao logo político e comercial). Sena participou em 1980, em “A Palavra e a Letra” no Pavilhão de Portugal em Veneza, sob a mão de Ernesto de Sousa: “Este simbolismo do elemento pictórico - gráfico está presente um pouco em toda a produção de Portugal antigo e moderno. E é talvez isto que permite que o país esteja presente e ao mesmo tempo ausente, explicitamente ou de forma velada, no grande contexto europeu”. Porém, o mistério permanece pois é difícil interpretar a sua obra. Talvez porque se feche a interpretações, basta vê-la e contentarmo-nos de que enquanto tivermos este escriba entre nós, o céu não pode engolir Lisboa. Em 1965, António Sena, partiu para Londres, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, para frequentar a St. Martin’s School of Arts, cidade onde permaneceu cerca de 10 anos unindo-se a Lourdes de Castro e a René Bertholo no projecto de revista editado em Paris, KWY . Em 1975 volta a Portugal com o desejo de saber o que o vento da revolução teria soprado no seu país, mas cedo descobriu que a sua vida seria a de escritor solitário, que vê e lê a história e a política de forma omnipresente na sua obra contínua. Em obras como as “Sem Título” de 1969 e 1970 e posteriormente a série “Flags”, dos anos 80, a questão artístico-política é marcante. Ensina na Ar.Co entre 1978 e 1992 e após essa data dedica-se exclusivamente ao seu trabalho artístico. Em 2002 o Centro de Arte Moderna dedica-lhe a exposição antológica “António Sena – Pintura” e Serralves, em 2003, “António Sena: Pintura, Desenho (1964 – 2003)”. Tal como Herberto Hélder (Funchal, 1930) também António Sena começou a sua obra sob o apelo surrealista tardio ou mesmo dadaísta e actualmente é na sua faceta de desenhador incansável e copista e apagador que trabalha. Penso em Herberto Hélder, outro dos nossos cantores, que refugiado nos Açores cura o delírio dos dias com a sua poesia contínua, que auto-denomina de ofício cantante. Books/Cahiers é talvez o título perfeito para uma visão de exegese antinómica do mundo; entre o diário íntimo (cahier) e o livro aberto (book), entre o texto monoteísta da Génesis e a crónica política e agnóstica de Voltaire, entre um iluminismo filosófico humanista e um livro sagrado monoteísta. A leitura/visão das suas obras faz-se - entre - num cruzamento da visão entre processos criativos - cor, mancha e caligrafia - num palimpsesto. Sendo a técnica do palimpsesto a de voltar a escrever sobre o que já fora escrito, apagar, raspar, desde o tempo do pergaminho. Pergunto-me se será a escrita inicial de Sena ainda decifrável, ou é propositadamente semi-apagada deixando aos eleitos a leitura impossível do todo. Esta exposição encontra-se na pequena sala do rés-do-chão do Museu Fundação Vieira da Silva-Arpad Szenes, e basta entrar no espaço para ver que a qualidade pictórica do conjunto das duas séries de trabalhos é impressionante, não por ter os girassóis de Van Gogh a iluminar a divisão mas por sentirmos que estamos a entrar na antecâmara do tumulo do faraó Tutankhamon, como arqueólogos privilegiados. As séries estendem-se pelas quatro paredes da sala, com a sua linguagem cromática e legível/ilegível. Não será por acaso, que Jorge Silva Melo defensor no final dos anos 90 da linguagem incompleta na dramaturgia teatral contemporânea, da frase que começa sem nunca terminar, tenha escrito e realizado um filme sobre o artista, que apelida de “rabiscador imparável”. Porém voltamos a ler algures na exposição: “Rien le livre du sort se ferme à notre vue”. NOTA: Os Artistas Unidos produziram um filme documentário intitulado “António Sena: A Mão Esquiva” (2009), realizado por Jorge Silva Melo, que acompanha o labor do artista desde a retrospectiva que lhe dedicou o Museu de Serralves em 2003 até à preparação da exposição “Cahiers. Books” na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Um simples e cuidado catálogo bilingue foi editado pela FASVS e pela editora Assírio & Alvim, com textos de João Pinharanda, Vasco Graça Moura e Marina Bairrão Ruivo.
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