|
COLETIVAEntre Memória e ArquivoMUSEU COLEÇÃO BERARDO Praça do Império 1499-003 Lisboa 03 JUL - 29 SET 2013 Entre memória e arquivo e sobre o vazio que háA memória é algo construído quotidianamente. Independente de linearidade, a memória é fruto combinado entre sensações, realidades, pontos de vista, devaneios. Entre memória e História há cruzamentos, mas também há espaços em branco. Se há algo que deve entrar para a memória do Museu Berardo é o atual corte de despesas. A instituição tem se virado como pode (ou nos faz acreditar que sim). Entre a avalanche de notícias da imprensa sensacionalista, mudanças palpáveis chegam ao dia-a-dia do museu: passou a fechar às segundas-feiras, controlar horas extras dos seus colaboradores e a apresentar mais constantemente combinações e recombinações do seu acervo. A exposição atual do piso 0 revela, entre excelentes 150 obras, uma ginástica comum em fazer algo com pouco dinheiro. É difícil visitar a mostra Entre Memória e Arquivo, muito bem construída por Ruth Rosengarten que assina a curadoria, sem fazer um exercício tautológico sobre o que a própria instituição tem vivido na sua memória presente. Didática, a exposição aborda temáticas clássicas da questão da memória na arte contemporânea, resgatando o conceito de arquivo enquanto media, e do caráter primordial da imagem fotográfica de coletar na sua busca por catalogar o mundo. Entre Memória e Arquivo está dividida em quatro salas sub-tematizadas: na primeira aborda-se a ideia de consignação; na segunda a questão da tipologia; depois o uso da fotografia como materialização de artes performativas; e finalmente, culmina em trabalhos artísticos que percebem a História como suporte ficcional. Passeia-se pelas salas relembrando textos académicos e fazendo conexões com artistas que não lá estão. A memória de Ed Ruscha na abordagem tipológica, Taryn Simon na sala sobre a História como suporte ficcional, e Walid Raad com o seu Atlas Group, resgatam lembranças constantes. A temática da memória esta em voga. O “gatilho” aconteceu, mais intensamente, há 50 anos, passando então o tema a ser recorrente seja nos âmbitos académicos seja nos âmbitos artísticos. Da memória coletiva de Maurice Halbwachs na primeira metade do século XX, passamos à crise da memória dos anos 1990. Esta transição é belamente trabalhada por Hiroshi Sugimoto, que faz parte da Coleção Berardo e está presente na exposição. As suas fotografias de longa exposição de drives-in em funcionamento materializam o vazio. Dispostas entre as fotografias de azulejos de Pedro Quintas e os desenhos de Allan McCollum que desafiam a mão humana a ser máquina, as quatro peças de Sugimoto “explodem visão”, como o próprio artista define. Entre a memória e o arquivo, há um processo de mudança de paradigma. A arte passou a perceber a memória – e a sua organização, o seu arquivamento – não apenas como algo acabado, mas sim como um processo. Nas vanguardas modernistas, o foco era o produto final de uma intervenção na memória. A partir de 1950 e 1960 a intenção da coleta artística passa a ser o processo de coletar, arranjar e inventariar, em detrimento do objeto como fim. O processo então passa a ser passível de contemplação. A criação de um arquivo, ou ainda de uma memória, possibilita a emersão de uma poética do inventário. E assim, muitos artistas passam a questionar o espaço estável de conhecimento que era incumbido ao arquivo. Esse archival impulse, para usar a expressão de Hal Foster, passa a estar presente no processo criativo, no conteúdo das imagens ou ainda no formato de apresentação dos mesmos. Há, atualmente, um sem número de exposições fotográficas revisitando as questões da memória e do arquivo e toda a poética dos inventários. Apenas para citar um exemplo, em fevereiro de 2013, a Fundació Foto Colectania, de Barcelona, inaugurou uma exposição nomeada Artwork as Collection. The Artist as Collector que também foi resgatar este impulso arquivístico apresentado atualmente no Museu Berardo. Com curadoria de Joan Fontcuberta, a exposição era menor em comparação à em cartaz em Lisboa e o foco era um tanto diferenciado: todas as abordagens buscavam o processo, a montagem de arquivos. Exatamente o ponto não discutido textualmente na exposição Entre Memória e Arquivo. Apesar da construção textual aprofundada, o “fazer” arquivo não é citado, mesmo que o tema esteja – e muito – presente nos trabalhos artísticos apresentados, a exemplo dos clássicos reservatórios de água dos Becher. O encanto da arte contemporânea com o arquivo passa pela manipulação da “verdade”. O arquivo está historicamente ligado ao armazenamento do que é importante e do que é verdade. Bem como a fotografia. A popularização do acesso à informação e à documentação histórica – possibilitada principalmente pela internet que tornou as bases de dados num equivalente virtual dos readymade prontos para serem reinterpretados – parece ter incentivado de alguma forma essa corrente. A ideia de, via a arte, utilizar arquivos para questionar verdades, produzir uma nova leitura histórica ou ainda reescrever a história tornou-se comum, bem como a prática dos inventários, ou ainda a própria produção de arquivos. Os artistas que atuam com arquivos estão geralmente menos preocupados com as origens destes materiais do que com as possíveis leituras e relações que se pode incentivar com eles. O charme de brincar a alterar a história e a memória – seja via adição de informação, seja pelas opções de disposição, seja pelo contexto, pelos olhos de quem regista e de quem lê a mensagem do arquivo – está exatamente na maleabilidade das narrativas. Dentro de um arquivo, a disposição e intervenção de artistas formula novas possibilidades e pode vir a ampliar ou mesmo alterar o significado do arquivo e de seu conteúdo. Este organizar artístico diz muito sobre a intenção do artista e a forma de absorção dos leitores, atuando como uma “legenda” no sentido dado por Walter Benjamin de evidenciar uma postura, o “assumir uma posição” por parte do artista perante o tema abordado. Com a organização, define-se o conteúdo de um arquivo. Mas pouco adianta um belo conteúdo se não há acesso ao mesmo. E, neste ponto, a museografia da exposição Entre Memória e Arquivo apresenta um problema de acessibilidade: há obras de pequeno formato – como as fotografias íntimas de Umrao Singh Sher-Gil que na sequência da exposição irão reviver na abordagem da sua neta Vivian Sundaram em seu Re-Take Amrita – que não são possíveis de ser vistas pela altura na qual foram expostas. Grave, mas não muito. Ao fim do percurso, após ficar novamente boquiabertos com peça 364 Suisses morts de Christian Boltanski, saímos do piso 0 refletindo sobre o que queremos lembrar. Afinal, e com alguns deslizes no caminho, a perspetiva contemporânea que traça o elo da imagem fotográfica com o “não-esquecimento” e que permite um “lembrar como quiser” está representada no recorte da Coleção Berardo que encontramos em Entre Memória e Arquivo. Com algumas páginas em branco, algumas ausências, outras retiradas conscientemente. Como quando abrimos um arquivo.
|