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PEDRO CABRAL SANTOUnconditionallyCOLÉGIO DAS ARTES DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Colégio das Artes, Apartado 3066 3001-401 Coimbra 14 MAR - 17 ABR 2014 Há uma coisa oculta em cada coisa que vêsUnconditionally é uma exposição especificamente concebida para o espaço expositivo do Colégio das Artes, já de si marcado por um traço arquitectónico impositivo, por vezes ironicamente contrastante com as propostas de Pedro Cabral Santo. As salas sucedem-se e vamos encontrando e encontrando-nos com meios e técnicas distintas, com objectos híbridos resultantes de uma confluência de instalações-esculturas-vídeos-pinturas, uma característica da obra de Pedro Cabral Santo, que desde os anos 1990 nos vem interpelando de maneira irónica e surpreendente através do uso quase “doméstico” que faz da tecnologia. Pedro Cabral Santo propõe-nos sempre uma visão para lá das formas e do aparente reconhecimento dos objectos usados. Isso está bem sublinhado na citação de Alberto Caeiro “há uma coisa oculta em cada coisa que vês”, que faz o título [na verdade, é a segunda camada do título: s/ título (há uma coisa oculta em cada coisa que vês) in Alberto Caeiro – poemas, 1930-35] da peça composta por uma frase indecifrável, que nos leva a querer lê-la para logo percebermos que só a leitura não é suficiente. O uso de materiais vulgares e quotidianos é o ponto de partida para o fazer surgir da ficção, da estranheza, da instabilidade e da descrença. A imaginação é uma convocação sempre presente na obra de Cabral Santo, tanto como característica da sua intervenção artística sobre as peças, mas também como requisito fundamental para o espectador aceder à proposta do artista. Cabral Santo exige-nos um olhar que ultrapassa as associações unilineares, quer que o espectador recorre também às suas próprias referências e com elas se adentre numa reflexão muitas vezes incidente em contextos sociais e culturais. A linguagem nas obras de Pedro Cabral Santo não é por isso descritiva, é familiar e estranha ao mesmo tempo, ardilosa, por vezes, enfatizando o lado comunicacional do seu trabalho. Ao entrar na exposição, o espectador é confrontado com a palavra Selfish recortada em espelho e sobre a qual se projecta um vídeo de um aquário onde navegam medusas e outros peixes tropicais. A palavra Selfish faz uma dupla reflexão: o espectador que se posiciona em frente à obra, e se vê reflectido nela, e o vídeo que sobre aquela se projecta, sendo o recorte da palavra reflectido na parede oposta. Uma dupla reflexão, um duplo devolver da imagem: a imagem do espectador é-lhe devolvida e a imagem do vídeo é devolvida também à sua origem. Um dispositivo sobre a auto-reflexividade e o exibicionismo, válido tanto para o próprio espectador como para a Imagem em si, a imagem artística que muitas vezes se sobrepõe ao resto. A junção entre palavra e imagem, nesta luta pelo mesmo espaço da obra, desconstrói num jogo da física a preponderância que o EU, pessoa/imagem, o EU, entidade fechada aos outros, adquiriu na sociedade contemporânea. Ainda dentro desta relação palavra/imagem/projecção, e na mesma sala, está Homage (V de Fonseca), um busto em gesso tombado no chão mas cuidadosamente iluminado por um pequeno foco, deixando impressa no chão a silhueta com o perfil do retratado. O busto em vez de estar num pedestal, onde costumam estar os bustos, cabeças com corpos paralelepípedos, está tombado no chão, caiu do seu lugar, saiu do raio de relação antropomórfica com o espectador. Já não é uma presença de uma ausência, não é uma representação, antes uma objectificação. O olhar de cima a sombra do perfil, a silhueta delineada no chão, reduz a figura aos seus elementos: um nome, um corpo, uma imagem. A estranheza, a perspectiva desviada, são também factores que nos assaltam quando chegamos à sala com a vídeo instalação “Ponto cego”. Depois de um escuro onde ouvimos o que parece ser o som de um acidente de automóvel, é-nos apresentado um radioso céu e um som ambiente do que poderia ser uma paisagem à beira mar. No entanto, no canto da imagem, quase irreconhecível, está um carro semi-destruído. É quase uma metáfora da contemporaneidade, se quisermos vemos o acidente, a desgraça, a destruição, se não quisermos podemos ficar pela beleza do nascer do dia, por uma imagem de perfeição natural, uma imagem sedutora, que emascara. A crítica à cultura contemporânea, sempre presente na obra de Pedro Cabral Santo, nutre-se muitas vezes de referências concretas à cultura popular. Não é de estranhar assim encontrar um boneco da família Pokémon no topo de uma coluna de ferro, qual totem da cultura de massas, elevando aos céus o Ícaro moderno, ele todo já artificial, não só as suas asas inventadas, mas o seu corpo de plástico moldado. Este elevar simbólico e artístico de um material menos nobre perpassa continuamente pela obra de Cabral Santo. A sua relação com a tecnologia está entre um certo encantamento das coisas de uso quotidiano e a irreverência da sua transformação e do seu potencial disruptivo. Para o artista, a tecnologia é um médium através do qual as ideias, imagens e símbolos, o trabalho artístico, é transferido e exibido. Há um lado físico e social no uso da tecnologia em Cabral Santo, ela medeia essa relação entre o indivíduo e o seu entorno. É algo que está continuamente perto de nós, mas que mesmo assim consegue adquirir, quando trabalhado, um carácter de espanto, de curiosidade. Como o que poderia ser uma versão caseira de uma espada laser ao estilo Star Wars, uma luz grosseiramente montada com plasticina. O desmascarar do artifício visual está à mostra, um cabo enrolado no chão liga a luz-espada a uma tomada na parede. A fantasia acaba se não houver electricidade. Na mesma sala, duas peças onde o vermelho impera: Non e Impressionism. A descrição desta última conta que são “40 telas de 20x17cm pintadas de vermelho (com pantone da Bandeira da União Soviética) encontram-se colocadas na parede formando 4 linhas verticais, cada uma com 10 telas. Todas elas têm uma impressão de amarelo que foi obtido através do disparo, sobre as mesmas, de uma pistola de paint ball. É uma impressão, pois o tiro foi desferido sobre uma máscara de uma foice e de um martelo e, por isso, as manchas de amarelo encontram-se muito desvanecidas.” [1] O que há a ver aqui é o que não está lá, a acção que falta. Não só a acção que constitui a obra física, mas todo o imaginário associado a um contexto sócio-cultural. A confusão entre impressão/Impressionismo é quase um jogo de palavras que desarma a ideia de classificação, aqui do gesto e do seu conjunto. O trabalho de Cabral Santo é um desafio à agencialidade do espectador. Se não tomarmos a decisão certa, se não quisermos embarcar na viagem, podemos não chegar ao encontro com o artista. Turn left, turn left (Tru Thoughts) é uma pista circular onde uma locomotiva eléctrica deveria fazer o seu trajecto, mas os carris estão quebrados, desencontrados, virados para o abismo. A pista está deserta. Se não seguirmos a indicação no ecrã de virar à esquerda, então podemos vislumbrar qual será o fim. É impossível fazer um percurso contínuo, continuar no mesmo rumo. Aqui é necessário escolher os trilhos e todos são um risco, todos começam e terminam numa incerteza, num vazio, numa indefinição. Mas não é por isso que se deixa de fazer a viagem. E no vídeo corre a linha à nossa frente, na perspectiva do maquinista. Liz Vahia é licenciada em Antropologia e doutoranda no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. >>>>>> Notas [1] Texto presente na folha com a descrição das peças, fornecida na exposição.
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