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JOÃO FERRO MARTINSLa cosa che vuoi dirmi è bella o brutta?![]() 3 + 1 ARTE CONTEMPORÂNEA Largo Hintze Ribeiro 2E-F 1250 – 122 Lisboa, Portugal 28 MAR - 10 MAI 2014 ![]() As coisas boas e as coisas más![]() Esta vida em torno dos objectos tornou-se tão forte que hoje me custa dissociar de qualquer objecto que trespasse a minha vida e é com alguma pena que os vejo desaparecer ou, pura e simplesmente, perder a sua utilidade. A questão é que há uma vida que fervilha nos objectos que nos rodeiam. Essa vida vem do facto de sermos, não só, definidos pelo nosso meio ambiente, mas em especial definidos ou definindo-nos através de todos os itens pelos quais escolhemos estar rodeados. [1] Estas são palavras que vêm de uma boca ausente. É o objecto mesmo que fala, que se expressa em variadas pessoas, com vozes e sotaques diferentes, mas sempre o mesmo objecto. O objecto que é mutante, que muda de voz, género, país, que muda de história, tal como mudam os espectadores e o entendimento que dele fazem. É o objecto mesmo que conta, em tom teatral radiofónico, uma série de curtas narrativas com universos diferentes, banais ou insólitas, auto-reflexivas, agrupadas sob o título La cosa che vuoi dirmi è bella o brutta?. Uma coluna de som, empilhada no topo de cavaletes, madeiras, uma cadeira e um banco, difunde para toda a sala a voz que faz o objecto dialogar com as restantes peças presentes, quase numa interpelação ardilosa que faz o espectador pensar se “as coisas que me quer mostrar são boas ou más?” Falamos de Bella/Brutta, uma obra de João Ferro Martins que cria o ambiente sonoro da sua exposição na galeria 3+1 Arte Contemporânea. Uma pilha de objectos, onde as seis narrativas se vão encavalitando, reproduz um discurso que adiciona camadas ao nosso encontro com as restantes obras e proporciona a possibilidade de criar uma relação entre o que se ouve e o que se vê. A recorrência ao som é uma característica da obra de Ferro Martins, é um lugar específico no seu trabalho artístico, onde o corpo invisível do sonoro choca com a materialidade dos objectos produtores de som (instrumentos musicais, colunas de som, rádios, cassetes). Há um certo sentido poético nesta combinação da abstracção que advém do som e da redução dos objectos às suas características formais, com a materialidade presente das coisas quotidianas, encontradas, descartadas por alguém. Mas também nesta atenção que o objecto requer para a sua resolução artística. Os objectos trabalhados por Ferro Martins são objectos que se pensam e se resolvem a si mesmos, que trazem em si um pequeno poema visual a desvendar. Em Sala de Estar e Quarto de Dormir, o mesmo tipo de papel e partes da mesma folha autocolante juntam-se a outros dois objectos que compõe o sentido do título: na sala o postal com a vista sobre uma paisagem, no quarto o gancho de cabelo, uma peça íntima, que tem contacto com o corpo. O lado de registo quase “oficial” destas “provas”, desmorona qualquer ligação sentimental que pudéssemos querer convocar para estes hipotéticos espaços sugeridos no título. Em Insónia há um lençol através do qual se percebe um círculo azul. É uma obra com duas faces, um jogo de duplos e de semelhanças. De frente, o lençol com o círculo azul, numa mimética parodiante a qualquer obra da pintura abstracta; de trás, a desmontagem do efeito, ele próprio construído para ser desmontado, para ser encontrado e visto: um tripé de microfone segura uma lâmpada, que simula muito bem uma cabeça do microfone, e que quase toca no tecido do lençol. Próximo, demasiado próximo, mas sem tocar, sem queimar, sem desfazer o artifício da mancha azul do lado oposto. Uma intimidade muda, construída e concentrada num ponto? Voltamos a encontrar-nos com ganchos de cabelo em 90 Mulheres (um emaranhado metálico repousa num estilizado copo de vidro), tal como estes se encontraram com o artista, facto que faz questão de salientar ao descrever nos materiais “90 ganchos de cabelo encontrados”. Uma poética, onde a performatividade e a abstracção se combinam. É desse equilíbrio que nascem as propostas de Ferro Martins. A intervenção é portanto performativa, mais do que transformativa. Uma intervenção que isola, um gesto que sinaliza, uma acção imprevisível, é isso que constitui a obra. O artista aceita o que os objectos propõem, estes são agentes da sua própria constituição como obra de arte, através de uma interferência emocional e intuitiva por parte daquele. Por isso o acidente faz parte da obra. Nas peças Acidente#1 e Acidente#2, há um ressaltar da assimetria, do que não devia estar lá, daquilo que correu mal. Em Acidente#2, um papel com padrão floral, com marcas de dobras e nalguns sítios já comido pelas traças, está protegido por um vidro onde ocorreu um derrame de tinta luminescente. O acidente não pode passar despercebido, até na escuridão ele sobressai. Há uma noção de aparição, de assombro ao ver coisas comuns que não deixam de continuar a serem coisas comuns, mas que têm o toque da charada, são pequenos desafios, imediatos e mais rápidos alguns, quase pequenos poemas materiais, uns mais descritivos, outros mais obscuros e que pedem do espectador uma aceitação, não uma tentativa de interpretação. Há antes um consentir da proposta e os moldes deste consentimento é que variam consoante o espectador. Não há lugar a simbolismos ou memórias, muitos dos objectos são encontrados e não se referem a nenhum momento da vida do artista ou de quem quer que seja. Não há uma narratividade, há uma poesia concreta resultante da intervenção do artista e que enforma as peças ali naquele espaço, não as peças ontologicamente. O carácter performativo não se fica só na interferência, ele é tão importante ali como na apresentação da obra, em que o espectador se predispõe a participar nela, ali, naquele momento. >>>>>> Notas [1] Excerto de Objectofilia, in João Ferro Martins (2014), La cosa che vuoi dirmi è bella o brutta?, edição 3+1 Arte Contemporânea. ![]()
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