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KILUANJI KIA HENDAA CITY CALLED MIRAGEGALERIA FILOMENA SOARES Rua da Manutenção, 80 1900-321 Lisboa 18 SET - 29 NOV 2014 Encomendar uma cidade
Foi numa das várias viagens ao Namibe que fez desde 2004, perto da cidade de Tombwa, um porto pesqueiro entalado entre o declínio da indústria e o risco de desertificação devido à proximidade das dunas, que Kiluanji Kia Henda encontrou, em ferro carcomido pelo tempo, um letreiro dizendo “Miragem”. “Miragem” traz consigo todo um imaginário ligado ao cinema, à literatura. O rasto poético e de delírio que a palavra carrega remete-nos para essa imagem que está entre um espaço de salvação e um engano temporário. A palavra materializada em ferro foi o início de um projecto que ligaria o deserto à arquitectura. Mas ao contrário do letreiro carcomido que Kiluanji encontrou soterrado no deserto, A city called mirage não é uma convocação de um resquício do que passou, mas mais um esquema crítico, irónico do futuro, um espaço entre a paisagem ideal e todo o declínio que a materialidade comporta em si. À mesma reduzidas à sua estrutura linear, as imagens que se mostram da cidade virtual não são só as linhas que poderiam ter ficado mas as formas que hão de vir, a cidade em potencial. Oscila entre o projecto virtual da cidade materializado e a ruína certa que lhe vai sobreviver – uma afirmação do que à nascença já é morte. As novas cidades regressão ao deserto de onde se ergueram, ao esqueleto a que se agarraram. O aço erguido dos edifícios convertera-se num imenso esqueleto, tão enigmático que muitos se questionam se a cidade realmente existiu, ou teria sido apenas a descrição da miragem de um poeta alucinado na batalha para sobreviver ao deserto da nossa existência. A deposição das suas ruínas foi como livrar-se de um cadáver. Era embaraçoso e quase doloroso ter que reconstruir os factos do seu passamento físico. Com a cidade demolida e recortada em pedaços, o entulho foi atirado para uma poça na esquina de outra cidade a germinar. - The Palace of Abstract Power - The building series I Aconteceu a Kiluanji fazer residências artísticas na Jordânia e nos Emirados, onde a construção em ferro e vidro e a presença de arranha-céus é imagem de marca. Em Rusty Mirage (The City Skyline) vemos fotografias de esculturas realizadas por Kiluanji aquando da residência na Jordânia, uma intervenção no deserto de Al Zaraq, onde instalou estruturas metálicas que juntas reproduzem a silhueta esquelética do perfil de uma cidade. Assim como na série The Buildings, serigrafias e fotografias de esculturas realizadas no deserto de Maleha, nos Emirados. Nesses locais sobressai uma arquitectura que “busca o delírio”, como afirma Kiluanji, onde “os ossos [são] de aço e a pele de vidro”. “Há um lado apocalíptico na construção de estruturas que depois são abandonadas à espera que a oxidação aconteça”, analisa-se Kiluanji. É um ciclo interminável que a prática artística tenta fazer sobressair aqui, acelerando um processo de entropia: construir para destruir. A city called mirage mostra documentação de várias performances e esculturas realizadas pelo artista no deserto. Mas não são só fotografias e vídeos ao estilo Land Art, a narrativa tem aqui um papel importante. Kiluanji recorre ao poder da ficção, explorando o papel mítico do deserto, como lugar do vazio e do nada, como lugar da fuga, da reclusão, da meditação. Em Paradise Metalic, a personagem do Homem da Pá, mestiçagem entre Constructor e Coveiro à procura de construir a cidade ideal que viu em sonhos, é aquele que cria ao mesmo tempo que provoca o vazio. O que ao tirar de um lado está a fazer aparecer no outro, a cidade ideal inversamente proporcional ao vazio que a sua construção cria - “A sua imagem invertida seria uma infindável cratera no hemisfério sul, o seu avesso um litoral sem praias.” (Settings for an imaginary landscape) O vazio é então necessário para que o construído nasça – o caminho do deserto é importante percorrer. Utilizando esta ideia de vazio, há uma clara crítica ao desenvolvimento urbano actual. As cidades encontram-se vazias, não vividas, e são fruto da especulação e da nova lógica do mercado imobiliário. “Esse vazio é um deserto coberto de betão, é mais assustador que o vazio do deserto em si, é desolação e não já vazio”, afirma Kiluanji. Há um crescimento que é ilusório e que é visível na transformação da Arquitectura, “um bem essencial” – “porque não podemos viver sem mediação do espaço construído, porque a natureza é inóspita” - em economia de mercado. “Para que serve haver uma Arquitectura se os espaços são para ficar vazios? Em que é que se tornou a Arquitectura hoje, no momento em que a habitação se tornou economia e é mais representativa da descriminação social?” Cidades como o Dubai ou Luanda crescem baseadas no petróleo. Ao constatar isto, Kiluanji questiona-se: Como é que queremos a cidade contemporânea? Que modelos de desenvolvimento devemos adoptar? O que é ser desenvolvido? Como é que queremos crescer? Na África, na Ásia e na América Latina cresceram modelos estabelecidos pela cultura ocidental, talvez já não conformes com esses territórios. A construção de uma cidade importada cria um local de estranheza na própria terra. E Kiluanji termina vaticinando o futuro. Nas construções das cidades actuais reúnem-se agora várias nacionalidades (“arquitecto europeu, constructora chinesa, trabalhadores paquistaneses”). As novas cidades ultrapassaram as fronteiras das nacionalidades e a confusão das línguas. Voltámos à construção da Torre de Babel, que traz em si a sua destruição anunciada.
::: [A autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
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