Links

EXPOSIÇÕES ATUAIS


Fusil fotográfico de Marey.


A Medida de Olhar, 2017.


Camuflado.


Vista da exposição.


Observatório de Tangentes, 2017.


Snapshot, 2017.


Vista da exposição (Fade to Black, 2017)


Vista da exposição.


Olho e Linha: Arquivo de Pequenos Desvios, 2017

Outras exposições actuais:

BARBARA CRANE

BARBARA CRANE


Centre Pompidou, Paris
PAULO ROBERTO

FRANCIS BACON

HUMAN PRESENCE


National Portrait Gallery, Londres
THELMA POTT

TINA BARNEY

FAMILY TIES


Jeu de Paume (Concorde), Paris
CLÁUDIA HANDEM

JONATHAN ULIEL SALDANHA

SUPERFÍCIE DESORDEM


Galeria Municipal do Porto, Porto
SANDRA SILVA

ELMGREEN & DRAGSET

L’ADDITION


Musée d'Orsay, Paris
THELMA POTT

FERNANDO MARQUES DE OLIVEIRA

O ETERNO RETORNO, 50 ANOS


Galeria Pedro Oliveira, Porto
RODRIGO MAGALHÃES

FRANCISCO TROPA

AMO-TE


Museu de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto
CONSTANÇA BABO

JOSÉ M. RODRIGUES

TRATADO


Galerias Municipais - Galeria Avenida da Índia, Lisboa
FRANCISCO MENEZES

LUISA CUNHA

ODD


Lumiar Cité - Maumaus, Lisboa
MADALENA FOLGADO

ALEXANDRE ESTRELA

A NATUREZA ABORRECE O MONSTRO


Culturgest, Lisboa
LEONOR GUERREIRO QUEIROZ

ARQUIVO:


VALTER VENTURA

OBSERVATÓRIO DE TANGENTES




MNAC - MUSEU DO CHIADO
Rua Serpa Pinto, 4
1200-444 Lisboa

17 FEV - 07 MAI 2017

O Tiro Fotográfico

 

Em português, como em inglês, «tirar», «disparar», aplica-se tanto a uma bala como a uma fotografia, enquanto que em francês, tirar uma fotografia, é fazer-se uma tiragem. Na maioria das línguas há também palavras comuns ao tiro, à caça e à fotografia: o fotógrafo é um caçador de imagens (mesmo que alguns estejam mais à espera do momento certo), ele capta as imagens, ele aponta, ele dispara; Susan Sontag utilizou muito esta analogia no seu livro Sur la Photographie.

 

 
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, tir photographique, anos 1930.

 

Uma exposição em 2010 nos Rencontres Internationales de la Photographie em Arles chamava-se também Shoot! À entrada encontrava-se uma verdadeira barraca de tiro onde, se a bala acertasse no alvo, era-se automaticamente fotografado: divertimento feirante dos anos 30 e 40, frequentado por Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (em cima), Man Ray e Lee Miller, e outros, como testemunhavam os seus troféus fotográficos na exposição, é o caso da a holandesa Ria van Dijk que pratica este desporto desde 1936.

 


Jean-François Lecourt, La balle crée l'image, 1982.

 

Aí também víamos fotógrafos (Jean-François Lecourt, Rudolf Steiner, Thomas Bachler) atirando (com pistola, espingarda ou por vezes com arco) em camerae obscurae herméticas, o impacto da bala criando desde logo uma camâra pinhole, orifício através do qual a luz entra e vem impressionar a superfície sensível: o impacto da bala no papel fotosensível corresponde então ao cano da espingarda na imagem, desde que o atirador fique imóvel. Podemos vê-los como autoretratos performativos, como exercícios de criação/destruição da imagem, e como um questionamento «desconstrutivo» do acto fotográfico.

É um trabalho menos literal e mais poético sobre este tema o que Valter Ventura apresenta no Museu do Chiado, na sala Sonae, até 7 de Maio (ver também a emissão da RTP entre 5’15 e 8’). Valter Ventura é um fotógrafo português (1979) que se interessa antes de mais pelo que é a fotografia, mais do que aquilo esta mostra. Fotografou também céus, desperdícios e neblinas incertas, sempre à margem da representação. Foi aluno de Timm Rautert, um dos primeiros fotógrafos conceptuais (com Anastasi, Snow, Hilliard, Dibbets e, claro Ugo Mulas) que, desde 1970, se têm debruçado sobre a ontologia da fotografia, sobre a fotografia auto-reflexiva, aquela que é o seu próprio tema.

O ponto de partida do trabalho de Valter Ventura, intitulado «Observatório de Tangentes», é a experimentação do francês Étienne-Jules Marey (1830-1904) que, em 1882, para compreender a mecânica do voo das aves, construiu uma espingarda fotográfica, com coronha e visor mas onde o carregador era substituído por um cilindro graças ao qual doze imagens de um pássaro se sucediam em curtos intervalos, podendo-se sobrepôr sobre o papel fotosensível. Marey era um médico, um científico, diferente do fotógrafo americano Eadweard Muybridge que, na mesma altura, analisa a locomoção animal e humana (e em primeiro lugar o galope do cavalo) graças a uma bateria de aparelhos em linha que disparavam automaticamente à passagem do corredor ou do cavalo. O engenho de Muybridge leva a uma sucessão de imagens do movimento decomposto, o de Marey a uma imagem única onde o movimento se vê pela sobreposição.

Quisemos muitas vezes ver aqui o proto-cinema mas, apesar de toda esta tecnologia, o objectivo é diferente: os irmãos Lumière, 15 anos depois, criam uma ilusão do movimento continuo, enquanto Marey e Muybridge decompõem o movimento numa série de imagens fixas.

À direita, Valter Ventura apresenta uma discreta vitrina que pode servir de introdução técnica e histórica à sua exposição (A Medida de Olhar): aqui vemos documentos sobre Marey e a sua espingarda-câmara, embalagens, catálogos tanto de tiro como sobre fotografia. Do outro lado da entrada, nove fotografias a cores (Observatório de Tangentes) mostram vários instrumentos de óptica e de tiro, como troféus nas paredes de um castelo.

Aí encontramos visores, óculos de tiro e outros instrumentos onde apenas um especialista poderia definir a sua utilização; o mais comovente é um fato de atirador de um tropa de elite dos comandos, camuflagem vegetal impressionante na sua veracidade, uma concha vazia, inabitada.

O homem que poderia voltar a vesti-lo está presente no resto da exposição, através do resultado dos seus tiros: numa parede, doze fotografias de pombos de barro, despedaçados (Snapshot). Noutra, quinhentos alvos em cartão e perfurados pelo impacto e atravessados por um espeto de madeira (Olho e Linha: Arquivo de Pequenos Desvios): os ligeiros desvios em relação ao centro do alvo criam assim um volume que se distancia um pouco da perfeição do paralelepípedo, e por conseguinte do tiro, mas de facto pouco, pois o artista (que sabemos ser também um pugilista semi-profissional) parece ser um excelente atirador.

Ao fundo, sobre um duplo écran e ocupando toda a sala na penumbra (Fade to Black) Valter Ventura, à esquerda, concentrado e esforçando-se por ser certeiro, tenta atirar pedras em direcção a uma grande lâmpada eléctrica sobre o écran da direita: a imagem é cortada em duas e quando, após várias tentativas, ele consegue, a sala fica na escuridão, acompanhada pelo som do vidro estilhaçado, o que sobressalta os espectadores. É o fim, o fim da luz, o fim da imagem, o fim da fotografia.

 


Mr. Pippin, Point Blank, 2010

 

Este fim trágico invocou, na minha opinião, o trabalho do excêntrico artista inglês Mr. Pippin que, na sua série «Point Blank» desenvolve um mecanismo muito sofisticado através do qual uma bala de pistola destrói um aparelho fotográfico, o qual, no momento de morrer, regista uma última imagem da sua destruição, como um sinal do fim da fotografia.

Encontramos aqui o mito, bem analisado por Margarida Medeiros no seu livro A Ultima Imagem, Fotografia de uma Ficção, da retina dos moribundos, conservando a última imagem antes da sua morte (acreditando que tomando antecipadamente e analisando a retina, poderíamos assim identificar o assassino).

Mas a força do trabalho de Valter Ventura é de não se focar somente no poder destrutivo do tiro, quer seja ele de bala ou de fotografia, como outros fizeram, mas de fazer-nos meditar sobre o acto de atirar mais do que o seu resultado.

Quem tenha praticado tiro desportivo sabe a que ponto a concentração, o controle sobre si mesmo, a capacidade de «esvaziar» o espírito, a focalização mental sobre o alvo, são essenciais. Celso Martins, que assina o texto de apresentação do catálogo editado pelo museu, cita uma das leituras de Valter Ventura, um pequeno livro de Eugen Herrigel, professor alemão que ensinara filosofia no Japão, entre 1924 e 1929, e que se iniciara, com o mestre zen Awa Kenzô, ao tiro ao arco. Este livro, Zen e a Arte do Tiro com Arco, era o breviário de Henri Cartier-Bresson: a ascese do atirador de arco, o esquecimento de si próprio, a capacidade de se desligar, não mais se preocupar com o seu alvo, mas apenas consigo mesmo, da sua concentração espiritual, que são tão difíceis de dominar para um ocidental, são perfeitamente adequadas para um fotógrafo.

É isto que retiramos desta exposição: que a fotografia não é apenas uma técnica, contrariamente ao que parece, que ela não é apenas um medium, contrariamente ao que se espera, mas que ela é, antes de mais, na hora da omnipotência numérica, um percurso mental em tangente, uma resistência às selfies e aos ecrãs alienantes.

 


Marc Lenot
Autor do blogue Lunettes Rouges



MARC LENOT