|
JÚLIA VENTURA1975-1983CULTURGEST Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, Rua Arco do Cego 1000-300 Lisboa 18 MAI - 29 SET 2024
It was not until the 1960s and 1970s, exactly that period when ‘the age-long slavery of woman’ was being challenged, that women artist began to openly proclaim their difference from their male counterparts. The explicit gendering of the artist was a consequence of the demand of the woman’s movement for equal rights and endorsement of a distinct female voice. (Jones, 1993)
Júlia Ventura transmuta o ser através de um “rasto” de memórias autobiográficas, como se fosse um simulacro da redução de um signo linguístico da imagem. Esta visão semiológica da imagem, em que é marcada pelo tempo e pela repetição, evidencia a “duração” da memória. As fotografias movimentam-se como frames de uma cena cinematográfica, que esboçam a narrativa da identidade do ser. Perceciona-se uma antologia da memória, que dissolve na identidade através da denúncia de um “socius”, segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 15), ou melhor, “um corpo pleno determinado como socius”. O corpo passa a ser um veículo da identidade pessoal e social. A artista apresenta-se como matéria de ação do coletivo e de transformação. A artista desfragmenta o sujeito, incitando o espectador a redescobrir o outro e o seu duplo. Com esta narrativa do corpo, possibilita-nos a leitura da desconstrução do universo fotográfico que, por sua vez, ressoa o outro como uma miragem enquanto duplo.
Vista da exposição Júlia Ventura 1975-1983. Cortesia Culturgest, © Vera Marmelo.
Através da fotografia, mergulha-se nas profundezas do corpo, enquanto drama e dor. Descortina-se o corpo nas suas múltiplas manifestações do género. Neste panorama de denúncia e de desconstrução de identidades metamorfoseadas, a fotografia levanta o véu social para a privacidade do “eu”. O corpo rasga fissuras sociais e políticas, numa transfiguração da descontinuidade de um discurso da metalinguagem do ser, em que o tempo, a repetição do gesto e do movimento do corpo vibram no duplo feminino. Observamos um caminho existencial da linguagem estética. Das sombras da linguagem, a artista disseca os cânones de beleza ou de estilo, como descreve o curador Bruno Marchand, numa desconstrução da aparência. Nestas narrativas da imagem, Júlia Ventura expressa a identidade através de um desmembramento de preconceitos comportamentais e sociais. Apresenta, assim, as múltiplas ressonâncias do corpo. Ela converte-se na própria obra de arte, ecoando a liberdade e a contracultura ocidental, numa espécie de resistência ao poder, num manifesto ativista social e individual.
Retratar não é afinal, representar uma representação, porque o rosto não é uma imagem, mas um complexo de sinais e de forças em movimento que o puxam pra fora de si, para fora da significação, deformando o mapa até deixar irreconhecível, ora para dentro de si, fixando-o numa figura estática, humana, ilusoriamente una. (Gil, 2005, p. 33).
Através do autorretrato, olha-se a imagem após imagem, os sinais após sinais, o momento após momento, a artista contorce no movimento sem fim, a identidade desdobra-se nas múltiplas sombras do ser, a aparência dilui-se, exalta-se a crítica, a performance do “eu”, que se transfigura no outro, rompe a fissura do social, através do sofrimento e do desespero, da crueldade e da sensação. Tudo é morte e, simultaneamente, é vida, presenciado, sentido e vivido. A artista Júlia Ventura expressa o drama após drama, um ato performativo, como se fosse o último suspiro do ser. Numa experiência dilacerante e crua, entre gritos e contorções corporais, vozes do silêncio e do obscuro, vibra o movimento em vozes que marcam o espaço, Double Bound (n~2), 1980. A memória, o silêncio e a perda refletem uma linguagem sem linguagem, o gesto em linguagem, a palavra sem palavra, duas vozes que entoam, outras que se cruzam e se desdobram entre o “eu” e o “outro”, o “eu” e o “duplo”, o ser e o não-ser. As obras mostram-nos por fragmentos diálogos desconcertantes que apelam ao vazio e ao silêncio, à voz sem voz, à mudança, uma emoção que é vivenciada na sua magnitude pela repetição, um êxtase de dor numa dobra sem fim, cuja dobra se desdobra soa a uma desconcertante palavra: Why?, 1981. Ilumina no espaço, palavras e mais palavras, silêncios e mais silêncios emergem da escuridão, Place of Enlightenment, 1982-2024. Do vídeo retorna à fotografia, da fotografia ao vídeo, a comunicação do silêncio, uma linguagem do vazio, a voz do silêncio, um corpo que expressa na multidimensão temporal a desmaterialização do ser. O corpo desagrega-se numa miragem caleidoscópica, o feminino dissolve-se no erotismo, na sensualidade e na morte. O espectador contempla a imagem, o corpo deflagrado, como se estivesse no interior e no exterior, simultaneamente, passando a ser ele mesmo o corpo, a voz e o silêncio, de modo que as noções corporais deixam de existir e passam a ser a ação o mecanismo fundamental da perceção estética da obra, sendo o intervalo da ação o que define a matéria do próprio corpo, o “entre” no ser, a fissura no corpo.
|