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TERESA TAFLUZ MAIS LUZGALERIA PRESENÇA (PORTO) Rua Miguel Bombarda, 570 4050-379 Porto 21 SET - 09 NOV 2024
Consta que no leito da sua morte, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), expoente figura do Iluminismo e autor do poema trágico “Fausto” (1808), proferiu como últimas palavras: “Lich, mehr licht” (Luz, mais luz). Esta ideia foi veiculada pelo médico Carl Vogel (1798-1864), num ensaio sobre a história médica de Goethe, no “Journal der Pratical Heilkunst”. O inusitado é que, supostamente, Vogel não estaria presente no referido momento. Pelo que se pode confabular que tais palavras sustentam um aspeto simbólico, um género de epitáfio de teor Iluminista e de fantasmagoria apolínea, num desafio para a clareza, a verdade e o conhecimento. Inspirada por este ‘grito’ de Goethe, a artista Teresa TAF traz para a sua exposição, patente na Galeria Presença entre 21 de setembro e 9 de novembro de 2024, um conjunto de pinturas alicerçadas numa declarada avidez por luz que alumie essas águas profundas e voláteis que surgem como ignição, para uma investigação sobre o âmago da interioridade do ser. E do silêncio das suas profundezas, como espaço de refúgio, de retiro e de encontro. A artista intima-nos, assim, para um encontro com o seu lado mais pessoal e intuitivo, consubstanciando Bachelard que defende ser “necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz.” [1] Para a concretização do seu trabalho, a artista procedeu, no seu atelier, à transformação do pigmento natural extraído da planta herbácea Isactis Tintoris, resultando numa “receita única e irrepetível” de Indigo. [2] Um espaço artístico, o atelier, cede a uma transfiguração subliminar como ‘laboratório’ de experiências, e acolhe um compromisso, onde a criatividade alquímica, da artista, alude à produção pré-industrial das tintas. Trazendo à memória tempos de outrora, em que maior parte dos pigmentos provinham dos minerais, de terras, de plantas ou mesmo de insetos. As manchas abstratas, que compõem as pinturas, reivindicam essa essência do pensamento das águas - o “psiquismo hidrante” - de que nos fala Bachelard. [3] Sendo que a água, como epitomiza o filósofo, reflete e tem fundo, por isso podemos utilizá-la como espelho ou janela. Refere a artista que “os materiais e texturas utilizados trazem luz e vida nos seus elementos naturais, nomeadamente na água recolhida in loco, em rios, ribeiros e riachos, com os seus minerais e micro-organismos.” [4] O Indigo é utilizado em versões mais diluídas, claras e transparentes e em outras mais saturadas, em camadas sobrepostas de tinta, que resultam num universo mais escuro, profundo e denso, um veludo noturno. As composições de manchas multiformes, numa espécie de ‘vivacidade’ fixada, revelam a qualidade poética da imprevisibilidade dos resultados, que a matéria providenciou. Este declarado respeito pela matéria e as suas propriedades, “em gestos de pertença, de abertura, e de partilha” [5], num exercício plástico de expressar interioridades, apresenta uma similitude com algumas premissas do manifesto do Grupo Gutai [6]. Os seus integrantes declararam perseguir, com entusiasmo, as possibilidades da criatividade pura. Acreditando que a fusão das qualidades humanas e das propriedades materiais providenciavam uma compreensão, mais concreta, do espaço abstrato. A integração das obras no espaço da galeria contempla, por um lado, as mesmidades que nos orientam para a apresentação convencional da pintura, ou seja, emoldurada e pendurada na parede e, por outro, formas disruptivas dessa formalidade que a historiografia da arte já vem documentando desde o século XX. Desfronteirizações que levaram Rosalind Krauss à teoria de “Campo Expandido” e aos seus quadrados estruturalistas. Na primeira sala, as pinturas de Teresa TAF encontram-se penduradas na parede ou sustentadas por fios, neste caso detendo-as na liminaridade da Instalação. No entanto, a forma como são agregadas ao suporte expositivo revela contornos particulares. Placas transparentes, sem caixilho envolvem, parcialmente, o papel de algodão. Pelo que, parte da pintura se estende para lá dos limites do suporte. Como água que transborda do seu receptáculo. Um outro pormenor, associado a uma das obras, merece igualmente destaque. Uma das pinturas tapa, também de forma parcial, um espelho. Este que é matéria construída e civilizacional, que acolhe o engano e abraça o onírico, duplica e aprisiona um mundo que, paradoxalmente e ironicamente, lhe escapa. Esses pedaços de espelho, a descoberto, permitem o nosso reflexo. E se “o que vemos só vale - só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” [7], como refere Didi-Huberman, então neste caso parece imperar um confronto com nós mesmos, com a nossa interioridade, auxiliado pelas obras que a artista nos dispõe para contemplação. E nas quais, também, extravasou o seu íntimo. Proporcionando encontros desencontrados. Metafóricos. Metafísicos. Na segunda sala, duas obras suspensas e expostas como uma espécie de assento de baloiço, onde se vê, o que parecem ser, formas ampliadas de microrganismos, criam uma disrupção com a fórmula convencional que as outras obras, que habitam o espaço, são apresentadas. Algumas pinturas mostram ser o resultado de sobreposições sucessivas de camadas de tinta. Resultando em abstrações onde parecem habitar águas soturnas e escuras que contemplam mistérios e abismos. Um possível reflexo nessas águas, já só nos devolveria a singularidade da silhueta de um corpo aglutinado à escuridão. E, no fim, restava-nos a clarividência de Goethe. “Luz, mais luz”, como grito para emergir.
Sandra Silva
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Notas [1] Bachelard, G. (1998[1989]). A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes editora, pp 1-2
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