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FRANCISCO TROPAAMO-TEMUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 08 NOV - 11 MAI 2025
Da exposição destaco, precisamente, em primeiro lugar, essa particular dinâmica entre os seus diversos elementos constitutivos. Por eles, somos conduzidos pelo espaço, do início ao fim da visita, convocados a aproximar-nos, impelidos a afastar-nos, entre luzes e sombras, formas e reflexos, num contínuo desafio percetivo, sobretudo visual, pois é aí que tudo se processa, que tudo opera. Francisco Tropa declara a prioridade da visão, considerando-a o modo primeiro e primordial da recepção da arte, “é a partir dela que tudo começa, a visão é o princípio”. O seu trabalho é para se ver, momento durante o qual o artista convida o espectador a integrar a sua arte. Como já o incontornável Marcel Duchamp havia compreendido, o objeto artístico requer esse outro, aquele que o recebe. E embora estejamos sempre do lado de fora da obra de Tropa, permanecendo a nossa interação predominantemente visual, o artista “pede o trabalho do espectador”. Ocorre que ver arte implica um exercício, de atenção e de devoção, somente dessa forma se concretizando a finalidade da obra e o culminar da experiência estética. Citando Duchamp, em “The Creative act” (1975), a “arte é o produto de dois pólos; há o pólo daquele que faz o trabalho e o pólo daquele que o observa”. Identificou, então, uma transferência do artista para o espectador, “sob a forma de uma osmose estética”. Por conseguinte, o futuro da obra de arte, a condição da sua continuidade ao longo do tempo, situa-se na recepção.
© NVStudio / Cortesia Museu de Serralves
Assim se desdobra a exposição em Serralves, numa sucessão de ativações visuais executadas por uma vasta quantidade de peças particularmente singulares e dinâmicas. As duas salas principais da ala direita do museu, sendo amplas, permitiram a concretização de dois projetos, “O Enigma de RM” e “Assembleia de Euclides”, iniciados em 2000 e 1900, respetivamente. O primeiro ocupa na plenitude a galeria expositiva que nos recebe, e embora se assinale uma articulação com o espaço do museu, tendemos a esquecer tudo o que nos rodeia. Os protagonistas, os objetos artísticos, reclamam a nossa atenção, em semelhança ao que ocorre durante uma peça de teatro, cuja envolvência, desde a sala a todos os outros espectadores, desaparece. A cena, o que se desenrola no palco, faz de nós cativos. Na exposição de Tropa, entre uma e outra obra, o enigma anunciado reverbera e desvela-se. Entre figura e fundo, frente e verso, o artista interpela-nos com sucessivos trompe-l’œil, mediante os quais, perspetivas e figuras ora se escondem, ora se revelam. As obras, tridimensionais, vêm-se projetadas, adoptando e conquistando uma quarta dimensão. Num jogo de reflexos e sombras entre objeto e espaço, questionamos onde termina o primeiro e começa o segundo. Alguns materiais repetem-se, acentuando a proximidade e a relação entre as obras, embora o principal elemento unificador resida no facto de se tratarem do produto de um notável trabalho escultórico que aborda problemáticas pictóricas. Na segunda sala, no projeto nomeado a seguir a Euclides, o “Pai da Geometria” de 300 a.C., encontramos mais desafios de perspetiva e de ótica, que também constituíram objetos de estudo do matemático grego. Porém, com Tropa, entra em cena a fotografia, enquanto motor de tudo o que se processa entre as duas peças centrais, “A Marca do Seio” e “O Transe do Ciclista”. A primeira convoca a figura de Vénus e tem na sua génese um desenho de Théodore Chassériau, da projeção de uma imagem feminina e do seu seio, o qual, por sua vez, nos remete para uma outra obra desse mesmo artista, a reconhecida “Tepidário de Pompeia”, datada de 1853. As referências de Tropa são, com efeito, várias e é necessário procurar conhecê-las para verdadeiramente compreender e experienciar o seu denso, complexo e rico trabalho. Relativamente à segunda instalação, “O Transe do Ciclista”, explora o processo fotográfico, especificamente o da longa exposição, isto é, de um longo tempo de abertura da lente fotográfica. É deste modo que a câmara é capaz de acompanhar e registar a ação, o movimento do ciclista. Daí, da transferência do real para o negativo fotográfico e deste último para o positivo, testemunhamos a produção de imagens, das quais alguns exemplares são exibidos, mais adiante, no que constitui uma absorvente e magnética exposição fotográfica. Ambas as esculturas, de grandes dimensões, serão regularmente ativadas, a primeira por uma mulher e a segunda por um homem, numa relação binária que atravessa de modo mais ou menos evidente toda a exposição. Por exemplo, à entrada, encontramos o Sol e a Lua. No final, as penúltimas peças são dois grafites intitulados “Adão” e “Eva”. Por sua vez, a obra que encerra a exposição questiona “Che Vuoi?” (o que queres tu?), tal como enunciado por “Le diable amoreaux” (1772), de Jacques Cazotte. Quanto a Tropa, questiona o que é que a obra de arte pretende dele, de mim, de ti. “Amo-te” resulta de um extenso trabalho desenvolvido ao longo dos últimos três anos, razão pela qual, como indica o curador Ricardo Nicolau, não consiste numa comum retrospetiva, representativa de um passado, mas trata-se antes de uma exposição que celebra o presente do artista. É, ademais, a primeira monografia de Tropa numa instituição portuguesa. Para além das quatro salas ao longo das quais a exposição se estende, acrescentam-se arquivos na biblioteca do museu, na sua maioria ready-made, objetos cuja funcionalidade lhes foi destituída em detrimento de evidenciar a sua potência artística. Acresce um programa de performances, que ativam a “Assembleia de Euclides” e outras, no auditório e no átrio de Serralves, coordenadas por Cristina Grande. A exposição inaugurou no dia 8 de novembro e permanecerá passível de ser visitada até 11 de maio. Entretanto, em dezembro, abre-se um outro capítulo expositivo, desta vez no Nouveau Musée National do Mónaco, por certo igualmente distinto e ímpar, tal como aqui se apresenta Francisco Tropa, um dos mais relevantes e valiosos artistas contemporâneos portugueses.
Constança Babo
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