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'LAURENCE PARA SEMPRE', DE XAVIER DOLAN

Maria João Guerreiro

2013-03-05

Depois de duas longas metragens que deixavam antever em Xavier Dolan um potencial cineasta, Laurence para sempre (Laurence anyways) confirma que o realizador canadiano é um dos nomes mais consistentes da nova geração do cinema de autor.

Dolan tem-se firmado como fenómeno de culto desde que em 2009, aos 20 anos, estreou em Cannes Eu matei a minha mãe (J'ai tué ma mère). Assinava a realização, produção e argumento de um filme que protagonizava e que, sem receios de maior, assumia como parcialmente autobiográfico. Foi premiado no festival francês, atraindo atenções e louvores, e nele voltou a marcar presença em 2010 com Amores imaginários (Les amours imaginaires), uma ode ao idílio da juventude, representado na forma de triângulo amoroso, que evocava invariavelmente Os sonhadores (The dreamers), de Bernardo Bertolucci.

Laurence para sempre, recentemente estreado no nosso circuito comercial após uma exibição prévia no Lisbon & Estoril Film Festival, competiu no segmento Un Certain Regard em Cannes, recebeu uma nomeação para os Césares na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e foi o vencedor do Prémio de Melhor Filme do Festival de Toronto. Cerca de quatro anos depois da obra iniciática, a filmografia e o discurso de Dolan estão, obviamente, ainda em construção. Todavia, a peça que agora apresenta desbrava algum terreno inédito na sua já sólida trajetória e prenuncia uma maturidade estética, formal e narrativa que se destaca dos trabalhos predecessores.

Pela primeira vez, Dolan não é ator, e são Melvil Poupaud e Suzanne Clément a dar corpo a uma história de dois adultos idealistas. Poupaud e Clément são, respetivamente, Laurence e Fred, um casal de namorados bon vivant dos anos 80-90, que se vê confrontado com uma situação limite quando Laurence, professor de literatura e discreto escritor em ascensão, anuncia à sua companheira que se quer tornar numa mulher.

Posto isto, como o protagonista o diz, “tudo tem de ser reinterpretado” – quer a relação de ambos, quer os relacionamentos familiares e profissionais, cujas implicações Laurence e Fred terão de gerir. Dolan não põe a tónica na questão da transexualidade, embora mantenha, à imagem dos outros títulos, a temática queer no eixo da problematização. O seu interesse é muito mais o de aferir, por um lado, o grau de resiliência do amor entre dois seres humanos, e, por outro, a importância da entidade “pessoa”, em detrimento do seu género.

Não se focando demoradamente na transformação de Laurence, Dolan aborda o processo de revelação e de descoberta identitária que a transcende, dedicando-se, numa epopeia fílmica com quase três horas de duração, narrada em flashback, a explorar a carga dramática inerente à decisão da sua personagem. Os momentos de tensão e crise – encarnados com uma emotiva visceralidade por Suzanne Clément, premiada em Cannes pela sua interpretação –, assim como os de puro onirismo cinematográfico com que Dolan tanto gosta de pausar o drama, são ambientados por uma banda sonora com a qual toda a narrativa dialoga, e que inclui não só a pop de uns Visage, Duran Duran ou Headman, mas também as portentosas sinfonias de Beethoven ou as composições para ballet de Prokofiev.

Nos 10 anos passados em retrospetiva, assistimos às mudanças de um status quo outrora relativamente estabilizado. De professor com um emprego seguro, Laurence passa a figura mediática na academia, que se numa primeira fase nos aparece, num singular enquadramento de Dolan, abençoado por um elenco de homens excecionais – Rousseau, Kant, Descartes, Sócrates –, depressa é julgado por criaturas tão desfiguradas e monstruosas quanto as de Bosch.

Ecce homo condenado à semelhança de Cristo, o Laurence de Dolan declara que o seu gesto “não é uma revolta, é uma revolução”. Laurence e Fred inspiram, sem dúvida, essa crença numa nova geração, capaz de aceitar com naturalidade as tendências sexuais emergentes nos 90. Contudo, mais do que isso, personificam uma elevada crença na tenacidade, na procura de si próprio e na preservação do eu, que é verdadeiramente aquela para a qual Xavier Dolan atenta.

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