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uma combinação | Armanda Duarte


“Uma Combinação”


Armanda Duarte apresenta três trabalhos que estabelecem relações entre si. Já o próprio título da exposição, “uma combinação”, alude a esse propósito, mas também se dirige a relações não visíveis na exposição que estão na sua génese. O título, tanto remete para o jogo que se pode estabelecer entre as diferentes peças expostas, como para outro trabalho imediatamente precedente, exposto no Centro Cultural de Lagos, que se intitulava “A Reformada”. Este tipo de vínculos, que estabelecem uma relação em teia, são comuns no universo da obra da artista.

Se os projectos expostos na Plataforma Revólver remetem para o acto de combinar, de juntar coisas de origens diversas com o objectivo de formar um corpo, em “A Reformada” o que estava em foco era o traje que pertencia a uma memória do quotidiano da artista. Só a título de curiosidade, referia-se à padeira que, durante anos, existiu no seu bairro (o que, extrapolado, incluía todas as padeiras de bairro com uma profissão em fase de extinção), que se apresentava, na maior parte das vezes, vestida com uma bata sobre a combinação. Não se dirigindo directamente a este facto singular que poderia ser muito mais lato, importa, nas duas peças, frisar um certo anonimato do labor por detrás de um “uniforme quotidiano”.

Esta introdução, de alguma forma emblemática, serve para compreender o universo do trabalho de Armanda Duarte, que parte de princípios conceptuais que mergulham no seu quotidiano próximo. A artista constrói um universo sensorial que, mesmo apesar de ser inserido num quadro social, nunca se conforma com uma reacção imediata ou tentativa de representação simplista do real. O seu trabalho apela sempre a uma construção poética dessa realidade e ao discernimento de sentimentos universais partilháveis em qualquer contexto cultural. A artista inscreve-se no meio dos acontecimentos que geram a sua ordem poética apelando mais ao seu ser que à sua presença. Nessas circunstâncias, é difícil falarmos do seu trabalho a partir de uma perspectiva formal e técnica quando se olha para o conjunto da sua obra. Ela varia muito de trabalho para trabalho, com opções materiais e formais ao serviço da poética das ideias. Cada trabalho é um ciclo que está em contágio com o ciclo precedente e dando origem a outros por indução. Materiais, formas e expressão são convocados conforme as necessidades de cada projecto. O que resulta é uma interrogação sobre a possibilidade de uma representação do real mais complexa.

O trabalho que se apresenta, “Uma Bata e uma Combinação”, composto por círculos de barro que contêm água, resulta de várias referências. Da memória de uma viagem, em que tecidos enrolados ao lodo serviam para estancar e conduzir a turbulência da água da enxurrada, e parte ainda de uma lembrança dos vasos de flores que se perfilam nos pátios portugueses, nomeadamente dos pratos que reservam a água debaixo deles. No entanto o que conduz este trabalho não é tanto o retrato dessas duas realidades imediatas nem as questões socio-culturais implícitas mas a observação de um gesto de cuidado de manutenção com um valor mais amplo, universalista e abstracto. Para além da plasticidade do trabalho, o que se requer é a manutenção diária das formas circulares de barro. Este lado performativo é manifesto diariamente por cinco eleitos do seu círculo de amigos, denominados “Os Vigilantes”, título doutro trabalho exposto. Uma vez por dia, um deles passa pela galeria para verificação e manutenção da obra. Têm ao seu dispor, no próprio espaço expositivo – à vista do público –, todos os elementos necessários para os seus cuidados:
água para preencher os contentores, assim como uma tesoura e uma bata que pode ser retalhada para o caso de ser necessário vedar as gretas que se possam gerar nas paredes de barro. A enumeração dos elementos é uma das constantes na obra da artista que nos fazem lembrar a preocupação de uma objectivação do trabalho artístico fora de qualquer tentativa de transcendência.

Seria a presença dos vigilantes que daria, então, origem a um segundo trabalho a expôr na Plataforma Revólver. O projecto começou com a solicitação de um desenho em torno da idade de cada um dos participantes que, posteriormente, deveria enviá-lo pelo correio. Na sequência, a artista desenhou com um certo realismo cada um dos
projectos enviados para, depois, expôr numa prateleira. De certa forma, são cinco desenhos de desenhos explorando a sua tridimensionalidade. São igualmente a oportunidade de registar outras presenças. Armanda, neste como em outros trabalhos, tem abordado a possibilidade de uma comunicação dialógica entre ela e os assistentes. Esta prática vem de uma certa relação que a artista estabelece com o projecto em si. Cada projecto constitui-se como um enunciado que estabelece, à partida, uma ordem e uma perspectiva de desenvolvimento. Podem autonomizar-se seguindo as premissas muitas vezes de ordem lógica ou matemática. Daí que,
momentaneamente, possam estar à deriva, sob efeito de factores exteriores, que tanto podem ser outros sujeitos como outros factores de ordem natural. A organicidade que está, em geral, presente nos seus trabalhos prende-se, muitas vezes, a esta questão da sobreposição de acidentes decorrentes de um desenvolvimento natural das coisas. É como se a linearidade estabelecida pelo enunciado se prestasse a um espaço suficiente para o outro, ao imprevisível e ao disforme que lança o caos regenerador. No caso desta exposição, os contentores encontram-se à mercê das reacções do próprio material, assim como das intervenções dos vigilantes que os vão condicionar provocando diariamente transformações. Em outros trabalhos anteriores verificaram-se vários estratagemas de calendarização e de contabilização que eram sobrepostos a uma outra temporalidade marcada por transformações da organicidade dos elementos convocados.

No conjunto da obra de Armanda Duarte talvez importe referir o silêncio
que se constrói no seu entorno. É uma sensação que nasce da fragilidade, da minuciosidade e da discrição com que os seus projectos se apresentam ao público. A performance dos vigilantes, mesmo que diária, não antevê a necessidade de um espectador, a não ser ocasional. Contudo, o vestir a bata implica uma ideia de performance, e o vigilante individualizado incorpora todo o quotidiano laboral repetitivo que se perde num grande silêncio. Ou seja, o seu trabalho convoca o que no quotidiano há de mais anónimo e invisível. Associa uma consciência que ultrapassa a ausência de espectacularidade do quotidiano, intimando a discreta presença da singularidade.

Por fim, o último projecto, “60m3”, nasce de um jogo com o próprio espaço expositivo. Construído a partir de linhas que são estendias em tensão no espaço, procura-se criar um desenho aéreo que, de certa forma, contrapõe e cria relações com o lado terreno do outro extremo. O desenho desenvolve-se como uma simetria do outro lado do espaço expositivo e, como o seu próprio título indica, sublinha a abstracção e
a invisibilidade da matéria espacial, características de eleição sempre presentes na obra da artista.


Francisco Vaz Fernandes





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