O Contrato do Desenhista - Exposição com curadoria de Paulo Reis
Lisboa, Novembro 2008
Caro
voyeur,
Se sente-se atraído para achar algo de literal nesta mostra, insisto que ficará desapontado. Contudo se pretende encontrar o encantamento que o filme de Peter Greenaway suscita, o
Contracto do desenhista apresenta-se como uma proposta tentadora. Como também o desafio de fazer essa mostra, cuja solicitação a cada artista foi a de criar uma obra especialmente para o espaço e que envolvesse algumas considerações apontadas pelo realizador no filme. Reforço que a ideia da visualidade aqui pretendida não supõe-se literal, mas sim indicial de algumas situações - cinematográficas - sugeridas pelo autor. O que se põe em questão neste jogo são os valores da ciência, da moral, da sexualidade, da religião, do poder e, finalmente, da capacidade humana em contrariar expectativas. Uma ligação perigosa (i) que desenrola-se através do olhar arguto de cada artista. Na acção do filme, a encomenda do trabalho é derivada da provocação para que ele, o artista, mostre seus dotes e imprima sua versão da história que acontece a luz dos factos.
Como em toda cinematografia de PG, a dualidade vida-morte é representado por cenas alternadas de mortes seguidas por nascimentos. Toda simbologia dos números, da ornitologia, da astrologia, temas e obsessões do autor são constantemente evocadas. Os números, em especial, são os marcadores do tempo, das encomendas, das situações narrativas, das mortes, das frases e do
timecode (ii). A cinematografia de PG é um desafio ao intelecto, repleto de
puzzles intrigantes que obrigam ao espectador, através de pistas e vestígios, a uma investigação a histórica, a ciência, a história da arte e a filosofia. O corpo ocupa o lugar central neste jogo, sendo a chave para a compreensão ao ocupar o lugar de destaque no seu glossário visual. Para PG quando o corpo está nu é sereno, quando vestido é pesado de culpa e de vergonha, pois a roupa é o mais forte artefacto cultural.
O excesso de exposição do corpo leva ao canibalismo, metaforicamente em
The pillow book e literalmente em
The cook, the thief, his wife and her lover (iii), uma alusão à moral excessiva proveniente da tradição cristã, sugere o autor. O consumismo capitalista e o cristianismo têm a mesma sinalética de metáfora do consumo do corpo. Para o realizador, ele atravessa todos os tempos, todas as culturas e identidades e representa o Eu físico, onde todos têm um corpo, mutilado ou não, todos os seres têm na sua exterioridade uma forma de filtrar a imagem interior. As interpretações variam, os rituais mudam, mas o corpo continua imune. O corpo nos filmes de PG ignora as modas, muitas vezes não é jovem ou elegante; por vezes é mesmo feio. Ele escapa aos estereótipos criados pelas modas e é claramente evidenciado o seu interior e o seu exterior, o doente e o são, a deformação e a transubstanciação, numa enciclopédia fisiologica do corpo.
A cultura como bem consumível é também uma das metáforas mais usuais, chega mesmo a canibalizá-la ao introduzir uma imagética revolucionária retirada da pintura renascentista, barroca e maneirista, para estupefazer ao espectador. PG pinta mais do que realiza: “gostaria de encontrar uma maneira de introduzir no cinema todas as coisas que têm uma tradição histórica muito mais longa de produção de imagens ocidental. Certamente em relação à tradição imagética ocidental, deveríamos examinar todas as centenas de milhares ou dezenas de milhares de imagens dos últimos três mil anos. E deveríamos utilizá-las no cinema com a mesma intensidade que dedicamos a textos escritos,” sugere PG.
Mas meu caro
voyeur, estás a perguntar-se qual a relação pretendida entre estes artistas e o filme? Poderia dizer a prática do desenho como principio e fim da obra. Não tão simplista foi o pretendido, diria, gostava antes de tudo era de estabelecer um contacto visual entre si e as obras, deixá-las falar por si, esclarecer as relações, evidentes ou não. Posso, entretanto, indicar um fio vermelho(iv) a percorrer a estrutura interna deste labirinto - o carácter fetichista em Pedro Gomes e Rachel Korman – a dicotomia do poder em Nuno Ramalho - as (contradições) afirmativas na física por Gonçalo Sena e Maria Laet - a natureza transfigurada em Sandra Cinto e Rosana Ricalde - a cultura como valor supremo em Diogo Pimentão e Rui Horta Pereira - chaves para se entrar neste espaço mágico denominado arte. (A)venture-se!
Paulo Reis
PS: Meus sinceros agradecimentos aos artistas que contribuíram de forma amorosa a minha proposta, as equipas das Galerias 111; 3+1 Arte Contemporânea; Baginsky Projectos, Carlos Carvalho Arte Contemporânea, Filomena Soares, Graça Brandão e Presença; também ao Victor Pinto da Fonseca pelo amável convite e o apoio da equipa do Plataforma Revólver. Agradecimentos especiais a David Barro e equipa da Dardo ds.
i) Choderlos de Laclos, Les liaisons dangereuses, editions Gallimard.
ii) Timecode é o código em números que marca as cenas nas películas para ajudar no processo de edição.
iii) Além de curtas e médias metragens, Peter Greenaway realizou uma dezena de filmes abordando os memos temas, ver também os títulos A zed and two noughts, 1986, 112 min. / The belly of an architect, 1987, 105 min. /Drowning by numbers, 1988, 108 min. / Prospero’s books, 1991, 123 min. / The baby of macon, 1993, 120 min, além dos citados no texto.
iv) Goethe, As afinidades electivas, Lisboa: Relógio d´Água editores.
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(Sophia de Mello Breyner)
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