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Ivan Argote, Bertille Bak, Aymeric Ebrard, Pierre Labat, Eva Nielsen, Gaël Peltier, Elisa Pône, Sylvain Rousseau, Rémy Yadan
Curadoria Marianne Derrien
«Acreditar no mundo é aquilo que mais falta nos faz; perdemos o mundo por completo, desapossaram-nos dele. Acreditar no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controlo ou façam nascer novos espaços/tempos, ainda que de superfície ou volume reduzidos.», Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Éditions de Minuit, 1990.
«Sou o meu próprio governo.», Gustave Courbet.
Intrinsecamente produtora de mitos, Lisboa possui uma longa história de espionagem e de actividades clandestinas. Do pessoal ao colectivo, da impostura ao desarreigamento e ao percurso existencial, esta cidade, porta da Europa, questiona uma cultura da acção, da deslocação e do ficcional.
A acção do filme Casablanca desenrola-se durante a Segunda Guerra Mundial, época em que a fuga e a capacidade de dissimular a identidade, o passado, os sentimentos e as convicções moldam a trama do argumento (a cidade de Casablanca era francesa, mas ocupada pelos alemães).
De Paris a Marselha até Casablanca, o nome de Lisboa é uma constante no filme. É a cidade a alcançar para partir para os Estados Unidos e passa a ser a plataforma de todas as fantasias e de todas as vontades para fugir ao nazismo. Só os atalhos serão possíveis, os que permitirão «criar a ilusão». À luz desta referência cinematográfica, a exposição alimenta-se também de uma importante referência literária, a de Fernando Pessoa. Indo buscar o título a um dos seus livros, a exposição tem como ponto de partida a noção de infiltração. Longe de ter uma abordagem didáctica ou demonstrativa, esta exposição é uma reflexão sobre as relações entre ficção e documentário, entre intervenção directa e fábula, já que a noção de filtro permite enunciar um conjunto de novas posturas adoptadas por determinados artistas, quer sejam antropológicas, políticas ou sociológicas.
A dimensão processual e práxica do gesto é um elemento fulcral desta exposição colectiva que reúne 9 jovens artistas franceses. Questionando os níveis de leitura e de apreensão, estes artistas revelam as relações contraditórias ou ambivalentes com os sistemas de pensamento, de crenças e de sociabilidade. Através de acções frequentemente perigosas e programadas, os artistas esboçam narrativas, deslocam e captam realidades para as porem à prova. Ângulos de ataque, captação e deslocação do real: a infiltração em questão.
INFILTRAÇÃO, O Privilégio dos Caminhos é uma exposição que evidencia as tácticas, os procedimentos, as intervenções e as produções de ficções de uma jovem geração de artistas. Prestando especial atenção ao real e ao factício, à objectividade histórica e à criação, ao arquivo e à colecção pessoal, estes nove artistas recorrem a métodos, instrumentos e abordagens diferentes. Construída simultaneamente sobre as suas obras e a descompartimentação das suas práticas, a exposição focaliza-se nas junções entre estética e política.
Destacando modalidades plásticas que oscilam entre estratégias documentais e formas poéticas, os artistas entram nos sistemas de representação dominantes recorrendo aos campos cognitivos da sociologia, da ciência, da antropologia, da teologia e da história.
Lisboa infiltrada, cidade-plataforma às portas do mundo.
Cidade inapreensível, cidade labiríntica, Lisboa, porta do mundo, terá sido fundada por Ulisses numa das suas viagens. Portugal construiu-se com base na sua situação geográfica: um país no extremo da Europa. O regresso da democracia, em 1974, com o 25 de Abril e a adesão à União Europeia, em 1986, marcam o fim do isolamento do país. No início do grande período de expedições e descobrimentos portugueses, planos e dispositivos secretos, aliados aos seus vastos conhecimentos, permitiram que os navegadores portugueses fossem mestres no domínio marítimo. Mestres que não queriam divulgar os seus segredos, mas que procuravam sempre saber mais.
Mais recentemente, durante a Segunda Guerra Mundial, o Eixo e os Aliados dispunham de importantes serviços diplomáticos em Lisboa, um dos únicos locais da Europa dilacerada em que as duas partes se podiam encontrar em pé de igualdade. Ambas procuraram também descobrir segredos nesta cidade, que cedo transformaram num verdadeiro «ninho de espiões». No filme Casablanca, «o avião para Lisboa» era o único meio de fuga e permanece o exemplo mais célebre das actividades secretas que aí se desenrolavam à época. Apesar de ser uma nação neutra durante a Segunda Guerra Mundial, Lisboa tornou-se no ponto de encontro dos espiões, que aproveitavam as ligações estratégicas do país com o Atlântico.
Acto de fictio: O Privilégio dos Caminhos?
>> Fictio, termo latino que abrange as noções de feitura, fingimento, disfarce e ficção.
Fernando Pessoa afirma que fazer arte lhe parece cada vez mais uma terrível missão – um dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador de civilização de toda a obra artística (carta a Cortes-Rodrigues, 19.1.1915). Além de uma crise de identidade do sujeito e do tema da pluralidade do eu, Pessoa põe à prova as vertigens do ser.
Segundo Antonio Tabucchi, Pessoa percebeu o reverso das coisas, do real e do imaginado, a poesia dele é um juego del revés. Nesta perspectiva literária, trata-se de interrogar a narrativa, a narração, a relação que a fábula mantém com o real. De que forma o verdadeiro, o falso e o factício estão interligados com o conhecimento histórico? Os escritos de Carlo Ginzburg, historiador italiano nascido em 1939, defendem a realidade histórica na óptica do testemunho. Chefe de fila da micro história, as suas obras estão repletas de acontecimentos contados sob vários ângulos, de modo a apresentar uma espécie de história microscópica, o mais próxima possível da verdade dos factos.
Percursos oblíquos e heterodoxos – os artistas reunidos para esta exposição afastam-se dos dogmas e das ideias feitas. Não conformista, alegre e subversiva, esta visão do mundo alerta para o perigo, combinando impertinência, surpresa e força: uma busca do desassossego da arte. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial.
Marianne Derrien, comissária da exposição