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PEDRO POUSADA
LIZ VAHIA
Professor na Universidade de Coimbra, no Departamento de Arquitectura e no Colégio das Artes, Pedro Pousada continua a ser um prolífico desenhador, ancorado na solidez da tinta preta e num imaginário marcado pela banda desenhada, pela ilustração, caricatura e crítica social, onde o detalhe e o movimento, assim como certas reminiscências modernistas, são características marcantes.
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LV: Estudou pintura Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, tendo feito depois um estágio em pintura também na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris. No entanto, associamos o trabalho artístico do Pedro a um desenho próximo da estética da ilustração e da banda desenhada. Consegue traçar a forma como se desenvolveu o seu imaginário?
PP: Não partilho da ideia de que a banda desenhada, de que a ilustração, as narrativas gráficas em geral, sejam um menos ser da arte. Não sei expressar o meu agradecimento a Daumier, a Grandville, a Doré mas também a Chester Gould, a Alberto Brescia, a Will Eisner.
O primeiro modernismo anti-naturalista que vi foi o da banda-desenhada Krazy Kat de George Herriman que se publicava num preto e branco embaciado no desaparecido Diário de Lisboa- mas também, por puro acidente, aos cinco anos, quando ainda não lia, descobri os cartazes Rosta de Mayakowsky, as colagens de Rodchenko, e essa dupla nunca mais saiu da minha cabeça. Na altura pensava que Herriman e Schulz, o autor de Charlie Brown, eram funcionários desse vespertino lisboeta e que estavam a falar para os adultos e crianças do meu tempo. O anacronismo de admirar o trabalho de pessoas mortas ou já reformadas da vida útil tem algumas vantagens sendo uma delas a surpresa que é percebermos, como Brecht o pressentiu perante os cânticos dos camponeses do Nilo dos Faraós, que a duração do tempo, a história, não é o lugar de uma mudança garantidamente positiva, que a repetição e o reversível são propriedades (ou castigos) do quotidiano e que o futuro não é o produto de uma finalidade e que aquele futuro sem porcos e estúpidos é uma “coisa difícil de fazer”. A estupidez humana persegue-nos, os idiotas motivados são incansáveis, o desamor e a incapacidade de comunicar não descolam das nossas vidas e o mundo aparentemente simples e resolvido da banda-desenhada, foi o primeiro sítio em que me apercebi disso: somos criaturas difíceis. O mundo da Banda-desenhada, dos quadrinhos, do gibi, são o meu primitivismo, são a minha versão do autorretrato de el Lissitzky em que ele sobrepõe a sua “mão de macaco”, (a motricidade do primata ainda que segurando um compasso) ao olho que não é mais do que a ligação direta entre o mundo e o cérebro. Tecnologia e fisiologia, padrões morais e apetites, livre-arbítrio e cesarismo posso reencontrá-los numa estória de Ric Hochet ou de Achille Tallon.
Mas acho também que a associação do meu trabalho à estética das narrativas gráficas limita as possibilidades hermenêuticas, isto é, fixa o atenção num universo visual que para mim tem o valor de um princípio mas não é a chave interpretativa do que faço. Não existe consequência nem “relação narrativa entre os objetos” (Bourdieu utiliza este termo para falar da revolução simbólica modernista) no meu trabalho. Não quero contar uma história até porque não tenho grande jeito para a efabulação. O meu espirito é mais o da montagem, da contra linguagem, da dialética entre alienação e consciência, culpa e necessidade…
Nos últimos vinte anos da minha produção artística, grande parte dela constituída por desenhos, tem sido recorrente uma metodologia em que o que está desenhado (articulando-se entre o figurativo, o informe e o abstracto) não é exactamente ou apenas aquilo que está desenhado. Parece uma inversão tautológica (o desenho é um desenho que não é apenas o desenho, ou o desenho, coisa visível, é apenas uma das camadas de sentido do desenhado) mas tem sido uma preocupação pensar como e se é possível resgatar a narrativa gráfica do ónus dos lugares comuns da cultura de massas (quero sobretudo potenciar o jogo semântico entre o reconhecível e o irreconhecível, as possibilidades de associação e de disrupção do logos e do intuitivo, do hermético e do senso comum- como no Nouveau Roman: falar dos objectos sem um fim condutor, sem um princípio e sem vontade de os tornar reais). Os meus desenhos têm um lado de perca e de castigo, são uma antologia de modos de desenhar, de agir graficamente onde o prazer se pode rapidamente transformar em náusea, cansaço, descrença: sei onde começo na folha, sei que uso o acidente, que arrisco, improviso e manipulo o imprevisto mas muitas vezes sinto que o que prevalece não é tanto o poder do processo, mas as redundâncias e constantes gráficas, a desarmonia compositiva, o excessivo, o ruído. Acumulo e relaciono imagens e a experiência torna-se a anulação, através do verosímil, do familiar, do vivido.
Interrogo-me muitas vezes como posso extrair desse excesso uma totalidade que aproxime os instrumentos visuais (os desenhos) que utilizo, que mediatizo, do mundo em que vivo. Eu entendo-os como sintomas mas desfocados e destituídos da racionalidade com que representamos o quotidiano como um “ainda mais uma vez” ou um “outra vez”, como um sempre igual que se vai deformando ao ponto em que o fim (a obsolescência, a demência, a velhice, a morte, a finitude e a insatisfação de nos termos apenas a nós próprios) é já um principio. Desenho a pensar nisso, que isto vai acabar e que “nada fará sentido” (porque já não somos recordados por quem quer que seja). Desenhar torna-se a invenção natural, orgânica de um outro sentido em que já não somos necessários.
Assim tento muitas vezes que nos meus desenhos a parte (o pormenor, a biografia do gesto, a mancha autográfica) fale do todo, que o invisível e o complexo sejam metaforizados pelo estereótipo, que o diagrama explique a “associação livre disjuntiva” e em que a “voz interior” (as minhas ideias, a minha cabeça e os seus males) reverbere processos de socialização, de estar no mundo, de aparecer, de alienação que se ligam à temática do informe e do atomismo na multidão urbana conforme esta foi definida por George Simmel; talvez o meu pathos (doença) seja a percepção desolada de um mundo (irremediavelmente, necessariamente) dividido, incomunicável e bárbaro em que a estética é a estratégia de esquecimento e de ocultação do repugnante mas também é um trabalho (do pensamento, do mundo das ideias e do mundo das formas) sobre o aporético pois não resolvendo os problemas humanos (filosóficos), não sendo um guia para a acção (correctiva, transgressiva) em relação às contradições do viver, às imperfeições do dizer, não possuindo propriedades terapêuticas em relação à fisiologia do desejo, ao insaciável, ao incontrolável, à vertigem da morte, ela, a estética, como o comunismo, é um espectro que nos atormenta (o desejo de ordem, de harmonia parece-me muitas vezes como o mergulho de Marinetti na lama nutritiva, uma sujidade que limpa); não me interessa, contudo, desenvolver uma mimese do abjecto, do mórbido, mimese que facilmente cai no mesmerismo (e gratificação masoquista) do corpo castigado (o teste aos limites do sofrimento, do desconforto, da privação e sentidos, da náusea) ou sequer pretendo ceder aos instrumentos panfletários da agit-prop. A minha indagação é do âmbito da filosofia política e é uma interrogação ao Diabo do Fausto de Goethe: quando é que o mal produz o bem e o bem produz o mal?
LV: Actualmente, está a desenvolver algum projecto ou série na área do desenho?
PP: Estou no processo de terminar um livro de artista, mantenho uma atividade continuada e quero repensar alguns aspetos do meu trabalho.
LV: Como é que se deu a aproximação à arquitectura e o surgimento da tese de doutoramento “A arquitectura na sua ausência”?
PP: Quando frequentei a ESBAL (agora FBAUL) o curso de arquitetura ainda se domiciliava no labirinto no convento de São Francisco, no coração do Chiado incendiado mas o meu convívio com esse universo era intermitente senão nulo mas recordo-me que a minha empatia partisan por uma arquitetura baseada na tradição do novo baseava-se na ideia de que o futuro (que para mim era – e é - o do socialismo científico, if you get my drift…) estava povoado por essa arquitetura limpa, organizada, coerente e luminosa; na adolescência imaginava uma concomitância entre avanço civilizacional e a estetização do espaço. Mas foi também por essa altura que percebi que o inverso também era verdade, e uma verdade continuada. As conquistas humanas são reversíveis, o egoísmo, a barbárie e o racismo também ocuparam e viveram em bairros modernos e luminosos e não apenas em palácios e villas pastiche e historicistas. Na série Spirou desenhada por Franquin havia um episódio, os “Piratas do silêncio” (1959), que decorria numa cidade de acesso condicionado feita por milionários e para milionários toda ela constituída por edifícios modernistas. A antítese da cidade feita para todos e por todos, e uma cidade em que era proibido tirar fotografias. A arquitetura de Vanguarda, como lhe chamava Fernand Léger, parecia ser concebida para usufruto dos poderosos; verifiquei pouco mais tarde no filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati, numa daquela sessões cinéfilas que a RTP2 oferecia nos anos 80, que a moradia modernista high tech também aparecia como recompensa do administrador bem comportado, arquétipo da classe média que nasce com o boom industrial francês. O excêntrico monsieur Hulot morava na mansarda de um edifício escaganifobético, para usar um termo da minha infância; havia muita nostalgia naquele contraste entre a errância trapalhona do sr. Hulot e a casinha isotrópica, lixiviada, do seu cunhado; como se Tati quisesse falar do contra-campo da decisão arquitetural, as sobras do espaço construído, as derivações imprevistas, as áreas vazias, o baldio, o indefinido e o informe que existe no ambiente construído que se reproduzia sem qualquer ligação militante ao presente, à atualidade…era muito poético este humor onde o sujeito (moderno mas não atual) não se perdia na multidão e a sua falta de jeito sabotava a produção. Outro filme que subsidiou o meu conhecimento do problema arquitectónico foi o de Howard Hawks, The Fountainhead, baseado no romance de Ayn Rand. É outro extremo dessa colagem do moderno com o poder, neste caso a supertécnica arquitectónica, demiúrgica, top down, é materializada na figura de uma arquiteto que sobrepõe a sua vontade, o seu ego, aos consensos, à comunidade, preferindo a destruição da sua obra à rendição ao kitsch. Mas a verdade é que muito pouco sabia sobre arquitetura e foi em 1999, quando cheguei ao DARQ (Departamento de Arquitetura da FCTUC) para assumir funções como docente de Desenho que todas estas impressões adquiriram densidade e nexo narrativo e me apercebi, sobretudo que estava num curso muito concentrado nas aporias da sua teoria e da metodologia projetual que define o seu ethos histórico; um curso que falava uma língua estrangeira; tive que aprender essa língua mas apesar dos meus avanços sinto que esse lapso acentuou-se e que o meu trabalho académico é um esforço para atenuar essa incerteza e desfasamento perante uma língua viva e cada vez mais idiomática. Uma língua que me fascina quer na sua clareza e despojamento quer no seu hermetismo. Um língua onde o espaço se torna tempo e este se torna espaço mas que talvez por isso seja permeável a outras contaminações...
O meu trabalho de investigação onde se inclui a minha tese de PhD situa-se no âmbito da teoria artística e tem procurado aferir o grau de reciprocidade e de cruzamento disciplinar entre a arte do século XX e o espaço-tempo arquitectónico produzido nesse mesmo período temporal. Interessa-me entender como práticas espaciais especializadas ligadas à concepção, organização, uso e apropriação do ambiente construído e práticas artísticas (desde as ligadas às convenções históricas das Beaux-Arts até ao modelo entrópico que caracteriza a produção artística pós-duchampiana) estabeleceram concomitâncias e influências mútuas, como funcionaram através de consensos mas também de antagonismos.
LV: Além de professor no Departamento de Arquitetura, o Pedro é também investigador do CES – Centro de Estudos Sociais, e coordenador no doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da UC. Como é que coordena o trabalho científico e lectivo com o trabalho artístico? O artista fica relegado para as horas vagas?
PP: O artista entrou na clandestinidade mas como todo o agente duplo chega um momento em que o verdadeiro e falso se tornam idênticos e dissipa-se a vontade de ser salvo ou exfiltrado.
LV: Acha que a sua criatividade artística pode beneficiar do seu percurso como académico? Há uma co-evolução dos dois campos ou vê-se repartido entre um e outro?
PP: Tenho procurado constituir os meus interesses temáticos (o modernismo nas artes, o cruzamento entre cultura artística moderna e cultura arquitetónica) como um importante multiplicador de recursos historiográficos e metodológicos não só para a minha actividade docente mas para o modo como interpreto o trabalho artístico. Mas a verdade é que ainda estou a tentar perceber como lidar com o fim da parede como espaço de descanso da pintura (ou do desenho) de que falava El Lissitzky…
LV: O Doutoramento em Arte Contemporânea apresenta um programa muito abrangente e interdisciplinar, promovendo uma reflexão crítica por parte dos próprios artistas. Sentia que havia a necessidade de um ciclo de estudos deste género dentro da área das artes visuais em Portugal?
PP: Um ciclo de estudos doutorais em Arte Contemporânea é uma oportunidade de não só a Academia (a Universidade) se relacionar com esse “espaço praticado”, a arte, que é estranho e problemático nas sociedades pós-industriais e que, por isso, ou ainda assim, consegue ser de um valor extrínseco à economia monetária e à subsequente exigência de utilidade – ensina os indivíduos a compreender o mundo para além da fetichização da posse, da eficácia, da perfeição; como é também uma oportunidade do mundo da arte se colocar em observação, fora de lógicas de oferta e procura, e de resgatar o essencial, o processo artístico (e as suas condições de presentificação, de mediatização) do claro-escuro mundano.
LV: Em 2013 o Colégio das Artes recebeu o “Encontro sobre investigação em Arte e o lugar da Arte na Universidade”, onde participou James Elkins, crítico de arte e professor na School of Art do Art Institute of Chicago, autor de um texto provocador onde expõe uma série de razões para desconfiar da validade de cursos de doutoramento para artistas. Como é que o Colégio das Artes está a responder a essas suspeitas?
PP: Não tenho a mesma leitura da investigação de James Elkins que a pergunta infere. O trabalho de Elkins parece-me menos focado na suspeita e mais na apreciação crítica do que está a ser feito em diferentes instituições académicas por esse mundo fora; uma apreciação que procura numa perspetiva positiva aferir os elementos que nessa heterodoxia dos Phd’s in Arts possibilitem o diálogo e o cruzamento de experiências e a superação de redundâncias. Interpreto o trabalho de Elkins como a engenharia de um protótipo que depende da partilha de conhecimentos, de resultados entre massas críticas diferenciadas. É verdade que os modelos pedagógicos e a articulação entre prática artística e produção teórica não estão ainda estabilizados, a semântica possui muitos espaços vazios e há conflitualidade, mas dialética e produtiva, entre o que a Academia entende como investigação e o que os artistas, em particular, colocam dentro desse conceito; mas essa condição de alteridade sempre se manifestou no espaço académico; é uma das inércias da interdisciplinaridade, do cruzamento e colaboração entre campos disciplinares muito diversos que os conceitos tem operatividades e aspetos qualitativos digressivos- pense-se por exemplo como os arquitetos e os sociólogos possuem as suas próprias definições e nomenclaturas para o conceito de cidade ou mesmo de espaço público; a linguagem que falam é diferente, mas essas diferenças são mutuamente inclusivas e necessárias; é assim que salvaguardamos a cultura humanista e sobrevivemos à tecnocratização da Academia. De um modo geral os planos curriculares tem uma história recente e é natural que surjam leituras contraditórias sobre como organizar e fazer funcionar os protocolos de produção do “seminar room” e do “art studio”. Mas há aspetos que considero de senso comum e que desarmam as posições de suspeita e de desvalorização de um PhD em Artes: é muito difícil encontrar num curso de Doutoramento, seja em que campo disciplinar for, um estudante que não possua o rascunho de um projeto, que não tenha colocado uma hipótese, que não possua empatias temáticas muito definidas; haverá sempre incautos e distraídos que rapidamente se autoexcluem do processo mas estamos a falar de adultos que atravessaram diferentes ciclos de graduação académica, que muitas vezes possuem, é essa a nossa experiência no Colégio das Artes, um currículo profissional nas práticas artísticas, na curadoria, no design, na arquitetura, nas artes performativas, na crítica de arte, no ensino artístico, e que, devido a essa experiência, compreendem que a teoria da arte é uma estrutura permanentemente inclusiva e que portanto exige uma atualização e revisão crítica da literatura e que uma perspetiva multidimensional do que é hoje a Arte implica senão um domínio pelo menos um manuseamento consequente do que se passa na literatura de áreas que lhe são afins, da Estética à Filosofia da Arte, da História da Arte à Antropologia, e por aí adiante.
Surgirão melhores artistas, mais atuantes devido aos estudos doutorais baseados na prática artística? A resposta a essa pergunta não nos inquieta mas estimula-nos a perceber como as pessoas não são bidimensionais e o modo como nos aproximamos delas não é necessariamente definitivo, elas conseguem sempre surpreender-nos: sinto-me cada vez mais enriquecido intelectualmente pela oportunidade de diálogo e de partilha de conhecimentos com os meus colegas e com os doutorandos do Colégio das Artes (mas também os meus alunos e os meus colegas do Departamento de Arquitetura).
LV: Está também muito ligado ao CAPC, uma estrutura com uma importante e já longa história na vida artística de Coimbra. Como é que começou essa ligação?
PP: Eu extrapolava a importância do CAPC para o panorama nacional mas sou suspeito pelas responsabilidades editoriais e de reflexão crítica que tenho realizado em torno das exposições; trabalho esse que a atual direção me proporcionou; o CAPC que comecei a conhecer e a apreciar ainda na direção decisiva do Vitor Diniz – onde participei em exposições organizadas pelo Vitor Diniz, o Paulo Mendes e o António Olaio e que reputo como fundacionais da minha biografia artística- consolidou-se com a atual direção do Arquiteto Carlos Antunes, um ativista resoluto da causa artística, num interface de diferentes experiências e metodologias de trabalho artístico. Com os seus modestos recursos financeiros e logísticos o CAPC tornou-se uma instituição artística de referência, indissociável do quotidiano da Arte Contemporânea Portuguesa. Parece uma hipérbole fazer saltar para o plano nacional esta microestrutura (quando comparada com Serralves e a Gulbenkian) mas quem visitar os diferentes espaços expositivos dinamizados pelo CAPC entenderá do que falo.
A propósito do CAPC, passado e presente, gostava de fazer algumas considerações que me parecem pertinentes no contexto da atual divisão social do trabalho e da ideologia ultra-taylorista do existir para trabalhar que se incrementa no nosso quotidiano. Os artistas, onde me tento incluir de um modo intermitente (desde 1990 que vivo imerso nessa hipótese mas foi através do CAPC, como já disse, que ela se tem revelado mais intensa e verosímil), os artistas, dizia, ainda são aqueles que praticam sem remorsos e inibições o adágio anglo-saxónico “Jack of all trades and master of none” (que originalmente se positivava com a expressão “certainly better than master of one”); eles ainda podem realizar projetos sem préstimo, imaginar obras e objetos inúteis e sem funções específicas e conviver sem angústia com a possibilidade de que todo o esforço gera entropia, desorganização, de que as coisas podem correr mal; Tatlin dedicou anos a conceber um dispositivo aeronáutico que não voava, Tinguely erguia máquinas que eram uma homenagem ao fracasso - eram, aliás bem-sucedidas no seu niilismo; Panamarenko que me surpreendeu pela primeira vez na exposição Dialogue (Gulbenkian, 1984) construía aviões que só voariam dentro de outros aviões…A esse talento para criar epifanias ou deceções através do inútil, do artifício junta-se a audácia de, por vezes, mais as obras do que os artistas, vocalizarem a necessidade de se inverter a civilização do Sabbath: aos seis dias de descanso, de ócio, de pensamento, de prazer, de jogo, de disparate, de tudo o que envolva a emancipação do sujeito, este trabalhará.
Esse modo de vida que ainda não existe mas cuja evidência se acumula em muitas obras artísticas (mas não necessariamente nas atitudes dos seus autores) despressuriza a tecnocracia da condição artística; sabemos que o mundo da arte é a expressão social da definição que Giulio Carlo Argan dá da arte, “praxis e ritualidade”, e que por todo o lado os artistas cumprem esse desdobramento seja no sentido do profissionalismo (a decantação da monomania romântica mas assediada pelo pathos tecnocrático: os artistas não podem duvidar da sua causa, e da sua ontologia) e da seriedade (o milenar debate se devem falar a verdade, se devem participar na busca de consensos, e sobretudo a urgência de se separarem das qualidades que os aproximam do vigarista e do preguiçoso, qualidades lastimadas pelo idealismo platónico. No fundo esforçarem-se por se socializarem como os portadores da Ideia, como os que transformam a quantidade em qualidade como disse algures Mikel Dufrenne). É uma normativa ambiciosa – quem não quer fazer com que sua voz (e a sua obra) seja reconhecida como adulta, carismática e necessária? E sobretudo ter a capacidade de transformar o sórdido, o lacónico, o vazio, o aparente, em ouro. Mas os mundos morrem mais depressa que os modos de vida (sobretudo daqueles que existem em potência, como acontecimento porvir). As novas tecnologias da construção e a mecanização do transporte não criaram uma nova cidade sobre os escombros de outra, milenar? Este mundo da arte desaparecerá (por redundância, obsolescência, por entropia) mas não será trágico que com ele desapareça a possibilidade do improdutivo, do potlach, a possibilidade do terceiro excluído não se verificar? É, por isso, que lugares como o CAPC são necessários.
LV: É preciso afirmar mais Coimbra no meio artístico português, em contraciclo também com uma certa regionalização que afectou a própria Universidade de Coimbra? O Colégio das Artes pode ter um papel nesse processo? Além da oferta pedagógica, tem também um programa expositivo.
PP: Existe uma identidade entre a Universidade e a cidade de Coimbra que não deve ser generalizada; penso até que em muitas situações a Universidade funciona positivamente em contraciclo quando comparada com as políticas autárquicas da cidade que lhe dá nome. O Departamento de Arquitetura da FCTUC onde leciono é a demostração mais eficaz de que a Universidade de Coimbra não está absorvida pelas especificidades da sua situação geográfica: é uma escola de arquitetura cosmopolita, internacional, e numa permanente autorreflexão; podemos encontrar projetos de investigação que se debruçam sobre dispositivos arquitectónicos e territoriais extranacionais, que atendem à presença da cultura arquitetónica portuguesa no mundo, que refletem sobre a cultura do projeto e problematizam os modelos pedagógicos das escolas de arquitetura; nos diferentes ciclos do curso de arquitectura, os docentes estimulam uma atitude proativa e criativa dos seus alunos e de certo modo a vida filosófica e cívica que se deseja para uma cidade moderna pressente-se nessa população jovem. A Universidade dispõe de uma massa crítica atenta e consciente do que é o estado da arte dos seus campos disciplinares e que participa num diálogo produtivo com os seus pares internacionais e que nem sequer é compassiva com as suas glórias passadas; é uma estrutura viva e só nessas condições é que se poderia ter pensado e concretizado o curso de Doutoramento em Arte Contemporânea assim como os Mestrado em Curadoria; o Colégio das Artes associa-se quer no plano pedagógico quer na dinâmica expositiva que incorporou nas suas actividades a esse espirito de superação e de alteridade.