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MATTIA DENISSE
LIZ VAHIA
30/08/2022
Mattia Denisse nasceu em 1967 em Blois, França, e vive em Lisboa desde 1999. Pelo meio, esteve ainda em Cabo Verde. Da sua produção artística fazem parte, com peso igual, o desenho e a escrita. Neles, abundam referências de várias áreas, que trabalha de forma mais ou menos desconcertante, mas ainda assim com um sentido próprio.
Neste momento a Culturgest, em Lisboa, apresenta uma extensa exposição intitulada “Hápax”, que reúne trabalhos dos últimos quinze anos repartidos por núcleos ao longo do espaço. Foi no seguimento dessa exposição que a Artecapital falou com o artista.
Por Liz Vahia
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LV: Tens neste momento na Culturgest uma extensa exposição intitulada “Hápax”. No guia da exposição podemos ler que o título é uma palavra que remete para algo que teve lugar apenas uma vez. Como podemos enquadrar este título no conjunto dos núcleos que se apresentam? A estranheza que sentimos muitas vezes perante a tua obra é também um acontecimento sempre único...
MD: Percebo que o título pareça paradoxal tendo em conta a quantidade de obras que estão expostas. Talvez seja um convite lançado ao espectador para que se lembre que, apesar da quantidade e das similaridades que alguns desenhos têm entre eles, nunca deixam de ser absolutamente idiossincráticos. Leibniz afirma que em cada acontecimento, em cada gesto de alguém algures, existem em potência todos os acontecimentos e gestos do passado, presente e futuro. Gosto dessa ideia abissal. Há também o facto, estranho e incompreensível, de se sonhar todas as noites. Segundo alguns especialistas, o sonho é uma espécie de reset que nos permite, a cada noite, voltar a ser o que somos. Se não tivéssemos esse momento noturno, este reiniciar, uma pulsão imitativa levar-nos-ia a ficar todos iguais. Sem sonho não existe hápax.
LV: Como foi procurar uma ordem ou percurso para a imensidão de desenhos que se mostram no espaço da Culturgest?
MD: Gosto de imaginar que as séries têm suas lógicas ficcionais internas, intrínsecas e autónomas. Esta lógica torna-se evidente no desenrolar da conceção da exposição. É como fazer um puzzle com muitas peças, mas da qual não se conhece a imagem final“. Hápax é a reconstituição, a partir de fragmentos, desta imagem total, que aparece e desaparece ao mesmo tempo.
LV: A série “Duplo Vê” apresenta-se em mesas, reforçando uma ideia de desenho como superfície horizontal de trabalho, e contrasta com a regularidade vertical dos desenhos na parede. Porque é que esta série pediu aquele espaço específico?
MD: Poder-se-ia dizer que duplo vê é um espaço narrativo que está sempre atualizado, como um livro ao qual teríamos de acrescentar sempre páginas ou personagens. Não é primeira vez que utilizo este dispositivo que torna evidente a relação do desenho com a escrita. Olhamos tanto como lemos. A disposição dos desenhos na mesa permite ainda relacioná-los de maneira menos hierárquica, multiplicando as trajetórias e as interpretações possíveis.
LV: No teu processo criativo visual, que papel tem o texto? Quando olhamos os teus desenhos é quase impossível não procurar encontrar a narrativa que lhe parece dar sentido.
MD: Gosto de me contar histórias.
Mattia Denisse, Humus (2021).
LV: Em alguns dos desenhos, a natureza é bastante visceral. Há árvores que têm algo de intestino. Parece-te que a natureza nos teus desenhos é mais do que o espaço do acontecimento, sendo muitas vezes o acontecimento em si?
MD: Nem sei se os meus desenhos têm que ver com o que chamamos natureza, essa coisa distante da qual estamos definitivamente separados. A natureza nos meus desenhos é uma natureza metafísica, muito mediada e pouco natural, tal como a sexualidade, a linguagem, a infância, a religião, etc.
LV: Num mundo onde virtualmente tudo pode acontecer, como nos teus desenhos, como navegar como artista nesse infindável universo onde o espantoso pode estar em qualquer lado?
MD: “Navigare necesse, vivere non est necesse”.
Mattia Denisse, Humus (2021).