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MARIANA GOMES

CATARINA REAL


19/09/2020 

 

 

Humor, Comida, Matéria, História, Cor, Palavra, Grotesco, Fofo - foram os vectores que sugeri a Mariana Gomes (Faro, 1983) para orientação da nossa conversa. Estas palavras, como a metamórfica e fecunda prática de Mariana, espraiam-se por entre possibilidades, temas, conceitos e disciplinas que a sua obra abarca. Não fosse tão óbvia a ligação, seria difícil encontrar o fio condutor que liga a pintura, de quem Mariana é praticante assídua, às mutantes publicações virtuais do projecto “Sindicato dos Pintores”, fundado por Mariana, passando pelos filmes de terror de série Z. O malfeito alia-se à veia perfeccionista, no que poderia ser um paradoxo, não fosse esse o centro da linguagem da Mariana.


Por Catarina Real

 

 

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CR: Comecemos pelo Humor.

MG: É uma das coisas que é mais explícita no meu trabalho.
O Humor é um exercício de inteligência em relação à realidade, que nos faz pensar o mundo de modo a que sejamos capazes de nos rir de nós mesmos, do que fazemos, de como reagimos e do que os outros fazem. É transversal. É quase um modo de exercitar a realidade.

[Hoje estou um bocadinho lenta.]


CR: Mas nem tudo o que é risível é humorístico...

MG: Não, há também o ridículo... e outras variantes.


CR: E para ti faz sentido delimitar esse espectro no teu trabalho?

MG: Não. Exercito-o [o espectro do risível] a trabalhar... mas também na vida. E isso também se manifesta no trabalho, que o exercito na vida. É inerente a mim.

[Já desbloqueio.]


CR: Mas se houvesse uma leitura do teu trabalho como ridículo...

MG: Sim, tens razão, não sei se o espectro é todo aplicável, embora também não tenha medo do ridículo.
Tenho lido bastante sobre isso e é um assunto complexo, o Humor. É uma das primeiras coisas a ser eliminadas em ditadura, juntamente com a Filosofia... tudo o que pensa o mundo e que se relaciona com a liberdade. De expressão e outras. É aí sobretudo que difere do ridículo, ou de outras vertentes do mesmo espectro risível.
O Humor é fundamental. E novamente, no trabalho e na vida.
Aparece naturalmente, ou seja, não tenho intenção explícita de o incluir. As coisas acontecem. Penso sobre elas, mas elas acontecem naturalmente. As formas, as cores.... e as palavras. Talvez essa seja uma forma diferente de o exercitar.


CR: Porque elas aparecem de forma diferente, as palavras?

MG: Sim, e o humor também. As palavras denunciam sobretudo a dimensão poética - que eu e o mesmo trabalho temos - e que acaba por andar sempre mais escondida. O resto é tão espalhafatoso que essa dimensão fica ofuscada.


CR: Queres falar sobre o teu livro “Baldio”, ainda não editado?

MG: Continua à espera [riso].
Eu também escrevo [riso], mas toda a gente escreve. Sempre escrevi e ponderei dedicar-me à escrita, poética, quando acabei a faculdade. Acabei por abandonar a ideia mas esse livro é o resultado de alguns anos de escrita, e tem sido trabalhado e trabalhado durante anos. É uma obra contínua. Talvez quando tiver 80 anos ainda esteja a trabalhar no “Baldio”. [riso]


CR: A escrita não acontece - mais do que só aparecer - da mesma forma que acontece a pintura?

MG: É parecido.


CR: De uma forma aparente, pelo menos, a tua prática adopta uma grande velocidade de produção. E quanto a isso, ri-me ao ler a frase do Bruno Marchand “Costuma dizer-se também que o grande desafio da contemporaneidade para quem trabalha na área da pintura já não é saber como pintar, mas antes o que pintar. Mariana Gomes não parece sofrer dessa angústia.” Pergunto-te se a escrita não vem dessa forma.

MG: Também é muito livre. Quase como uma sucessão de iluminações. [riso] Não me sinto iluminada, não é isso. [riso] É como se uma parte do meu cérebro estivesse disponível para agarrar o inesperado.


CR: Dizias que tanto o humor como as palavras apareciam como espelho da tua personalidade... o que achas aparece mais, também de forma evidente, na tua obra como reflexo da tua personalidade?

MG: A obsessão pela perfeição.
Olhando para as minhas pinturas, rapidamente estás longe disso, mas sou completamente perfeccionista e isso está muito presente no meu trabalho. E relaciona-se comigo, com a minha personalidade.
O trabalho parece solto, fácil, leve, mas não é. É penoso. Estou continuamente a reparar coisas, a voltar a elas. A leveza que transportam as obras, e que por vezes passa para os outros, é uma coisa que me exige muito.


CR: Não será a maior evidência nas imagens. Há claramente a obsessão, nem que seja considerando a dimensão do teu corpo de trabalho, mas também porque abarcas uma série de coisas - imagética, disciplinas, referências - e continuamente as misturas.

MG: Essa obsessão está ligada a isso.

CR: Torna-se quase um perfeccionismo por extensão, se isso fizer sentido.


CR: Consegues dar uma imagem do que seria o processo de uma pintura acontecer?, para compreender melhor essa obsessão. Há alguma recorrência processual?

MG: Não sei bem descrever. É mais ou menos como andar de barco.
Para mim a pintura começa na loja das tintas.

[interrompidas pelos gatos da Mariana]

CR: Como é que se chama os teus gatos?

MG: O mimo, a Filipa e o Orson.

Ou faço um estudo para o que vou pintar... ou então não faço ideia como acontece.
Mas sei que começo sempre a pintar quando estou na loja. Quando estou a escolher cores, mesmo as que não uso, já estou a entrar no processo de pintar. Há tantas cores que é impossível não expôr. [riso] É impossível não pintar. [riso] E não chegam! - são sempre poucas.


CR: E com a matéria?

MG: Gosto do rasto do pincel. Costumava ser mais primário e imediato e isso tornava as pinturas anteriores mais cruas. Havia mais matéria e era tudo mais áspero. Agora a matéria mistura-se, dilui-se. Quando aparece com mais força o rasto, ou a acumulação de matéria, há um destaque maior. Como dantes havia mais matéria mas distribuída uniformemente as acumulações notavam-se menos. O rasto acentuava-se mas havia menos destaque.
Falo claramente do óleo, que é a minha tinta.
A matéria é o óleo.


CR: É a que tem corpo.

MG: Sim. Gosto de outras também. Aliás, adoro materiais e matérias. Sou mesmo muito feliz a fazer o que faço, por isso é que acho que a pintura passa muito isso. Gosto mesmo mesmo de pintar.


CR: E onde entra a parte sofrida nesse gostar?

MG: Entra no mesmo sítio. O que me deixa tão feliz é o que me deixa angustiada também...Quando a pintura não avança, quando esgotaste a cabeça, ou a mão, quando perdes ou duvidas da razão para pintar... Por estares a gastar dinheiro, por não haver retorno... ou não encontrares lugar para expôr... Mesmo comigo... agora tem corrido bem mas tive uns anos difíceis. E, contrariando o Bruno Marchand, às vezes não sei o que pintar. O que pintar é uma questão de pintores. Os pintores pesam toneladas, carregam muitas pessoas às costas.


CR: A História?

MG: Sim! Isso dá-me uma grande liberdade e companhia.
Às vezes ouço pintores a dizerem-me: “Olha lá, mas o que é que estás a fazer?”, estou no atelier acompanhada. Tintoretto diz-me “Oh Mariana desculpa lá, mas essa cor aí...”...


CR: Nunca é elogioso?

MG: Não, por acaso não. São sobretudo dicas!, “não sabes usar os brancos, ora tenta mais assim”.
Os brancos.. para mim são a coisa mais extraordinária. Ainda não sei trabalhar os brancos, ainda ando à procura. A luz na pintura é muito difícil, mas se consegues ter um boa luz, é meio caminho andado para a pintura resultar.
Agora.. como é que trabalhas a luz em pintura abstracta? Essa é que é a questão.


CR: E o que te dizem os pintores-vozes?

MG: Já falamos várias vezes sobre isso.
Há muita coisa que não dá para falar, por isso é que eles vão dando sobretudo dicas.
Há muitas entrevistas com artistas que não têm grande interesse.
Há muitas coisas sobre as quais não há muito a dizer.
O que interessa é mesmo o trabalho. As imagens.
Gosto de falar com outros pintores sobre estas coisas, o branco, a luz... Não quer dizer que haja conclusões ou que haja muito a dizer, mas partilhamos impressões e sentimo-nos acompanhados.


CR: Defendendo a minha posição de entrevistadora, acho que as entrevistas são boas como um exercício paralelo ao trabalho do artista, não como fornecedor de um código de leitura.
Um prefácio, talvez.

MG: Como o livro do Kierkegaard, de prefácios ficcionais, publicados sob pseudónimo.

CR: Há uma colectânea de prefácios do João Barrento de que gosto muito, mas não são ficcionais. Chama-se “Umbrais”, editado pela Cotovia.

MG: Kierkegaard inventou esta personagem escritora de prefácios. Genial, doido, mas genial.


CR: Como é que entra a comida na relação com a pintura?

MG: Tem a ver com uma outra obsessão que é a cozinha, a culinária. Sou capaz de ficar dias a cozinhar. E não comer nada, só porque gosto mesmo de cozinhar. É como pintar, para mim é o mesmo processo criativo. Às vezes prefiro ficar a cozinhar do que ir ao atelier.
Tenho este gosto pelo mundo, pela comida, pelos sentidos, pelo cheiro, pela cor. Isso está na pintura também. É tudo animal... e há um lado sexual e escatológico.
Tudo se relaciona com o bicho que nós somos.


CR: Há uma dimensão... fofa. Como se uma camada velasse tudo o que é visceral dentro do teu trabalho.

MG: Talvez isso aconteça por via da pintura, porque a pintura se coloca no meio, como mediador.
Somos sempre caricaturas de nós próprios, mas nunca quis que isso fosse o meu trabalho, nunca quis que as vísceras o tomassem. Há outras preocupações, como a composição e a materialidade, que são próprias à prática da pintura e que lhe dizem, de facto, respeito. E isso cria barreiras entre o que sou, o que gosto, e o resultado da obra.
As barreiras domesticam, ou arrumam, as coisas que a pintura vai tendo ou evocando.

[A Filipa está sempre escondida. Mas o Mimo apanha a fresca com o Orson.]


CR: A dimensão do grotesco dá-se da mesma forma? Está também controlada pela prática da prática da pintura?

MG: Talvez se destaque um pouco mais do que o resto. Destaca-se nas últimas pinturas sobretudo. Há figuras: línguas, intestinos, traqueias, cocós - e tudo fica mais literal. É mais óbvio do que o que falávamos antes.
O grotesco está muito ligado com o lado poético, que se une ao animal de que falava. O grotesco é o ponto de ligação de tudo. É das entranhas que tens o corpo a funcionar... elas são a ponte.
Não consigo imaginar a minha pintura sem esse ponto de contacto. Era como se me tornasse um animal sem vísceras, só pele. Não seria eu, não seria a minha pintura.


CR: A tua, ou toda a pintura?

MG: Falo da minha. Há pintura que é só pele e é extraordinária.


CR: Isso é fruto da tua inserção numa certa linhagem da pintura.

MG: Sim, tenho muitos parentes.


CR: É clara a linhagem para ti?

MG: Sim. São fáceis de identificar. Não os procurei ou os pensei. Só me juntei a esta família.
Se pensar no contexto português, que é o meu [riso], aparecem-me o Lapa, o Joaquim Rodrigo, o Alvarez, o José Loureiro, o Jorge Queirós, o Casqueiro.

CR: A Maria José Aguiar, não podia ser da tua família?

MG: Podia sobretudo a Luísa Correia Pereira.
Os Bollocks têm uma homenagem à Ana Vieira, que eu conheci e de quem gostei muito, para além de admirar a obra. A Maria José Oliveira, que é incrível...!
Aquela geração tem artistas mulheres que eu não consigo perceber como é que - e sendo agora bastante agressiva - se fala tanto em feminismo dentro do mundo artístico e não se vai buscar estas artistas, muitas delas ainda vivas.
É muito triste deixares de interessar quando és velho. Há muitos artistas agora com oitenta anos, com um percurso exemplar, e muita gente não sabe sequer que eles existem. A Maria José Oliveira é para mim um exemplo gritante disso.


CR: É por aí que surge o Sindicato dos Pintores [projecto expositivo nómada organizado pela Mariana], para reivindicar algumas das coisas que enunciaste?

MG: O Sindicato dos Pintores vem do grande desejo de diálogo sobre pintura e também de encontros improváveis. Provocaram-se encontros que trazem e poderão ainda trazer coisas muito boas.
Tem sido uma experiência incrível acompanhar esses encontros, fazer parte deles.


CR: Há o trabalho de activação de memória, de não-esquecimento, também a ser feito por ti.

MG: Sim, há.
Faz-me muita impressão haver artistas a cair no esquecimento, com trabalhos tão valiosos.
Há públicos que não vão aqui e ali, e sinto que o Sindicato dos Pintores faz não só misturas de artistas improváveis, como também cruza públicos improváveis. Quando juntas dois artistas improváveis também se criam mais encontros improváveis entre o público.
O sistema artístico é muito deficiente e eu, embora não ache que esteja a corrigir o mundo, em vez de me aborrecer com isso, tentei fazer alguma coisa.


CR: O sistema artístico está em falta perante a pintura?

MG: Quando comecei a pintar ninguém estava interessado na pintura e vi muitas pessoas a deixarem de pintar. Agora mudou um bocadinho a sensibilidade e disponibilidade para a pintura.
O Sindicato dos Pintores promove a troca de impressões sobre preocupações específicas de pintores - as discussões ou galhardetes sobre o branco, de que te falhava -, para que elas possam acontecer e para que eles não fiquem sozinhos no atelier.
Quando há disponibilidade para conversar é sempre edificante. E tem havido.


CR: E pensas na conquista de espaço para artistas mulheres?

MG: Lá vens tu... [riso] Eu sou humanista. Diria que me interessam pintores, ponto. Não me interessa o género ou outras variações, penso em pintura e não tenho outras questões presentes.


CR: Notas finais?

MG: Talvez uma curiosidade.
As cores que uso são cores de barcos, fui-me apercebendo. Fui associando essa minha percepção, de a minha paleta me lembrar os barcos, a uma parte da minha infância. Quando era miúda ia para a praia da Oura, que estava cheia de barcos, e adorava nadar entre os barcos. Ficava muito tempo a olhar para aquelas cores e letras. Para o brilho do mar nos barcos.


CR: Daí o branco.

MG: É. Percebi-o nessa recordação. Era muito feliz a nadar por ali, se calhar por isso é que a minha pintura tem um ar bem disposto.


CR: Talvez também seja por isso que é sofrida.

MG: Sim, vem com melancolia.

 

 


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Todas as imagens são cortesia da artista.