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CATARINA DOMINGUES
CATARINA REAL
05/05/2020
A Catarina fala com um vocabulário que lhe é próprio, aprendido e apreendido em grande parte com e dos livros que lhe povoam o imaginário, da filosofia à literatura, onde palavras como Humano, Beleza, Feminino, Luz, Desejo, Orgânico, Segredo... ganham uma vida particular. Há um encantamento que ela transmite no seu discurso e no seu posicionamento em relação ao mundo e aos outros, que o constituem, que se materializa na sua prática artística em forma de desenho, de textos, de livros e... de segredos. Conversei com ela, tentando ingressar nos movimentos da sua linguagem, para saber mais sobre esse encantamento mas também sobre o seu reverso, o desencantamento fruto da situação actual, que vemos surgir-lhe nas palavras.
Por Catarina Real
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CR: Antes de falarmos do prático e da prática gostava de ir a outros lugares, menos presos às coisas. O que é o Feminino de que falas e como é que este se relacionada com a “repetição que procura o ritmo entre o mesmo e o diferente”?
CD: O lugar do feminino é o lugar da abertura e da criação, da fluência. Ou seja, é o lugar no Ser onde existe a fecundidade. E que não está relacionado com o ser-se mulher, mas com a possibilidade de criar, de dar forma. Todos os seres são Femininos no sentido em que todos eles têm a possibilidade ou potência de dar forma.
CR: Uma espécie de força?
CD: É um vazio activo que envolve uma disponibilidade para Ser. Ser-se o mais intimamente possível.
CR: E opõe-se de alguma forma ao Masculino?
CD: Nada. Qualquer género tem esse vazio em si. Como dar-lhe forma é que é a questão. Se existe a chamada íntima para que se dê forma a alguma coisa, essa chamada pode existir em qualquer um. O vazio activo existe em qualquer ser que esteja em contacto com o seu íntimo e que sinta a urgência de dar forma.
CR: Estás a fazer o doutoramento na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa: a tua investigação académica está ligada a este Feminino?
CD: Sim. Está relacionada porque penso, e vejo, que o nosso mundo humano se relaciona muito mais com o oposto deste lugar Feminino. Seríamos muito mais alegres se acolhêssemos este Feminino e este Vazio intrínseco em vez de estarmos constantemente a fugir-lhe, que é como sinto que acontece na nossa experiência em sociedade, que se baseia numa constante fuga ao vazio que nos compõe, à nossa própria mortalidade. Talvez se abraçássemos a vulnerabilidade, que a nossa própria potência de Ser é, alcançássemos uma outra alegria e uma outra consciência do outro.
CR: E como seria, como tomaria forma, esse abraçar do Vazio?
CD: A experiência artística proporciona muito essa possibilidade. Talvez tivesse de passar por criar uma outra consciência daquilo que somos. Em vez de vivermos na ilusão da nossa imortalidade, aceitarmos a verdade da nossa mortalidade. O que se relaciona muito com o momento que estamos a viver, em que subitamente todos nos lembramos que somos mortais.
CR: O encontro através da obra de arte - e também do amor - como é que ele acontece?, é diferente a sua forma?
CD: O encontro acontece somente por estarmos disponíveis para a vida. O encontro acontece por nos deixarmos distrair pela vida. No fundo, todos os instantes são essa possibilidade do encontro, e desse encontro amoroso. Consigo mesmo, com o outro, com o lugar... Com a vida. Por isso, assumindo a perspectiva amorosa de cada instante - e que novamente se relaciona com a mortalidade porque se trata de assumir cada instante como um momento de sorte - a partir daí pode nascer o querer dar forma. O querer dar forma a algo está ligado a esta sensação de estado de sorte, ou de estado de graça. À sensação de se estar aqui e agora.
CR: A criação artística seria então uma consequência do encontro, mas sem a capacidade de o exponenciar, de criar mais-encontro?
CD: É como se o encontro fosse a própria potência da vida: nós podemos deixar-nos escorregar ou não. Como se o encontro pudesse estar constantemente activo e, dependendo da nossa sensibilidade ou da nossa capacidade de estado de graça, o pudéssemos ou não experienciar. Todos os dias existe luz. Que sensibilidade é que nós temos a essa luz? Como é que há um dia em que essa luz se torna tão doce, e há um dia em que essa luz se torna terrível?, porque tudo se metamorfoseia à nossa semelhança. Mas, no fundo, está sempre tudo aqui. Todas as possibilidades estão aqui, fervilhando, e resta-nos conseguirmos abrir canal para isso ou não...
Tudo isto tem um perigo: ao sermos tão abundantemente sensíveis ao que nos rodeia somos também muito mais vulneráveis. Muito menos funcionais. Há toda uma aprendizagem social que precisa de ser desformatada para podermos receber esta potência que nos é dada.
CR: Os teus desenhos são palavras e as tuas palavras são desenhos? Vêm da mesma matéria?
CD: Acho que vêm do mesmo lugar, mas eu costumo vê-los sobretudo como cartas, no sentido em que são sempre endereçados ao Outro. O que eu procuro em ambos é a evocação da luz. É poder luzir também, ali, para depois poder entregar a descoberta dessa luz ao Outro, que às vezes pode ser um outro bastante particular. Uma amiga... ou um desconhecido total.
CR: “A instabilidade da forma orgânica é a instabilidade da vida” dizes isto numa entrevista de 2017, em que falas sobre o livro “Agatha”, em relação com o livro e filme de Marguerite Duras. Fiquei feliz pela coincidêndia de “Olhos Azuis Cabelo Preto” , também de Duras, ter sido o primeiro livro que me despertou para o que agora posso com alguma assertividade chamar de Fulgor. Foi também na mesma entrevista que disseste que os teus desenhos “têm esta relação íntima entre a forma orgânica e a forma instável da vida” e que estas formas orgânicas e abstractas se podem referir a cabelos, folhas.. Onde é que se funda essa relação entre o orgânico e o instável?- isto para perceber a leitura que fazes desta instabilidade, porque o orgânico é bastante estável de um ponto de vista cíclico. Uma contínua metamorfose, estável.
CD: Aquilo que é absolutamente estável não é o orgânico mas o inorgânico.
CR: Inerte.
CD: Sim, estático. Quando há vida, há oscilação. Na verdade esta ideia vem de um livro que foi muito importante para mim - “Para Além do Princípio do Prazer” de Freud - em que ele referia que a grande busca do ser humano era o prazer. Uma ideia que mais tarde ele questiona face ao terror da guerra: o mundo não poderia procurar o prazer na morte, não daquele modo. Quando ele se refere à pulsão de morte fala-nos da vontade de retorno ao inorgânico. Precisamente porque o inorgânico é o equilíbrio, é o estático. E ele questiona se a nossa imensa capacidade auto-destrutiva não se relaciona com esse desejo de nos tornarmos equilibrados. Isto é o resumo do que me ficou do livro. É desconcertante a necessidade de auto-destruição que o ser humano tem: a nível social, político, amoroso, íntimo.... é estranhíssimo como existe efectivamente essa pulsão. E é nesse sentido que penso então o orgânico, e o inorgânico. Nessa altura [2017] sentia desse modo os desenhos que fazia, e é algo que agora ainda sinto mais.Para mim tudo está relacionado com a luz e essa palavra tem vindo a crescer: luz e orgânico têm tudo em comum. Acho que tornarmo-nos conscientes dos nossos movimentos interiores talvez fosse benéfico para a nossa aprendizagem enquanto seres humanos, para que sejamos humanamente. Os desenhos são quase um espelho desse fluir, da minha matéria fluente.
Sinto-o cada vez mais claramente, porque eles não espelham palavras, mas espelham movimentos interiores. De um modo abstracto e misterioso, por exemplo, eu comecei a fazer uns desenhos com formas meio ovóides, que se foram expandindo para formas circulares. E depois estive grávida, e a forma circular era toda a minha existência, era toda a minha realidade! Comecei depois a desenhar formas circulares que tinham uma abertura, coincidentemente quando o nascimento do Samuel já estava próximo. E se agora é claro, era uma surpresa, ia vendo a sequência e ia-me apercebendo disto, de que os desenhos eram o espelho dos meus movimentos interiores em mutação.
O que está a acontecer aos meus desenhos agora, com esta realidade, é que se tornaram esferas partidas. Há uma ideia de separação implícita ali e eu consigo vê-la, mas quando acontece não penso nisso. Acontece sem palavras e sem códigos, só o consigo ver dando um passo atrás e olhando para o que fiz. É aí que me apercebo da biografia nos desenhos.
CR: Queres-me falar da particularidades das tuas colaborações?, nomeadamente com a Ana Mata ou mesmo com o Ricardo e o universo editorial?
CD: Com a Ana... nós conhecemo-nos há nove anos, quando eu fui estudar para as Belas Artes e ela dava lá aulas. O raio amoroso afectou-nos. Desde essa altura - e foi muito imediato - começámos a trocar cartas e este endereçamento tornou-se uma partilha diária muito íntima e secreta. Tenho um professor que diz que para existir um segredo têm de existir dois, duas pessoas. É a partilha. Esse segredo que partilhamos tem uma tal intensidade que é quase pertencente a um outro universo das nossas vidas. É muito intenso e ao mesmo tempo muito corajoso porque expormo-nos assim de modo tão despido a alguém é exigente. É uma entrega amorosa... sendo que todos os dias nós dizemos “Bom dia querida Ana”, “Bom dia querida Catarina” é mesmo ao mesmo tempo um quotidiano muito natural para nós. O que aconteceu foi que começámos, de uma forma espontânea, a editar todas estas cartas que foram acontecendo ao longo dos anos. Sem existir um projecto, um convite ou qualquer formalidade, simplesmente começámos a editar o material endereçado uma à outra.
CR: Esses segredos serem partilhados em forma de cartas devia-se a um distanciamento físico - e por isso é que eram cartas - ou era um resquício de algum tipo de pudor nesse encontro, e então o desfasamento permitia-vos uma maior abertura?
CD: Foi o modo de encontro das nossas vidas. Cada uma na sua experiência e na partilha dela. Dessa experiência ou daquelas que imaginávamos que pudessem existir, porque se trata não só da partilha das nossas vidas exactas mas da partilha dos nossos desejos e dos nossos anseios e dos nossos medos. Sobretudo dos desejos, a partilha dos nossos desejos mais íntimos.
CR: E como é que isso passa a tomar a forma de um objecto artístico, de onde surge a vontade de partilharem os vossos segredos?
CD: Com essa naturalidade: subitamente estávamos a enviar vídeos e editá-los conjuntamente.
CR: E a decisão de tornar pública a vossa intimidade?
CD: Acontece no decorrer do enamoramento com a vida, de nos escrevermos uma a outra, e de, depois, passarmos já a escrever como se fosse para os outros mas pela voz das duas. Como se tanto eu como a Ana escrevêssemos através de cada uma de nós. Através de escrevermos uma à outra estavámos já a escrever ao mundo, aos homens e mulheres, e à beleza e ao fulgor dos seres. À sexualidade dos seres também. Tivemos vontade de jogar esse jogo, de lançar isto à vida: mostrar todo este ser de segredos que nos tem acontecido e que subitamente queremos, de modo misterioso, atirar para o mundo.
CR: E a colaboração com o Ricardo e os livros que têm vindo a editar?
CD: A nossa colecção - Fulgor Quotidiano - vem de uma escolha amorosa de cada autor e de uma enorme paixão pelos livros que nós temos e pelo objecto que é o livro. E de os tornar vivos, aqui. Existem autores que não estão editados cá e esta possibilidade de os editar, de traduzir e de os associar a desenhos e imagens de artistas plásticos para depois formular um objecto - o livro - é uma experiência que se torna quase obsessiva. São tantos os livros que nos tocam e que nós queremos materializar... e vendo que existe esta possibilidade de o fazermos, estamos sempre a vibrar com isto: poder tornar estes encontros possíveis, entre um livro e os desenhos de alguém num objecto que concebemos, é maravilhoso.
CR: Como está a ser este período duplamente novo na tua vida, de maternidade e quarentena, e como se relaciona a tua prática artística com ele?
CD: Torna-se muito claro que é preciso sonhar os dias, que é preciso desenhar os dias, que é preciso fotografar os dias e que é preciso filmar os dias. E torna-se também claro que, dentro de uma casa que eu vejo há anos, até aqui (!) existe a possibilidade de tudo se tornar novo. O que tenho experienciado é que a atenção que eu costumo ter no exterior e para com os outros, passa a acontecer aqui com a mesma intensidade... Os cortinados chamam-me a atenção de um modo novo, a luz, a ameixoeira em frente à janela e as diferentes nuances das sombras… tudo está mesmo muito vivo! Esta é a minha realidade interior, da casa e do privilégio de poder estar dentro de uma casa confortável. É tudo um acontecer muito natural: tanto do desenho como da própria maternidade. Está tudo ligado e todas essas dimensões se cruzam, ou seja, eu poder estar a desenhar num papel de grande formato, na parede, e ter o Samuel a observar-me, poder ter o olhar atento dele naquilo que estou a fazer, poder ter este estar com ele e estar nas imagens, tudo isto são privilégios: poder usufruir deste tempo com ele e poder usufruir do tempo no sonho. A minha relação com a quarentena é simultânea à compreensão de que existe uma enorme injustiça - porque faz quarentena quem tem esse privilégio, de a poder fazer. Isso tem-me deixado muito enraivecida: o modo como nos promovem a ideia de que existe um governo que nos está a proteger e a tomar medidas de precaução, de prevenção e de distanciamento social, quando eu não sinto que essas medidas estejam a ser de facto tomadas. Existem muitas pessoas forçadas a trabalhar, existem pessoas a perder os direitos de trabalho, existem pessoas a perder os postos de trabalho... As pessoas que eu conheço e que estão em casa, são de facto as pessoas que podem usufruir desse privilégio. E isso é repugnante!
CR: Haverá um lugar particular para as mães artistas revolucionarem os lugares da arte, por vezes tão fechado a esse Vazio e Feminino que descrevias?
CD: Penso que sim, mas com uma certa inexactidão. No sentido em que todos nós podemos ser activos nessa possibilidade de viver o vazio. Todos nós com as experiências diversas que temos. A experiência da maternidade é absolutamente enriquecedora, e acho que sim, que deveria estar presente nesse lugar. Assim como a experiência da não-maternidade. É na associação das diferentes experiências e dos diferentes íntimos que realmente pode surgir algo mais verdadeiro.
Há sempre uma questão política subjacente. A maternidade é uma realidade humana e é preciso providenciar aquilo que é necessário a esta experiência, tanto às mães como aos filhos. Acima de tudo existe uma questão política onde deverá constar a defesa dos direitos de uma mulher poder ser mãe, com a qualidade de vida necessária para poder ser uma mãe presente e ter uma vida profissional. Dentro e fora das artes plásticas. Quando se fala de um tema destes falamos de coisas muito exactas, de questões políticas muito exactas que são urgentes.
CR: Haverá lugar para os artistas repensarem a organização social e afectiva do mundo no pós pandemia?
CD: Acho que sim, sem dúvida. É o mesmo lugar que existia antes, estamos simplesmente a perceber como é que uma sociedade pouco humana se comporta em situações limite. O pensamento já deveria vir do antes porque na verdade isto não é muito surpreendente. Trata-se de compreender que a sociedade está organizada de um modo desumano e que ao acontecer algo de dramático, como acontece agora, tudo aquilo que são injustiças assim como todas as contradições vêm à superfície, como é, por exemplo, o caso do sistema nacional de saúde. Estamos aqui a falar do nosso país que desinvestiu brutalmente no SNS e agora, subitamente, estamos a ver-nos a bater palmas aos profissionais de saúde. Aquilo que Portugal elegeu foi a destruição disso. Temos agora muito a limpo quais são as contradições. Por exemplo - qual era o objectivo da UE, era um objectivo humano? para que é que existe, para que serve, serve as pessoas? O que significa realmente a perda de soberania de um país? Acho que a consciencialização e visualização daquilo que são as contradições profundas da nossa sociedade só pode exigir a necessidade de repensar tudo isto, aliás, é impossível para uma pessoa que se relacione com a criatividade e com a dimensão do humano - é impossível - não se relacionar e repensar a pergunta básica que é : o que é o mundo?, o que é o nosso mundo?Parece existir uma enorme surpresa no que está a acontecer quando um olhar atento compreende que isto vem na sequência daquilo que tinha vindo a ser criado. Acho impossível não convocar isto com o momento em que percepcionamos muito claramente a sociedade em que vivemos, o que não será indiferente a todos aqueles que se relacionam com arte.
É uma realidade tão injusta: é mesmo a percepção de qualquer coisa que não funciona não é?