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NUNO CERA
LIZ VAHIA
13/12/2022
Nuno Cera (Beja, 1972) é fotógrafo e videoartista, e vive e trabalha em Lisboa. Em 2001, Nuno Cera foi artista residente na Künstlerhaus Bethanien, em Berlim, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2003 publicou, com o arquitecto Diogo Seixas Lopes, o livro Cimêncio, um levantamento de paisagens suburbanas. Foi nomeado para a primeira edição do Prémio BES Photo, em 2004. Foi artista residente no ISCP - International Studio and Curatorial Program, Nova Iorque, em 2006. Entre 2007 e 2010 realizou o projeto Futureland, uma investigação artística sobre o crescimento urbano em nove metrópoles. Em 2012 recebeu uma bolsa da Fundación Marcelino Botín, Santander, com o projecto Sinfonia do Desconhecido I. Foi artista residente na International Artist Residency Récollets (Mairie de Paris), Paris, 2013 e em Macau, em 2018 (Babel – Organização Cultural e Fundação Oriente). Em 2019 recebeu o apoio da DGartes – Ministério da Cultura / República Portuguesa para a videoinstalação Sinfonia do Desconhecido II. Nuno Cera foi ainda um dos artistas convidados nas representações oficiais portuguesas na Bienal de Arquitetura de Veneza, Public Without Rhetoric (2018) e Metaflux (2004).
Neste momento, podemos ver o seu trabalho em três exposições em Lisboa: Luzes Distantes (maat), Janela infinita (Galeria Miguel Nabinho) e Inquietação: Arquitectura e Energia em Portugal (Galerias Municipais - Galeria Avenida da Índia). Foi a partir do trabalho recente que a Artecapital conversou com o artista, abordando o seu processo criativo, o meio fotográfico e videográfico, as suas viagens e projectos por vir.
Por Liz Vahia
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LV: Das exposições e projectos que tens patentes ao público neste momento, ressalta a sensação de que o teu trabalho se apoia muito na ideia de transformação, de um registo da mudança que ocorre sem por vezes atentarmos muito nela, e nos ajustamentos entre natural e tecnológico. Mesmo na série sobre o mar (Janela Infinita) isso é visível, na medida em que o mar é uma daquelas coisas que nunca mantêm a mesma forma e a fotografia tenta captar isso com todas as suas potencialidades técnicas. Como é que trabalhas com o médium fotográfico para que não resulte apenas um registo documental? Porque há uma certa poética na composição das linhas arquitectónicas, nas cores e texturas dos elementos, no próprio formato da fotografia.
NC: Sim, tenho alguns trabalhos em que a ideia de transformação e de registo da mudança são assuntos centrais, como é o caso do projecto Futureland, de 2010, uma investigação sobre o crescimento de 9 metrópoles dispersas pelo mundo, ou mais recentemente a exposição no Convento de São Francisco, The Falls / As Quedas, sobre a passagem do tempo. No caso da Janela Infinita, a motivação era a de captar diferentes mares, rios e lagos, em que a matéria é sempre a mesma, mas sempre muito diferente e específica de cada um dos locais. Interessava-me essa exploração muito fotográfica de tempo, luz, reflexos, água e padrões. A diversidade dentro dos pequenos detalhes.
Respondendo mais directamente à tua questão, acho que ao fotografar estou interessado em captar uma atmosfera ao mesmo tempo que crio um documento e uma memória. São as duas faces da mesma moeda. Ultimamente, tenho também utilizado alguns filtros, que no momento de fotografar ou de filmar funcionam como intensificadores e aumentam a artificialidade das imagens e do mundo. Um processo que corta o registo mais documental e até relacionado com a escola de fotografia alemã. O formato está relacionado com o espaço expositivo e no caso das Luzes Distantes optei por um formato relativamente grande (180 x 125cm) e muitas fotografias num formato pequeno (30 x 22,5 cm), que obrigavam a uma descoberta da exposição e estabeleciam um jogo de escalas e de proporções que me agradavam.
Por sua vez, as imagens de Sines 2000 têm todas a mesma dimensão de 100 x 70 cm, de forma a reforçar a série e as suas diferentes tipologias. Neste momento está apresentada na forma de um painel com 9 fotografias na exposição Inquietação. Arquitetura e Energia em Portugal, na Galeria Avenida da India, e penso que seja uma forma de sistematizar e também de comparar a realidade de uma fotografia com o carvão, a outra com a chama a queimar gazes ao mar a bater num molhe em ruína...
Vista de Sines 2000 (2000), na exposição Inquietação. Arquitetura e Energia em Portugal, Galerias Municipais - Galeria Avenida da India, Lisboa. © Nuno Cera
LV: Esta série Luzes Distantes (2022), que podemos ver no maat até 13 de Março do próximo ano (depois de ter passado este verão pelo Centro de Artes de Sines) é um "projeto de investigação a longo prazo sobre Sines" iniciado em 2019. Tendo tu vivido em Sines na adolescência, como foi escolher e olhar para os sítios com vista a um "projecto fotográfico"?
NC: A ideia inicial foi a de regressar ao território de Sines e de tentar perceber as relações entre natureza e indústria. Dois aspectos que marcam profundamente a cidade de Sines. A partir do conceito decidi regressar a alguns locais onde já tinha estado no ano 2000, (para a serie Sines 2000, actualmente patente na Galeria da India) e também a alguns sítios em que uma transição para o digital esteve a acontecer, como no Ellalink (o cabo de internet submarino que liga Portugal ao Brasil) e os terrenos do futuro Datacenter, actualmente em construção.
As outras indústrias visitadas são a Central da EDP, já sem estar a funcionar, as refinarias da Repsol e da Galp, o porto de Sines (A.P.S.), a pedreira de Sines e o Terminal XXI, o dos contentores. Interessava-me captar as indústrias mais importantes de Sines na sua relação com áreas naturais muito emblemáticas, como a Costa do Norte, São Torpes e os seus terrenos mais rurais. Uma grande força motivadora do projecto era a de tornar mais pública áreas muito restritas, de aproximar o que se passa no local das Luzes Distantes.
A escolha dos sítios foi também feita a partir dessas recordações de adolescência, do que eu acho que é ou era Sines. É também um olhar que pretende mostrar mais e julgar menos, ao mesmo tempo que, com ajuda dos textos da Joana Rafael, que convidei para acompanhar o processo como escritora (para voz off e para a publicação), tenta estar mais direcionado para o futuro do que para o passado.
Publicação Luzes Distantes (2022). © Nuno Cera
LV: Habitualmente, como aparece a ideia de "série" no teu processo de trabalho? Surge como um motivo para o trabalho fotográfico ou aparece depois como uma evidência que reúne determinadas fotografias?
NC: Não tenho propriamente uma forma regular para iniciar uma série. Posso começar com uma ideia e sei à partida que o resultado será uma série de fotografias, como recentemente na exposição Janela Infinita, na Galeria Miguel Nabinho, ou Façades de 2017. Ou então, continuo a fotografar e num certo momento aparece, como designas e bem, a evidência de uma série, como aconteceu na Yellow Zone Dance, de 2019, ou Hora Certa, também de 2019, na qual tinha fotografias de diversos locais em que para mim o mais importante era o ambiente e o como as fotografias falavam entre elas, mais do que os locais exactos. Uma observação de um presente meio “derretido”, que acho que não foi muito bem entendido pelos visitantes da exposição. Existem assuntos que me interessam muito, como os quartos de hotéis, fábricas ou o mar, e que eu fotografo continuamente, e que eu gosto também de olhar como uma série interminável, como o poema contínuo do Herberto Helder...
LV: As tuas fotografias de paisagens urbanas acho que mostram muito bem a sensação do que é habitar a cidade. Sabes que há sempre muitas coisas a acontecerem ali simultaneamente, mas não as consegues ver. É importante para ti conhecer cidades distintas? Tens no teu curriculum uma série de residências artísticas que te levaram a sítios muito diversos.
NC: De uma forma até um pouco romântica, acho que a viagem continua a ser um estímulo muito importante para a fotografia em geral, e conhecer realidades diferentes só te enriquece como pessoa e artista. Eu sempre tive muita curiosidade e essa vontade de perceber como é que se vive noutros locais, qual é a paisagem urbana que é produzida na Ásia ou na Cidade do México, que tipo de atmosfera têm ou como cada uma das cidades está a crescer. Existe também, como respondo na primeira pergunta, a questão das transformações e de como a fotografia e o vídeo são veículos de memória e de arquivo. Ao fotografar cidades tenho também sempre presente a questão da escala, de como um pormenor pode captar de uma forma mais poética o espírito de um lugar. Nunca tinha pensado dessa forma, mas gosto do teu comentário sobre os acontecimentos simultâneos que não podes ver, mas que podes sentir num conjunto de imagens e de como elas se relacionam. As residências que fiz, em Berlim, Nova York, Paris ou em Macau, deram-me o privilégio de poder viver e habitar essas cidades, de as poder conhecer, o que deixou sem dúvida marcas no meu trabalho. Respondendo à tua questão, sim, é muito importante a viagem e ir descobrindo.
Sinfonia do Desconhecido II (2019), still de vídeo. © Nuno Cera
LV: Como é que o vídeo surgiu na tua prática artística? É um meio complementar, ou seja, houve algum momento em que achaste que a fotografia não era "suficiente", ou é mesmo uma outra linguagem que quiseste trabalhar?
NC: O vídeo, ou no início, o filme Super-8, surgiu no meu trabalho devido à necessidade que senti em ter outro tipo de “tempo”, em que o “tempo” fotográfico e de uma imagem já não era suficiente. Acho que também foi uma vontade em criar trabalhos com outro tipo de narrativa e de montagem e que sim, funcionavam de certa forma em complemento. Tenho bastante séries que são compostas por vídeo e fotografia, como Pure Light, Dark Forces ou O Passageiro. Existiu também um momento com projectos como Unité d´habitation e Sans Souci, em que me aproximei mais de uma linguagem cinematográfica em que escrevia guiões e preparava tudo antes de filmar e trabalhava com uma pequena equipa e com actores. Depois, a partir de 2014, com a primeira parte da Sinfonia do Desconhecido, comecei a explorar as questões das duplas e triplas projeções sincronizadas, que continuo a produzir e em que utilizo uma forma de filmar mais fotográfica e quase sempre com o recurso do tripé. Continua-me a interessar muito os jogos que o vídeo permite entre tempo e espaço (e a sua desconstrução), entre sincronismo e edição, entre formalismo e emoção, e aí sim, é mesmo uma outra linguagem com a qual quero trabalhar.
Outro aspecto importante que o formato vídeo permite é a colaboração que faço com escritores e críticos. Desde Futureland, de 2010, convido sempre uma voz exterior que produz um texto específico para o vídeo do qual eu seleciono partes para a voz-off. Adiciona subjetividade e conhecimento e permite uma outra leitura das imagens. Penso que as Luzes Distantes ganharam muito com os textos da Joana Rafael e do Case Miller, enriqueceram o conteúdo e o olhar para o futuro. Adicionaram um tempo mais geológico e profundo.
Actualmente, vejo o meu trabalho como ponto de partida para outro tipo de reflexões e de colaborações, e não como uma obra de arte estanque e só com uma direcção.
Série Luzes Distantes (2022). © Nuno Cera
LV: Já tens algum próximo projecto planeado?
NC: Sim, um projecto ainda sem título que explora as relações entre tecnologia, indústria, inteligência artificial e natureza (um pouco na continuação das Luzes Distantes) e gostava muito, também por achar que é o momento certo, de conseguir editar um livro meio antológico, com uma seleção do meu trabalho desde o final dos anos 90 até hoje, e que funcionasse ao mesmo tempo como um arquivo e como uma referência para o meu trabalho futuro.
Tenho também em mãos uma nova série de fotomontagens, na continuação das que fiz com a pedra e o pneu no ar para as Luzes Distantes. É o meu primeiro trabalho em que existe uma quebra com o real, em que a imagem é construída de uma forma surrealista (a referência ao trabalho do René Magritte é importante). Estou muito curioso em ver o resultado final!
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