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TIAGO MADALENO
CATARINA REAL
24/02/2022
“A ideia de estilo é uma coisa que me aflige”, partilha Tiago Madaleno (Vila Nova de Gaia, 1992) ao longo da nossa conversa. Da passagem da pintura ao pensamento sobre performance através de abordagens transdisciplinares que se estruturam narrativamente, a conversa com Tiago foi preparada a partir de perguntas para antagonizar - uma reminiscência das nossas discussões no pavilhão de exposições da Faculdade de Belas Artes do Porto, antigo atelier de alunos finalistas. As respostas a todas as outras, estão já exemplarmente contempladas na sua prática. Tudo são símbolos.
Por Catarina Real
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Catarina Real: Fala-me da passagem da pintura para a narrativa que coordena toda a produção de objectos.
Tiago Madaleno: Não houve um momento preciso... Talvez tenha acontecido na passagem do terceiro para o último ano de licenciatura, nessa altura criei uma série de preconceitos para conseguir produzir trabalho de uma determinada maneira. Criei uma série de regras, que hoje vejo que são preconceitos... como a pintura não poder ter uma dimensão ilustrativa, ou de a pintura não poder - sei lá! - ser tida como uma obra final. Na altura serviram-me para aproximar a pintura de outro tipo de linguagens.
Depois as coisas começaram a organizar-se em torno de uma linha narrativa e isso é mais ou menos algo que permanece: a necessidade da narrativa.
CR: Houve uma abertura das tuas preocupações, que se encerravam no âmbito do que era a pintura, para outra coisa. Mesmo quando as preocupações tocam ainda a construção de imagens.
TD: O que importa para mim é a construção de símbolos. E mesmo nessa altura tinha essa obsessão. De perceber como os símbolos conseguem absorver determinados contextos, e de como podem ser transferidos para novos.
Apercebi-me então que essas outras linguagens, para além da pintura, têm um contexto e uma relação histórica que implicam um certo tipo de relações com o teu corpo e com a forma como o corpo participa na construção de imagens, que possuem uma capacidade transformadora capaz de promover metamorfoses nesses símbolos e assim desencadear o aparecimento de mais imagens.
A utilização de vários meios era uma forma de conseguir ter vozes diferentes a darem-me perspectivas sobre determinada imagem ou determinado evento. Era uma forma de ter uma simulação, no meu atelier, de um rumor calculado, sem precisar de outras pessoas ou sem ter que convencer outras pessoas a participar naquilo que estava a fazer.
Acho que as minhas preocupações nunca se encerraram no âmbito formal, mais técnico, da pintura.
CR: E qual a relação que esses símbolos estabelecem com o Rumor?
TD: Essa era uma das perguntas que achei que irias fazer.
Foi importante nessa altura, numa série de explorações, para pensar como conseguia fazer com que as minhas imagens se inscrevessem num tecido real, de como conseguia estabelecer algum tipo de diálogo com outras pessoas. No entanto, fui percebendo que se calhar tinha uma função mais utilitária...
O António Olaio disse-me isso, na minha defesa de mestrado, que a documentação podia fazer sentido naquele contexto, onde o apresentei, mas que seria uma coisa que iria abandonar no futuro. Porque tinha só essa função de ferramenta para pensar como transportar estas imagens para um contexto exterior a elas. Depois há uma série de problemas que surgem daí. Na altura não se falava tanto de fake news, por exemplo, mas a ideia de um rumor calculado - do Allan Kaprow - tem uma perspectiva demasiado positiva quanto à capacidade interventiva, quase uma felicidade de que todas as pessoas vão contribuir com uma ideia incrível, quase como se o imaginário tivesse esse potencial milagroso.
CR: Mas essa expectativa de felicidade parece-me transversal também às tuas expectativas.
TD: Não, não concordo.
Em grande parte dos meus trabalhos, as narrativas focam-se numa ideia de drama. São situações trágicas, a maior parte das vezes, e tenho-me apercebido que elas funcionam como uma catarse quanto a essas experiências.
Posso dar o exemplo do projecto Clepsidra [Serralves, Porto, 2017 – 2018], que gira em torno da ideia de falhanço quanto ao conseguires fazer algo, e da necessidade de os vários meios multiplicarem esse evento, para recuperar essa mesma ideia, essa mesma acção.
Claro, nós vamos construindo na nossa cabeça narrativas de como o nosso trabalho está a andar. Apercebi-me nesta última exposição [Um Jardim à Noite, Rampa, Porto 2020] que estes últimos projectos giram em torno de uma ideia de desejo e de identidade. O projecto em torno da Natália Andrade [Volta a Portugal em Coreto, 2016 – presente], e em torno do Descartes [Noite de Núpcias, Appleton Square, Lisboa e Espaço Pontes, Fundão, 2019], são sobre isso.
CR: A forma como vais buscar detalhes biográficos dos falhanços dessas figuras, faz-me pensar qual a razão da tua obsessão por esta tragicidade narrativa de carácter biográfico.
TD: Os trabalhos a partir de figuras, que começaram com a Natália de Andrade, são uma forma de sair dos meus preconceitos e da minha maneira de ver o mundo. Ao entrar dentro do universo biográfico de uma pessoa, os projectos começam a exigir uma perspectiva bastante concreta sobre quem era aquela pessoa e, apesar de eu poder ter uma razão inicial para pegar naquelas histórias, de repente, começo a ter que fazer coisas porque o projecto pede, pela natureza específica dos universos em causa. É o caso do ornamento, no projecto Dedicado a Natália de Andrade. Muitas vezes estes universos não vão ao encontro do meu gosto. Os personagens pedem, indicam-me determinadas soluções. Obrigam-me a fugir de uma identidade formal, de um estilo, que acho que apesar de tudo não tenho.
CR: Permite-me que discorde do facto de não teres um estilo.
TD: Tento fazer com que as coisas funcionem com a linguagem que o projecto pede, e não apenas porque sou eu, Tiago Madaleno, que faço esta coisa sempre desta forma.
CR: O desejo está aí, no que as personagens te pedem?
TD: Não sei.
As coisas funcionam de maneira diferente em cada um dos projectos. Em termos de estrutura narrativa, do que cada símbolo significa, e do porquê de aparecer.
Sei que o desejo aparece na dimensão narrativa, é o que move as coisas.
O projecto Dedicado à Natália de Andradetem duas fases completamente diferentes: a primeira que vive muito mais de uma capacidade de metamorfose, em que os símbolos geram símbolos, e uma segunda, quando os símbolos se transformam num evento [Volta a Portugal em Coreto, 2019 - presente], uma coisa que vive muito mais do contacto com as pessoas. E do encontro quase de guerrilha, que resulta do confronto com um mamarracho de alumínio e com alguém que os quer convidar a cantar. Há uma série de tensões em relação a isso, mas as pessoas que participavam não faziam a mínima ideia do que era a raiz do projecto.
CR: Qualquer contacto fora do cubo branco se tornaria outra coisa...
TD: É diferente veres uma série de objectos - que são pensados na sua relação enquanto objectos - ou teres uma performance que interage com as pessoas.
Há expectativas diferentes em relação às diferentes propostas.
CR: O que é que te assusta nas pontas soltas?
TD: No meu trabalho?
É uma questão de rigor em relação ao que apresento. Só quero que o jogo faça sentido na sua estrutura. É tão simples quanto isso. Se assumo que tudo é símbolo, preciso de ser rigoroso.
CR: E no trabalho dos outros?
TD: Às vezes, essas pontas soltas parecem sugerir que os trabalhos não concretizam aquilo a que se propõem.No entanto, outras vezes podem ser fascinantes. A ideia de que há algo que não consegues dominar, ou que não consegues perceber o porquê e, que apesar de tudo, há uma pessoa que persiste em fazer aquilo daquela forma. Não perceber o porquê é fascinante e dá-me vontade de continuar a ver certos trabalhos.
CR: Fala-me da tua ética de trabalho.
TD: Se eu quero fazer disto vida, faço disto o meu trabalho. É simples.
CR: Não é unívoca essa percepção.
TD: Para mim é óbvio.
Não faço isto há muito tempo, por isso há uma certa inexperiência da minha parte em relação a algumas coisas, mas já percebo o tempo que preciso de ter disponível para me sentir confortável com a apresentação de alguma coisa. E isso exige tempo de reflexão, entrega, e é estando no campo a pensar sobre as coisas, que consigo fazê-las. Tenho uma grande capacidade de dedicação às coisas. Quando me posso dedicar totalmente ao meu trabalho, dedico-me. É só isso. Talvez, a parte de ter rendimento a partir disso é que ainda não aprendi.
Eventualmente, posso-me fartar e passar a ser outra coisa, sem uma forma definida. Gosto de ter esse horizonte de possibilidade de transformação.
CR: Com o avançar do teu percurso, há uma parte do amadorismo, ou melhor, da dedicação a um certo amadorismo, que se perdeu, ou, por outro lado, se conceptualizou (como no caso da recuperação da figura da Natália Andrade).
TD: O amadorismo tem a ver com fazer as minhas próprias grades de pintura? [riso]
Amadorismo existirá sempre, na dimensão em que... pelo menos nos últimos projectos que tenho feito, ponho-me em situações e materiais que não costumo utilizar. O amadorismo está lá, porque não domino essas técnicas.
O fascínio pela descoberta, que o envolvimento com os materiais implica, existe sempre.
Há também outra coisa no amadorismo que me fascina e que tem muito que ver com a figura da Natália de Andrade, que é uma entrega incondicional ao objecto amado, que prescinde da técnica, da capacidade para desempenhar algo.
CR: Falava de uma espécie de sublimação... Os pontos narrativos que vais recuperar a estas figuras parecem-me ter as mesmas características que essas grades. A procura pela tragicidade.
TD: A ideia de trabalho é importante para mim, do que é que significa a relação de envolvimento que tens com o objecto e como é que essa relação acontece. Já fiz algumas coisas na tentativa de anular essa visibilidade do trabalho, ou tentar jogar com ela.
Na última exposição [Um Jardim à Noite, Rampa, Porto, 2020] isso é bastante visível na mudança da exposição com e sem luz. Apercebes-te ou não do texto escrito, que tem essa marca do gesto manual, que estabelece uma série de relações com a ideia de trabalho, e que, por outro lado, joga com uma ideia de trabalho de uma forma radicalmente diferente do que acontecia no projectoDedicado a Natália Andrade, com a sua ostentação de gesto.
O amadorismo é um ponto importante. Mas existe também uma relação com uma ideia de responsabilização, que é criada ao assumir as narrativas de outras pessoas como estrutura. São elas que criam o campo de possibilidades, que me permitem entrar noutro universo, que me possibilitam descobrir novas coisas para além do meu gosto, encontrar novas formas de fazer. Tento ter sempre uma relação de compromisso, de responsabilidade, para com a apropriação dessas histórias.
Mas acho que todas as pessoas têm essas condições, essas estruturas, que vão estabelecendo de si para si. Pintar mal, por exemplo, nunca foi uma premissa para mim. “Como é que o tempo de trabalho cria relações de envolvimento com as imagens?” - isso sim, é uma questão em que eu penso.
Interessa-me pensar e jogar com essas expectativas em relação às coisas.
CR: Que preconceitos ainda manténs?
TD: É difícil.
Posso dizer um. Quando vou a uma galeria de cariz comercial e vejo muitos trabalhos semelhantes do mesmo artista, múltiplos ou não. Eu não percebia a necessidade de fazer algo várias vezes, sem uma aparente alteração das ideias. Isto é uma coisa que tenho estado a pensar neste momento. A ideia de repetição de imagens sempre apareceu de forma presente no meu trabalho, mas as imagens não se repetiam propriamente. Obviamente, que também há razões comerciais para isso acontecer, e por esse lado, isso também estabelece a tua posição, enquanto artista, em relação às coisas. A dimensão ideológica existe sempre, queiramos ou não.
CR: Não vejo a serialidade dessa forma. Não é apenas mercantil.
TD: Não quero dizer que a serialidade esteja vinculada unicamente a um princípio mercantil. Não acredito nisso. Mas, por exemplo, essa questão também surgiu em relação à obra do pintor Giorgio de Chirico, que sempre foi fazendo réplicas das suas próprias pinturas. Algumas delas inclusive ele atribuía datas erradas, como se quisesse que se confundissem com as pinturas do seu período inicial, mais conhecido. Esse gesto de repetição é muito mal compreendido ainda hoje, algumas pessoas vêem nele apenas um desejo financeiro ou um jogo com o mercado, apesar de, de uma forma poética, se encaixar perfeitamente dentro do discurso do seu próprio trabalho. Lembrei-me desta relação com a repetição, porque era um preconceito que eu tinha e que me tenho estado a debruçar mais recentemente. A ideia de uma imagem que não quer acrescentar, mas sim prolongar.
CR: Como é que acontece este desejo, ou vontade, que está entre a participação e a colectividade?
TD: Tem a ver com a entrada no mundo, vai ao encontro de tudo o que falamos.
CR: Parece uma entrada no mundo bastante particular, se és tu quem concede as regras e o jogo.
TD: Menos... Cada vez menos, mas percebo a crítica. Desejo que seja cada vez menos dessa forma.
Quando faço uma exposição sou eu que ofereço o enquadramento, isso é assim com todos os artistas. Tenho tentado ter menos obsessão nesse sentido, e de deixar que a coisa... interessa-me uma maior relação emocional com as coisas, e que começou a aparecer de forma mais notória nesta última exposição.