|
ANDRé SIER
LIZ VAHIA
Nomeado para a actual edição do Prémio Sonae Media Art, André Sier apresenta-se como um artista-programador que desde 1997 desenvolve projectos de arte digital, expondo em diversos formatos, que vão desde o vídeo aos objectos, passando pelas acções performativas. Com formação transversal em artes e ciências, e uma licenciatura em filosofia, André Sier entende o atelier como um espaço “de imersão, interactividade, matemática, poesia, jogos, exploratório da interioridade humana e aberto para o exterior”. A Artecapital conversou com o artista a propósito do espaço, do seu espaço de trabalho físico e virtual e do espaço real e imaginado presente nas suas obras.
Por Liz Vahia
>>>
LV: O que é que acontece diariamente no teu estúdio? O que é o “s373.net/x”?
AS: Trabalho em peças e ou nas infra-estruturas das mesmas. Preparo terreno para outras. Há trabalho rotineiro e exploratório a levar a cabo todos os dias. Encaro o estúdio como um espaço-viagem de transição para o desconhecido. Um planalto que permite espaço e tempo para portas que levam a regiões que me apetece explorar ou pelas quais sou surpreendido. Há todo um trabalho para chegar a este registo. Que só permite vislumbrar quando se accionam determinados mecanismos no real que por sua vez abrem fendas a um não conhecido. Para mim, o verdadeiro estúdio é sempre o interior profundo da mente. Esse desconhecido, albergado num corpo estendido entre orgãos, membros, espaços e ferramentas. Ele conduz a fisicalidade de um corpo. Tem sido esse o meu espaço de trabalho. Através do código e da programação de máquinas, criar ferramentas e mecanismos que possibilitam a habitação deste espaço. E neste espaço de trabalho, desenho, prototipo, escrevo e testo código, faço firmwares, soldo componentes, adquiro valores sensoriais, faço computadores, exploro um virtual que os meus mecanismos mentais e físicos possibilitam, leio, penso, pinto, esculpo, toco. E o “s373.net/x” é este estado, este atelier, o meu estúdio, onde quer que esteja. Gosto de linguagens operatórias, lógicas, e através delas chegar a planaltos inauditos, e este nome que escolhi para o meu estúdio é uma agregação de tudo isso. Dois números primos, o triângulo e o heptágono, juntos a apontar para o 10, ou para os binários 1 e 0. É também um departamento de pesquisa e desenvolvimento de uma empresa através da qual desenvolvo trabalho de engenharia artística, e que tem as infra-estruturas necessárias para as peças mais tecnológicas correrem. Um estúdio de imersão, interactividade, matemática, poesia, jogos, exploratório da interioridade humana e aberto para o exterior.
LV: Trabalhando com arte digital, as tuas referências são bastante concretas. Usas muitas vezes dados captados do “mundo analógico”. Estou a lembrar-me por exemplo do projecto “Skate.Exe”. São experiências que fazem parte do teu dia a dia ou vais especificamente à procura delas com vista a um trabalho?
AS: A computação, o virtual, e toda a arte electrónica digital têm sempre um quê de analógico, de concreto. Mesmo nas experiências mais abstractas, os electrões fluem sempre em estradas físicas entre os componentes para as executar, numa escala cada vez mais próxima da nossa celular. E gosto de explorar estas pontes entre analógico, concreto, virtual, abstracto. Escritas assim até parece que estão ligadas, mas são de facto 4 estados distintos, entre outros. Por vezes ressaltar um estado, outra vez contrastar, ou ainda como uma ponte entre máquina e real, depende da peça ou do ambiente em questão onde estou focado. Estamos num instante da história onde é possível darmos uma concretude mais plausível a pormenores subtis e intangíveis que por vezes estão apenas vivos nas psiques individuais. Acho que a primeira vez que misturei analógico e virtual foi na série struct, que são composições áudiovisuais sem fim operadas no vazio, que desenvolvo desde 2000. Microfones e ou câmaras ligadas a computadores efectuam maquinal ou generativamente composições com os inputs site-specific dos espaços onde as peças estão instaladas. Orquestram vazios, tocam apenas com o que ainda não está lá. Como dedos que penteiam cabelos invisíveis, de alguém ainda ausente. Um dedo sobe o pitch, outro granula, outro antecipa, outros registam na memória e reproduzem depois talvez. E quando em funcionamento, geram espaços onde há esta confluência entre o que é e o que já foi, e esta mescla alterado pelos processos, numa espécie de antecipação do que há de vir.
Quis focar-me também só em dados sensoriais em tempo-real, e usá-los para conduzir processos e peças. O primeiro exemplo que me lembro é a 32-bit Wind Machine de 2009, onde desenhei um jogo para o computador jogar com o vento, e simultaneamente ir arquivando desenhos desse jogo.
Nos projectos do Skate, houve também este movimento analógico virtual, mas a partir de um ponto de vista mais pessoal. “Skate.Exe” é um projecto maior dentro da minha série de cidades imaginárias piantadelmondo, e ao criá-lo brotaram naturalmente uma séries de outros projectos como as fotografias Skate Riding…, as aplicações Skating Sessions, Free Skating, Skate.Exe Portraits, as esculturas 3D Eu-Abstracto com os personagens do jogo. Neste projecto (Skate.Exe) quis construir a cidade dos fluxos sob uma película de jogo. Uma cidade edificada nos fluxos de movimento – uma antagonia difícil de desenredar : edificar algo estático no meio dos fluxos de movimento, feita com aquele que terá sido um dos primeiros meios de transporte humano, actualizado no século xx, a prancha de madeira com ossadas para facilitar o deslocamento através das estepes de neve. E voltei a skatar por causa destas ideias, precisava de sentir no corpo as forças e dinâmicas de movimento. E também a ver skatar, gravar dados destas sessões com skaters muito hábeis, voltar a visualizá-los e pintar com estes dados espaços dados por estas dinâmicas. Explorar uma arquitectura do fluxo, através do registo estático do movimento e de o observarmos fora do tempo. E há neste projecto um desafio ao jogador-espectador. Para o ver é necessário ir para cima da prancha de skate com rodas triangulares e electrónica ligada ao computador – aqui a prancha é a ponte entre o analógico e o virtual –, sentir os desequilíbrios e as forças necessárias para surfar as ondas estáticas, inclinar-se e equilibrar-se para prosseguir no espaço e desenrolar a peça – que apesar de virtual, a imersividade que proporciona através dos corpo-joystick dos jogadores é ímpar. Neste caso houve esta necessidade de explorar o universo do skate com a câmara-corpo, e tornou-se absolutamente imprescindível para criar algumas das experiências nas peças. Foi algo que já fez parte do meu dia a dia, fiz surf muitos anos em adolescente, que deixei na entrada da vida profissional, e algo que senti a necessidade de voltar a procurar para a criação destes projectos.
LV: Desde 2010 que vens experimentando com esculturas a partir de impressões 3D. Também nesta primeira exposição individual no MNAC apresentaste um conjunto de pinturas. Sentes falta de uma certa materialidade? Em termos de processo de trabalho, como é que essas peças surgem em relação aos vídeos?
AS: Há sempre uma materialidade, mesmo na etereidade do puro digital – senti mais a necessidade de separar alguns objectos que produzo da sua camada maquinal e torná-los acessíveis ao toque e ao olhar em suportes não tecnológicos, aplicando as mesmas ideias que uso quando faço peças electrónicas. Foi também como comecei nas artes, com música, pintura e escultura. A música, apesar de mais imaterial, – como as redes, propaga-se no ‘vazio’–, também tem os seus instrumentos. E na pintura e escultura toda a paleta de ferramentas e materiais para construir obras e espaços. São ferramentas à escala da mão, do corpo... O universo computacional é muito mais árido, pontuado com oásis raros. Mas proporciona ferramentas à escala da mente. Um espaço quase infinito condensado por vezes e por agora num écran, teclado e rato, que comunicam ideias com os componentes, e correm paralelamente um sem número de tarefas. Por um lado dá-lhe uma leveza intangível que permite rapidamente testar ideias, des-re-fazê-las; por outro lado esta etereidade e desvanecimento no ar, como uma existência/não-existência Schrodingeriana, ou mandalas de areia. São novas ferramentas, novos estúdios, e são relações que temos com a tecnologia que ainda estão no início da universalidade. Mas a computação é um oeste selvagem onde quase nunca as coisas funcionam e é necessário entrar e dominar linguagens e poesias que parecem distantes de uma fisicalidade e quase ao mesmo tempo a todas permite e pode dar concretude. Tenho uma relação intensa com estas ferramentas, e por outro lado uma necessidade de trazer e traduzir o que desenho algoritmicamente para uma concretude. E depois há peças que só funcionam bem numa escala ao corpo, sem tecnologia, apesar de nascerem do lado de lá.
LV: As arquitecturas virtuais são uma presença regular nos teus trabalhos. Nestes últimos projectos são arquitecturas que se originam a partir do movimento. O caminho é visualmente criado quando nos deslocamos. Achas que o digital te permite trabalhar o tempo e o espaço de uma forma que outras abordagens não são capazes?
AS: Sem dúvida que o digital é ímpar no trabalho do tempo e do espaço que outras abordagens não permitem. Foi esse vislumbre, a par e passo com o virtual possível de ser fixado, que tornaram as artes electrónicas a minha ferramenta predilecta de observar e pintar o mundo. Estamos como diz frequentemente Xenakis num plano hors-temps, onde o foco está nas regras que gerem o momento de execução de um trabalho e não tanto na forma de determinado instante fixo e repetível. E através do virtual, também num limbo hors-espace. Interessa mais pintar o magma de onde as ideias brotam, capaz de executar infinitas variações regradas no tempo e no espaço. Depois podemos a isso juntar a interacção, e oferecer aos visitantes quer o painel de controlo total da obra, quer a possibilidade de a tocar, de a experimentar, em última instância de a habitar. Ou deixar a evolução autónoma das obras envolver e criar espaço de fruição, vedando qualquer interacção que não a experiência sensorial. O virtual foi o que mais me fascinou nestas tecnologias. A possibilidade de sintetizar. Talvez chegar a uma criação separada de um mimetismo. Ver, e não olhar apenas, as possibilidades da mente. Os nano-movimentos quase não cognoscíveis das intenções de pensamentos e acções que chegam a sensações e que por vezes nos resolvem. A feérica pulsão da vida, actualizada em objectos, experiências. Conceber e habitar espaços de tal forma díspares do real que se tornam engendradores de experiências. Corpos e conceitos a moverem-se e serem executados seguindo físicas que ninguém ainda conhece. Já há uma excelente “Beleza Computacional da Natureza”. Que é deliciosa na sua formulação e ambição. Aproximações ao caos, sistemas complexos, adaptação, fractais e talvez buracos negros. Precisamos de uma sobre a Síntese. Daí ter-me lançado no virtual. E analisar o movimento, torná-lo joystick, buscar outros movimentos. Simples gestos executados no vazio que são essenciais no desvelar das experiências de outros espaços sublimes. Precisamos de ferramentas para viajar profundamente nas mentes subtis. Desvanecer e fundir os egos, os corpos e os espaços, criar artes e objectos, métodos e artefactos que totemizem uma relação com o universal, e que possam deixar o planeta em estado que outros que estejam, outros que venham, igualmente se possam espraiar, abalar e fazer vibrar comunidades de humanos ou outros seres em torno de artefactos que talvez deixem de ser arte.
LV: És um dos nomeados do Prémio Sonae Media Art. Achas que estas iniciativas são importantes não só para os artistas, mas também para o público se interessar pela arte digital? O que achas do prémio estar associado também a um museu “tradicional” (o Museu do Chiado)?
AS: O Sonae Media Art é algo recente que espero tenha continuidade. E espero que se foque em artes electrónicas e digitais. As artes cibernéticas, digitais, interactivas, electrónicas, pós-internet, têm trazido lufadas de ar fresco às artes tradicionais um pouco por todo o mundo, têm acompanhado de perto a transição da humanidade com as redes instantâneas que tendem a abolir o espaço – um tremor que se sentirá maior, na minha opinião, do que a fotografia ou o cinema fizeram no século passado. É bom ver empresas gigantescas a contribuírem para a criação artística na área dos novos media, já que ninguém mais o faz. A cultura é um campo de batalha ingrato, mas é o que poderá oferecer alguma redenção ao espírito, e eventualmente congregar comunidades. E que venham mais artistas trabalhar nestas áreas. Áreas com um século de existência que abalaram os edifícios normais da arte, que ainda hoje lhes são exteriores, operando nos interstícios, temporizadas, fora das colecções de arte, e que são e já foram alteradoras do paradigma usual artístico. Já há muitos circuitos de artes plásticas e visuais. Há público por todo o globo muito interessado em artes electrónicas, e as formas normais de produção e consumo de arte estão a ser alteradas a cada dia. É importante haver instituições públicas que preservem e cedam espaço e tempo às novas artes, criem novos públicos, novos artistas capazes de nos surpreender. As galerias, os museus, são importantes, têm um papel essencial a desenrolar e podem ser elos de revitalização de comunidades que acompanhem as ondas dos tempos.