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TIAGO BAPTISTA
BEATRIZ COELHO
Tiago Baptista licenciou-se em Artes Plásticas, pela ESAD (2007). Desde então, participou em diversas residências artísticas, foi selecionado em prémios de reconhecimento nacional e tem exposto, regularmente, dentro e fora do país. Atualmente, encontra-se com a exposição individual intitulada: “Atrás do Pensamento”, na Galeria 3+1, em Lisboa.
Por Beatriz Coelho
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BC: Na obra de Clarice Lispector, nomeadamente Águas Vivas, de onde foi retirado o título para a tua exposição na Galeria 3+1, percebemos uma constante busca por transformar sensações em palavras, numa linguagem que se liberta de convenções e expressa aquilo que nos parece impronunciável.
De modo semelhante, encontro no teu trabalho uma linguagem semelhante, ainda que obtida através de um outro meio: o da pintura.
TB: O que aconteceu para esta exposição, de uma maneira mais visível, foi uma experimentação pictórica a que me entreguei e que permitiu às pinturas ficarem mais soltas. “Soltas”, no sentido em que são mais autónomas, mais permeáveis a outras leituras. Até porque o conjunto de trabalho agora apresentado é muito eclético, a meu ver. Algumas pinturas resolveram-se em horas e outras em meses, mas foram feitas em conjunto, embora sem preocupações de criar um todo coeso que perseguisse uma narrativa única. Para esta exposição, decidi que trabalharia de uma maneira menos comprometida do ponto de vista conceptual, assumindo essa fragilidade, esse pintar sem rede, tentando usufruir das tintas, da introdução dos elementos e da sua escolha de maneira muito mais epidérmica, muito mais emotiva, mas sempre com a consciência dos problemas que isso pode trazer, que na prática, é a sensação de que estou a pintar no vazio. Mas foi extremamente prazeroso. Ainda assim, acredito que há aqui um pensamento, mas é um pensamento da ordem do visual, não das palavras.
BC: Algumas pinturas tuas mais antigas, parecem focar numa crítica social de um modo mais óbvio e direto. Algumas, mais rígidas também, se comparadas às pinturas que agora vemos em exposição. Dá-me a sensação que, sem abandonares aquele que era o teu imaginário, conduziste o teu trabalho para uma pintura mais indireta e, simultaneamente, mais suspensa e profunda, preservando a capacidade de arrastar o espectador para fora de si, colocando-o tantas vezes numa posição de questionamento existencial.
Como encaras este momento da tua pintura, face ao projeto que tens vindo a desenvolver ao longo do tempo?
TB: Acho que, anteriormente, as figuras que pintava estavam envolvidas, em muitas ocasiões, num confronto físico ou na eminência de um confronto. Nesse sentido, as pinturas eram mais violentas, ou tentavam transmitir um tipo de violência física mais direta, mais explícita. Outra preocupação era que a representação tivesse uma verosimilhança mais desenvolta: as personagens existiam quase invariavelmente numa situação representada de modo realista, com uma perspetiva mais ou menos “correta”, com um tratamento dos volumes e da luz que situasse as figuras num único espaço e tempo. Foi acontecendo que as personagens começaram a experimentar uma violência resultante mais do abandono do que propriamente do confronto, e as figuras, os espaços e as escalas começaram a não ter preocupação de verosimilhança com o real. Primeiro, começaram a atropelarem-se e a criar múltiplos espaços e tempos; mais tarde, começaram a flutuar pela tela. Em alguns casos, as figuras deixaram de sofrer com a gravidade, tendo a possibilidade de se libertarem do plano horizontal e experimentando uma leveza e ligeireza a que antes não me permitia. Fui assumindo, a pouco e pouco, que aquilo que acontecia na pintura era referente ao universo da própria pintura. De facto, “suspensão” é uma palavra que me é muito querida. Mas esta foi uma mudança gradual, feita com alguma angústia e cautela, não foi uma decisão drástica e afirmativa.
Gosto de pensar que estas últimas pinturas ainda conservam uma certa violência, resultante da conjugação de elementos que transmitam alguma tensão, pela sua dimensão insólita, onírica e pela incompreensão da sua coexistência nas telas. Mas não procuro uma pintura inócua do ponto de vista político ou emocional. Existem ainda elementos dos quais não prescindo, como as personagens geralmente tensas e em estado de transição, as ruínas, as fábricas, as estradas, os viadutos, a paisagem e a construção que dela fazemos. No fundo, não prescindo da intervenção humana neste espaço em que vivemos, neste planeta.
BC: Nesse sentido, posso dizer que a tua pintura se define por uma linguagem singular, que exprime, como disseste, uma constante tensão entre os diversos elementos que a compõem. Para uns espectadores, tal tensão resulta numa interrogação, numa análise, num encontro ou desencontro. Para alguns, uma total perda de sentido, para outros, uma estranha identificação. E assim, a tua pintura oferece esta misteriosa tensão, resultando em obras de extrema curiosidade. Qual a motivação para criares este tipo de pintura?
TB: Acho que essas palavras são, de alguma maneira, definidoras do que procuro no meu trabalho: “interrogação”, “encontro/ desencontro”, “perda de sentido” e “estranha identificação”. O que busco, ou acredito que procuro no meu trabalho é que, quando confrontados com ele, nos possamos identificar precisamente com essa perda de sentido. E isso tanto vale enquanto proposta para aquele que vê, como para mim, enquanto fazedor de imagens.
BC: De forte componente cinematográfica, e igualmente assente na palavra, qual a importância que estes dois aspetos têm na tua obra pictórica?
TB: Assim como a palavra lida, também o cinema sempre me interessou e influenciou, seja direta ou indiretamente. Há uma imensidão de realizadores que me são caros. De facto, há realizadores que me influenciam tanto a nível estético como conceptual, de maneira muito direta, e falo aqui por exemplo de Andrey Tarkovsky, Luis Buñuel, ou de alguns filmes de Akira Kurosawa. Depois há outros realizadores que me interessam muito e que me acompanham, mas que não reconheço conscientemente como uma influência direta: Agnés Varda, Rainer Fassbinder, Alain Resnais, Werner Herzog, Eric Rohmer, Wim Wenders, Jacques Demy, entre outros. Na literatura, há um autor específico que sinto ter sido muito influente, que me aconchega, sendo que “aconchego” não é a palavra mais conotada com o seu trabalho, antes pelo contrário. Esse escritor é Kafka. Se escrevo “aconchego” é porque encontro na sua escrita temas que me acompanham, que me interessam desenvolver, como o desconforto físico e emocional, a tentativa de encontrar sentido para enredos e situações completamente labirínticas e ilógicas, essa “identificação com a perda de sentido” que referias há pouco. De algum modo, encontro isso na escrita de Kafka. Os poemas de Paul Celan também me são muito queridos, talvez por serem mais herméticos, sinto-os quase abstratos, mas muito fortes emocionalmente. Depois, gosto muito da escrita de Clarice Lispector pela fluidez, pelo seu uso da palavra. De facto, a escrita dela tem algo de pictórico, de sensorial, e isso agrada-me. Estes são apenas alguns exemplos, existem outros. Às vezes não gosto muito de me agarrar a imagens, sejam elas visuais ou escritas, porque facilmente sinto que posso cair em situações ilustrativas, das quais tento afastar-me (embora saiba que isso, em certa medida, é inevitável).
BC: E, particularmente da pintura, quais as tuas referências?
TB: O que me fascina e adoro é a sensação de olhar para pinturas e ficar com vontade de pintar. Alguns artistas que desenvolvem a prática da pintura de que me lembro de repente, sem ordem de preferência e que são referenciais para mim, são: Diego Velasquez, Michael Borremans, Mamma Andersson, Hugo Canoilas, Rui Pedro Jorge, Maia Horta, Gonçalo Pena, Neo Rauch, Nicholas Poussin, Joana da Conceição, Peter Doig, Josefa d’Óbidos, Ana Mata, Cecília Corujo, João Gabriel, Jorge Queiroz, Ana Manso… seria com certeza uma lista interminável. Algumas referências são mais prosaicas que outras, mas tento não estratificá-las, ou recebê-las e qualificá-las como estímulos hierarquizados. O fluxo de referências e influências é insondável e procuro um equilíbrio entre estar desperto e ao mesmo tempo distraído. Se me concentro muito na busca de referências para pintar, fico bloqueado. Mas acho importante ter consciência dos estímulos e dos artistas que nos influenciam, e assumi-los.
Também tenho muitas referências que não vêm só da pintura, por exemplo em viagens de automóvel é muito comum ter ideias para pintar. Esses momentos de distração são muito importantes. Outras vezes, a vontade de pintar também vem de conversas, dos sonhos e de outras fontes imagéticas que não são necessariamente do mundo da pintura, muitas vezes são do design, da ilustração, da instalação, da escultura, do cinema. Entre outros, posso dar o exemplo do artista de BD belga Olivier Schrauwen ou Gee Vaucher, a artista que fez o material gráfico dos Crass, uma banda inglesa de anarcopunk, que tem um trabalho de colagem e pintura a guache delicioso, mas também desconcertante…
BC: Falando agora da prática da banda desenhada no teu percurso artístico… Que tipo de relação existe, na tua prática, entre ilustração e pintura? E de cada uma destas práticas, qual o significado que retiras?
TB: A relação entre a prática da banda desenhada e da pintura não é muito pacífica. Complementam-se, mas tenho dificuldade em fazê-las casar. Se calhar é um preconceito meu, devo admitir. Admiro muito artistas que o conseguem fazer, como o Ilya Kabakov ou o Francisco Sousa Lobo, por exemplo.
Vejo a banda desenhada como a possibilidade, talvez, de fazer os filmes ou pequenos vídeos que ainda não tive a coragem ou a oportunidade de realizar. Em novembro passado foi publicado, pela associação “ChiliComCarne”, um livro autobiográfico sobre uma residência artística que fiz em Berlim, em 2013, chamado: “Berlim, cidade sem sombras”. Para mim, a banda desenhada talvez tenha um cunho muito mais confessional, político e por vezes humorístico, do que a pintura. Pelo seu lado ensaístico, é também um veículo de exposição intimista e de teorização sobre as experiências com que me deparo ou procuro. Uma arte mista, que oferece muitas formas de aproximação e que se permite a abordar mil assuntos, ora de maneira mais humorística ora intimista, ora documental ora ficcional. Para além disto, consigo sempre desenvolver narrativas mais estruturadas e objetivas, sendo uma arte sequencial.
Já a pintura é muito mais do campo da observação sensorial, do usufruo do olho, embora haja uma sensação quase táctil, quase (estou agora a pensar nisto à medida que vou elaborando esta ideia) sensual. Talvez procure na pintura uma certa sedução que o olhar encontra na receção das cores, das texturas das tintas, da perceção do gesto. Da prática e da observação da pintura retiro precisamente essa doce sensação de espanto e sedução, e é também um momento introspetivo (obviamente, nem sempre isso acontece). Mas, ao mesmo tempo, sinto uma maior pressão do ponto de vista profissional.
Posto isto, e apesar das distinções, ambas as práticas se complementam. É comum, quando termino um momento intenso de trabalho em pintura, ter necessidade de trabalhar em banda desenhada, e vice-versa.
Aqui há dias aconteceu ir a casa de um colecionador. No meio daquelas obras de arte contemporânea cuidadosamente espalhadas pela casa, (na verdade, o apartamento parecia mais um pequeno museu do que uma casa) encontrei uma estante com quase todos os livros de um autor de banda desenhada japonês que me é muito querido, o Jiro Taniguchi. Naquele momento fiquei comovido com a ideia alargada do que pode ser, efetivamente, uma coleção de “artes”.
BC: Para além da pintura e da ilustração, sei que iniciaste recentemente um projeto relacionado com música. Tens vindo a criar e a colaborar numa série de atividades, práticas e projetos culturais que se estendem e complementam, fruto, imagino eu, da tua proatividade / versatilidade.
TB: Na ESAD, comecei a publicar fanzines e essa é uma prática que tem sido constante. Nesse espaço de autoedição (sob a chancela da pequena editora “Façam fanzines e Cuspam martelos”) partilhado com a Catarina Domingues, dedico-me, para além da banda desenhada, também à escrita, geralmente sobre música. Sempre gostei de ler sobre música e sempre gostei muito, muito, de ouvir música. O que acontece é que, quando vou escutando música, vou pensando muito sobre o que ela me faz sentir, quem a compôs, porquê, onde… Os fanzines são o formato ideal para publicar estes textos que vou escrevendo, pois posso publicar o que quiser, embora quase ninguém vá ler isso. Neste tipo de publicação, posso escrever sobre os discos e projetos musicais que acho pertinentes e elaborar ideias à sua volta sem ter nenhum compromisso editorial. Não é que isso não me interesse, mas nos fanzines posso escrever sobre o que não consigo ler em mais lado nenhum. É claro que os textos são tudo menos imparciais, são íntimos, são muito pessoais, falo essencialmente sobre o que penso e sinto. Parece-me que na imprensa nacional e, sobretudo, na imprensa cultural, falta algum espaço para textos mais opinativos, demorados e livres do espartilho mercantilista, embora reconheça os esforços que têm surgido para contrariar essa tendência. No fundo, ao que me proponho, de uma maneira talvez ingénua, mas sincera, é poder escrever sobre o que não consigo ler na imprensa nacional. Estes textos sobre música são muitas vezes um espaço para dar voz a questões sociopolíticas que me interessam estudar e desenvolver e que não consigo extrapolar para o meu trabalho de pintura. Por vezes, acho que a escrita me permite uma maior sinceridade e objetividade sobre questões que me são muito caras como a objetificação dos corpos, a igualdade dos géneros, a estratificação social, o imperialismo, colonialismo, e que se tentasse desenvolver num trabalho pictórico, neste momento, sentir-me-ia desonesto comigo e com o outro. Assim, na escrita, posso tentar elaborar ideias sobre estes tópicos, da maneira que me sinto mais confortável, mas com a noção de que aquilo que escrevo não é absoluto, está cheio de porosidades e fragilidades. Não é, nem pretende ser, um trabalho académico.
Recentemente, decidi fazer um podcast com músicas e um blog onde vou publicando textos que saíram previamente em fanzines, de maneira a poder partilhá-los com um maior número de pessoas. O blog chama-se “Desenhando constelações” e pretende ligar vários assuntos e referências que apenas se relacionam porque partem da minha experiência e desta parcialidade. É, então, um desenho íntimo, mas que pretende ecoar no outro e na sua experiência tentando encontrar pontos comuns e de aproximação.
Por vezes, é difícil gerir todos estes interesses e estímulos. Mas só consigo fazer as coisas assim, talvez com o tempo aprenda a direcionar a minha prática num só caminho.
BC: No seguimento disto, e na tua opinião, quais as “ferramentas” que um jovem artista deverá ter atualmente?
TB: Eu não sei quais “ferramentas” um jovem artista tem de ter hoje, mas parece-me que apenas tentar desenvolver um bom trabalho artístico não chega. Ao artista, é-lhe pedido que seja também um relações públicas. Provavelmente sempre foi assim.
É claro que a dimensão social é importante e a apresentação de um novo conjunto de trabalhos deve ser motivo de alegria e celebração por parte de todos, mas por vezes, é difícil dirigir a energia também para esse lado social das inaugurações, por exemplo. Acho que cada artista deve fazer o que consegue (e quer) sem prejudicar o compromisso com seu trabalho. Às vezes, sinto que não consigo acompanhar todo este circuito social das artes. Também não penso que o artista se tenha de fechar numa torre de marfim, acho isso absurdo, mas considero que nem sempre toda a energia é canalizada para a produção e pensamento do trabalho. Ainda assim, acho importante que possamos estabelecer, nessas ocasiões sociais, contacto com os diferentes intervenientes das artes, sejam artistas, curadores, galeristas, diretores de museus e instituições, técnicos, colecionadores, e que, a partir daí, possamos cooperar e desenvolver trabalho conjunto, estabelecendo relações e vínculos de maneira honesta e comprometida, fora desses momentos sociais. Infelizmente, também se tem agudizado a precariedade e falta de apoios aos artistas e demais intervenientes das estruturas culturais, e isso também é motivo de dispersão de energia para todos. Acho que a proatividade e versatilidade são positivas quando permitem o aprofundamento e empenho na prática e no pensamento artístico, mesmo que de maneira alargada. Por vezes, proatividade e a versatilidade são também sinónimos de precariedade e sobrecarregamento de funções e empregos por parte dos agentes culturais mais fragilizados economicamente, e isso, infelizmente, é o espelho da sociedade atual.