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HELENA VALSECCHI
INêS FERREIRA-NORMAN
12/11/2021
HElena Valsecchi é artista italiano-portuguesa, e escolheu a Costa de Prata como sua casa. Conheci a sua prática artística há cerca de um ano, e chegou a altura de lhe fazer umas perguntas, pois o trabalho atrai-me imenso por sua sublime estética, mas acentuadamente, porque senti o seu vudu. Não se chama vudu no mundo de HElena, é o sagrado e a localidade, que a move.
Por Inês Ferreira-Norman
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Inês: Como é que vieste aqui parar, a esta prática artística, baseada no desenho e na cor?
HElena: Na pintura, no desenho... mas sobretudo na pintura diria. Também faço instalações pictóricas, esculturas, que vejo sempre como atos pictóricos. Comecei inicialmente de forma espontânea, tenho uma formação suturada, e só comecei já em Portugal, a passar por institutos ou escolas de arte, mas acabei por não completar um ciclo numa escola só. Acho que isso faz parte da minha vontade de procurar uma independência e ser o menos possível condicionada por formas de pensar, escolas... mas tive vários encontros nestas escolas, alguns furtuitos, outros não, mas alguns que tiveram importância e eu continuei a cultiva-los fora dessas instituições. Falando da minha formação.
O trabalho que estamos a ver aqui, foi trabalho que foi desenvolvido no último ano, e é um ano em que pela situação em que todos nós nos encontramos, fiquei a ter mais tempo comigo própria e em contacto com o sítio que eu escolhi para viver há dois anos atrás, que tem uma natureza muito forte. A natureza em si, já estava presente no meu trabalho anterior, mas houve uma maior.... assumi mais esse aspeto no meu trabalho.
Por ordem cronológica, este trabalho que é a Synecdoche (fig.1), é um trabalho que eu comecei no âmbito da minha residência na RAMA, em Maceira, Torres Vedras. É um trabalho bastante complexo porque aborda muitas temáticas... bem, a ideia surgiu depois da visita a dois museus em Torres Vedras, o Museu Leonel Trindade (Museu de História e Arqueologia), nomeadamente a parte ligada às necrópoles, onde há objetos de uso comum como tijelas, que acompanhavam o morto na sua viagem na morte. E fazendo isso, tornava-se num objeto sagrado. O uso comum, sái do quotidiano e torna-se sagrado porque vai para outra dimensão. O outro museu era o Atelier do Brinquedo, onde havia estes brinquedos antigos muito lindos! A dimensão do brincar tem também uma ligação ao sagrado nas suas origens, mas ao mesmo tempo existe em contraste. É como se fosse uma antítese do sagrado, o brincar, e isso interessa-me. E depois eram brinquedos que deixaram de ser brinquedos, passaram a ser relíquias: já não são usados por crianças... por isso achei que existia um ponto de contacto entre estes dois universos. O objeto de uso comum nesses povos antigos que se tornava sagrado por sair de uma função quotidiana, e o brinquedo que por um lado contém essa origem do brincar que vem do sagrado. Muitos atos do que é brincar, têm origem em rituais antigos. Por isso comecei a refletir sobre estes dois universos e a ligação entre eles. Então partindo de Torres Vedras, a minha pesquisa começou a expandir-se temporalmente e geograficamente. Comecei por procurar imagens que tinha a ver com o universo do brinquedo e do sagrado, muitas vezes do sagrado funerário, em várias culturas, tempos, povos, e fui construindo este trabalho, que é uma aguarela, e é composta por muitas aguarelas... Sinédoque, não é? Que é aquela figura retórica da parte para o todo e o todo feito pelas partes, onde cada desenho que a compõe é pensado para ser desenho individual, que pode ser cedido/vendido individualmente, mas ao mesmo tempo é parte deste todo que se vai construindo e pensei que fizesse sentido que não parasse, que esta expansão da pesquisa da imagem fosse também uma expansão temporal, espacial, geográfica... a minha ideia é continuar a fazer este trabalho ao longo dos anos em paralelo com o resto da minha prática artística.
É bastante importante mencionar que Synecdoche tem vida na Internet. Porque a sua natureza é desfazer-se, eu quis que houvesse um sítio onde ele pudesse continuar a existir. Porque aqui já não estão alguns dos trabalhos, e vai continuar a evoluir...
Inês: Sim esta não é a disposição inicial em que eu conheci Synecdoche...
HElena: E vai sempre ser assim. Até pode ser exposta parcialmente. Eu criei o site online, e a ideia é continuar a atualizar conforme a instalação aumenta. E depois há outro aspeto do trabalho que é muito importante. Este trabalho cria conexões, entre pinturas e o tempo, sobre um tema específico, e como este trabalho foi iniciado quando ficámos outra vez em confinamento, senti necessidade de que essa conexão fosse também prática e então encorajei nas minhas redes sociais, a quem quisesse participar no projeto, a escrever uma frase sobre o que é o sagrado e a escolher um desenho sobre o qual eles gostassem que essa frase fosse publicada. De alguma forma existe assim a unificação deste tema, que faz uma parte tão forte da nossa história enquanto seres humanos. Esta parte online do projeto também garante a continuidade no tempo do projeto e essas ligações, permite o arquivo.
Inês: A Synecdoche é um trabalho a aguarela, mas eu sei que andas a trabalhar o pigmento diretamente da terra, pelo qual te agradeço, não só pela pegada ecológica, mas também por expores essa beleza inerente. Fala-me um pouco dessa transição, porque é que começaste a usar pigmentos da terra.
HElena: Antes de falar do pigmento, tenho de te falar deste trabalho, ‘La Nostalgie du Paradis’ (fig.2) porque este foi o primeiro trabalho que fiz mesmo na paisagem e surgiu de um desafio que eu tive num curso organizado pela RAMA com a Carla Rebelo, e cujo objetivo era criar uma obra a partir de um lugar. E o lugar que eu escolhi é este lugar, a costa entre Peniche e Lourinhã, que é onde eu vivo e é um sítio que faz parte das minhas caminhadas quotidianas, do meu quotidiano. Este trabalho também tem a ver com uma mística e com a vivência e a procura do sagrado.....
Inês: Mas este trabalho foi feito então nas rochas?
HElena: Exatamente, estes são as pinturas, mas a instalação foi feita lá como podes ver nas fotos do meu site online. O papel foi imerso na água do oceano, moldado nas rochas... cada folha foi moldada pelas pedras e o papel ficou então com a textura, e foi pintado a aguarela usando a água ambiental... a água de aqui. Neste sítio há umas escadas para os pescadores descerem do ‘céu’ para o mar, através da terra... Na superfície do papel, quis criar a união entre a rocha e o céu através da textura original da rocha e a pintura de aguarela das nuvens do céu... assim que não é bem um reflexo, mas sim um reflexo como aqueles das vitrines, que dá para ver o que está atrás da superfície, mas também a superfície que está à nossa frente. Isto tem a ver com mitos antigos em que a terra e o céu estavam ligados, e com a função do xamã... que trabalhavam a união entre dois mundos.
Inês: Então ao fazeres este trabalho em que estás a unir o céu e a terra, achas que a espiritualidade era seres tu o xamã?
HElena: Sim era um pouco isso, estava a ler textos que falam em vários mitos das origens e achei que tinha tudo a ver com este sítio que para mim tem aquela carga muito forte da escada, que cria uma ligação entre o céu e a terra. Isso é importante para chegar à pergunta que me fizeste. Depois deste trabalho, com um artista italiano, o Davide Canali, fiz um projeto que se chama ‘Il denti della Terra’ (fig.3) que foi num sítio um pouco mais para frente, no final de uma falésia, onde há uma paisagem que se parece com o fundo de um rio, (fig. 4) que foi provavelmente há 150 milhões de anos o fundo de um rio, e agora já não é... as dunas vermelhas não são vulgares deste lado da costa e por isso eu achei este lugar muito forte. A ideia foi irmos trabalhar mais uma vez esta procura da vivência do sagrado na natureza, pensando nestes mitos onde a terra era considerada um corpo. E foi isso que fomos trabalhando neste projeto, em várias sessões, e em cada sessão fomos trabalhando cada parte do corpo. Chama-se ‘Il Denti della Terra’ por causa das rochas onde elas estão e da instalação que fizemos lá, mas há a pele, as veias... é um sítio onde não é fácil andar, caí muitas vezes, enchi-me de pequenas feridas, de negrelas, e isso deu-me uma forma de pensar sobre a ferida. Uma ferida que é causada pela terra, num momento em que eu estou a fazer um trabalho sobre o sagrado, o corpo, sobre a terra como corpo, sobre estes mitos antigos. A ferida lembra o universo do sacrifício, algo dentro do âmbito sagrado, e foi um pouco a partir dai que comecei a pintar estas feridas, e foi assim então que pensei pela primeira vez que fazia sentido usar aquela terra, que era o sangue, deste corpo, para pintar as feridas que me tinham feito.
Inês: Então estas pinturas são retratos das feridas que tu tiveste? (fig.5 e 6)
HElena: Sim, na verdade são fotografias das minhas feridas, sobre as quais pintei com os pigmentos provenientes desta paisagem. E foi assim que comecei a trabalhar estes pigmentos. São uma reflexão entre esta ligação: ferida, corpo humano, o sangue da terra, a ferida causada pela terra.
Inês: Nestes (fig. 7), estavas-me a dizer, já não usaste o pigmento da terra?
HElena: Não, estes trabalhos ainda não estão acabados. Estes foram feitos a partir da paisagem usando o meu sangue menstrual. É o que me fazia sentido, após esta experiência e este último trabalho (iteração em pigmentos naturais).
Inês: É que parece mesmo pigmento da terra!
HElena: É incrível, mas parece mesmo... é a mesma cor da terra deste sítio.
Inês: Isso faz-te sentir mais local? Será que isto foi uma pequena iniciação a viveres aqui?
HElena: Não vi isto como uma iniciação, pensei mais nesta ideia da terra como corpo, feminino, há várias artistas que trabalham isso. Não é tão a minha vivência pessoal, ainda que fui eu a fazer o trabalho, foi mais na direção de concretizar a ideia de que a terra representa um corpo humano, em que a terra foi pensada pelo humano como um corpo. E mais ainda neste sítio específico do rio, onde há 150 milhões de anos o ser humano ainda nem existia... participei uma vez numa visita muito interessante com a Lourambi e a colaboração do Dr. Octávio Mateus do Museu da Lourinhã, e verifica-se que há 150 milhões de anos, quando o mar estava atrás de nós e as Berlengas eram montes, desses montes desciam rios, que chegavam a esta costa. Eu gosto de pensar que este sítio era um desses rios... um rio que vem do mar. Quando eu trabalho, há sempre uma parte de mim que procura e reflete sobre como a matéria que estou a trabalhar teve, na história do homem em algum momento, uma valência ligada ao sagrado, e o sangue é sempre um elo forte.
Inês: Este desenho é então uma representação só do leito do rio, ou da paisagem à volta do rio?
HElena: Só o leito, pois é só o leito que tem esta cor. Toda a paisagem em redor já é diferente.
Inês: Há pouco referiste-te à terra como um corpo feminino.
HElena: Em vários mitos é.
Inês: E no teu mito?
HElena: No meu mito pessoal.... boa pergunta! Ao trabalhar esse feminino, claro que trabalhei também a minha relação com a terra. Mas acho que não. Não quero dar um género à natureza. O que realmente estive a trabalhar foram os mitos, que na história da humanidade fazem parte de um todo. É muito mais amplo, a vivência do sagrado do ser humano. Não pretendo atribuir um género a um elemento natural, mas acho interessante trabalhar estes mitos que por muito tempo explicaram ao ser humano porque é que estamos na terra. Nesta ideia feminina de uma terra que acolhe, que dá frutos, encontramos várias tradições antigas de vários povos em que as crianças nasciam para serem postas na terra, e em vários povos as pessoas eram sepultadas na forma fetal, existe esse lado da terra, ao qual não sou indiferente, mas não é a minha visão pessoal. Interessa-me mais trabalhar porque é que é um motivo forte e persistente na nossa história com o sagrado.
Inês: Então e estas esculturas (fig.8)?
HElena: A ideia é fazer uma instalação grande com elas. São de vidro, que cortei e pintei à mão, sempre a partir das formas das negrelas e das feridas do episódio do ‘Il Denti della Terra’. Já trabalhei o vidro em projetos passados, com vidro de cor, e tem a ver com o que aprendi sobre o teatro de sombras, mas que também lembra um pouco os vidros das igrejas. A base é de argila de cá, e é uma oportunidade de trabalhar esta relação entre paisagem e ferida, o corpo, o sacrifício, o gesto de inserir na terra esse vidro que corta, o vidro que também tem a sua fragilidade. A forma também me lembra os menires, ou aqueles círculos de pedras, que aqui em Portugal há muito. Eu queria visitar o Cromeleque dos Almendres por exemplo, mas sei que há muitos outros. Acho muito fascinante, que no mundo inteiro exista o mesmo tipo de monumento em lugares tão distantes.
Inês: Já me disseste um pouco porque é que escolheste o vidro, mas na sua materialidade, podes expandir mais porque escolheste este material?
HElena: Vem um pouco da minha procura de ligação com trabalhos que tinha feito anteriormente. Eu trabalho o vidro num universo em que me interessa o conceito de duplo, ou seja, aquilo que se cria de um original, mas que por vezes se torna mais forte do que o original (fig.9). E eu acho que isso é o que acontece nas projeções, nas sombras... e como estudei teatro de sombras - que tem um pouco a ver com práticas antigas humanas – o vidro enquadra-se bem no âmbito do sagrado e neste caso específico, porque me lembrava os vidros das igrejas também.
Inês: Já tens ideias para outras coisas?
HElena: Sim tenho várias ideias, mas interessa-me continuar a aprofundar o trabalho com a luz, a sombra, a projeção, o vidro. Gostava de aprender a trabalhar o vidro. É um dos caminhos, mas conceptualmente ainda me falta navegar outros discursos que me interessam.