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LIONEL CRUET
SÉRGIO PARREIRA
01/03/2020
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Lionel Cruet é um artista visual nascido em Porto Rico e actualmente sediado em Nova Iorque. Trabalha sobretudo com meios digitais e instalações audiovisuais, tendo recebido em 2013 o prémio audiovisual Juan Downey na Bienal de Artes Mediales de Santiago do Chile. Desde então tem participado em inúmeras exposições colectivas e projectos nos Estados Unidos e na América Latina. Além da sua prática artística, Lionel Cruet também trabalha na área do ensino das artes para o Departamento de Educação de Nova Iorque, sobretudo com as comunidades imigrantes que chegam à cidade.
Em conversa com Sérgio Parreira, Lionel Cruet fala-nos da sua última exposição, resultado de pesquisas sobre as “economias da catástrofe”, assim como do seu processo colaborativo de trabalho em estúdio, da sua imagética e dos seus projectos actuais, que se debruçam sobre “a temática das mudanças climáticas, o conceito de novas geografias, paisagens alteradas e ainda perceções de espaço na era digital.”
Por Sérgio Parreira
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SP: Atualmente tens um conjunto de trabalhos numa exposição coletiva que inaugurou no passado dia 15 de Fevereiro na Fraction Art Projects em Nova Iorque / Harlem. Fala-me um pouco desta série de trabalhos e a que se referem?
LC: Os trabalhos que apresento nesta exposição têm o título de Floods Aftermath and Other Hurricane Stories, 2015 (Histórias de furacões e as Consequências das Inundações), em que usei como superfície de trabalho / pintura as indesejadas e pouco populares lonas azuis. O primeiro conjunto é composto por quatro pinturas que descrevem uma sequência de paisagens tropicais interligadas narrativamente – paisagens quase que submersas – executadas de forma muito obscura com recurso apenas ao preto. Em cada um destes trabalhos vê-se uma casa que emerge da paisagem inundada, relembrando os espaços habitados que permanecem após catástrofes naturais. Cada casa nestas pinturas é rompida por uma tonalidade mais clara, luz, que desenha a forma das janelas. O ressurgimento de uma luz que imana do interior desta casa e se reflete nas águas circundantes, oferece uma nova perspetiva ao espetador e facilita uma nova leitura destes espaços. Estes trabalhos são resultado de uma pesquisa sobre as “economias da catástrofe” e daí o uso das lonas azuis que são uma alusão direta aos materiais usados como solução temporária de proteção arquitetónica e que acaba por pintar as paisagens com um género de remendos azulados. As pinturas mais recentes fazem parte de um conjunto de quatro e são deste ano de 2020 e uma continuação da série de 2015. Nestas últimas, as pinceladas sugerem o movimento de derramamentos de terra e buracos, assim como uma dramatização de um céu repleto de nuvens. No entanto, todas elas têm o mesmo título: todas elas se referem a histórias de desastres naturais e sugerem uma reflexão sobre as mudanças climáticas. Como devemos agir após a transformação das paisagens por estes fenómenos? De um ponto de vista mais pragmático: Quem são aqueles que acabam por beneficiar destes desastres e que produzem estas lonas azuis? Estas são apenas algumas questões que quero levantar com estes trabalhos.
SP: Existe uma relação desta série em particular com o teu restante trabalho?
LC: Tanto para mim como para os restantes membros do meu estúdio, todos os projetos, trabalhos, e a prática artística, são construídos numa relação intrínseca, havendo sempre uma extensão conceptual que transita do processo de pesquisa para a concretização propriamente dita.
SP: Antes de avançar, queria que me esclarecesses o que queres dizer com “os membros do meu estúdio”? Trabalhas com um coletivo ou estás a referir-te a alguém ou algumas pessoas que são teus colaboradores e ajudam na execução das tuas obras?
LC: O que quero dizer é que cada vez que tenho um projeto novo para concretizar, forma-se uma equipa, composta por pessoas que já são membros do meu estúdio. Cada um assume diferentes tarefas, desde logística, instalação, promoção, comunicação, etc. Acredito que uma ou várias ideias devem ser questionadas e discutidas, e este processo é facilitado e é muito mais interessante quando se pode contar com um grupo diverso de pessoas. Não lhe chamaria coletivo pois dependendo de cada projeto, as pessoas que se juntam podem também ser diferentes.
SP: Acho bastante curioso o que referiste em relação à lona azul que aparentemente tem um impacto bastante acentuado em “cenários de catástrofe”. Podes esclarecer em que sentido? E que solução arquitetónica é essa a que também te referiste?
LC: As lonas azuis já são usadas há imenso tempo; é um material comumente utilizado a nível mundial, e vê-se bastante em fábricas, quintas, sacos de plástico, um pouco em todo o lado, pois acaba por ser muito versátil, se é que é possível denominá-lo dessa maneira. Aquilo a que me refiro em concreto é ao facto de que este material faz sempre parte dos “kits” de emergência oferecidos às populações após uma qualquer catástrofe natural. Em Porto Rico, este material tornou-se parte da paisagem “pintando” as casas de quase todas as pessoas, pois acaba também por ser o material mais acessível em termos de custo, para cobrir os telhados das casas que foram danificados pelas tempestades. Por vezes é mesmo utilizado para construção temporária de paredes ou um género de tendas que possam oferecer abrigo. Eu tive oportunidade de presenciar e documentar a transformação da paisagem como resultado desta solução / aplicação. Trabalhar com este material como superfície de pintura, acaba por ser um pouco sentimental pois está repleto de significados e outras conotações de funcionalidade que as pessoas lhe atribuem, e não é certamente uma superfície tradicional de pintura.
Floods Aftermath and Other Hurricane Stories I, 2020, acrylic and house paint on polyethylene blue tarp, 96 × 72 in; 243.8 × 182.9 cm, © Lionel Cruet, 2020. Image by RUBBER FACTORY, Lionel Cruet Studio
SP: És oriundo de Porto Rico (Território Desincorporado dos Estados Unidos); descreve-me um pouco as tuas origens e como ainda te manténs ligado a elas.
LC: Sim! Eu nasci e fiz grande parte dos meus estudos em Porto Rico e mudei-me para Nova Iorque já na idade adulta. Continuo imensamente ligado à ilha, pois toda a minha família está lá e tanto eu como os restantes membros do meu estúdio temos uma grande ligação emocional com a ilha. Grande parte da minha vida foi e ainda é passada em contato com a natureza, ecossistemas e locais de certa maneira mais distantes, e este facto acaba necessariamente por se refletir no meu trabalho.
SP: Deduzo, corrige-me por favor se estiver errado, que a tropicalidade que mencionaste anteriormente, assim como os desastres e paisagens pós-catástrofe, estão diretamente relacionadas com Porto Rico?
LC: Eu diria que são terminologias mais abrangentes, que se relacionam e associam a um acontecimento que não é necessariamente exclusivo a um único local. Quando me refiro a trópicos, isto deve ser entendido pelo conjunto dos ecossistemas mundiais que se caraterizam pela incidência de determinadas condições: cada qual experiência conjunturas que são particulares à sua localização geográfica e estatuto político. Por exemplo, a zona norte do Brasil e partes das caraíbas, incluem-se nos trópicos oeste, assim como a Malásia ou a Indonésia. Por vezes partilham a mesma tipologia de paisagem e desafios semelhantes que geram novas formas/estratégias de sobrevivência. Estas são temáticas que me são muito queridas. As séries a que nos referimos no início podem ser rapidamente identificadas por todos aqueles que partilham e habitam a mesma tipologia de paisagem natural.
SP: Creio que a primeira vez que tive contato com uma obra tua foi quando vi a instalação “Entre Nosotros II (Between Us)”, tratava-se de uma instalação correto? Podes descrever-me um pouco o conceito por trás desta obra e também como foi o processo de produção e materialização?
LC: Entre Nosotros II (Between Us) 2017, como referiste corretamente, tratava-se de uma instalação, parte integrante de um projeto cocriado com a Sofia Reeser del Rio. Ambos criámos o conceito e agilizámos a logística do projeto que tiveste oportunidade de visitar. Na altura tínhamos reunido uma imensidão de dados científicos e sociais de pesquisas sobre o estado dos oceanos, a situação dos migrantes, as fronteiras marítimas, rituais culturais, entre outros tópicos. Também tínhamos interesse em explorar a referência de determinados materiais que já tínhamos utilizado anteriormente. É exemplo disto, o pôr-do-sol seccionado que segue a mesma estética da série de impressões Fractured Light produzidas em 2015. Para mim e para a Sofia, a praia é um “território” que sempre foi uma parte integrante das nossas vidas e ter a oportunidade para explorar metaforicamente este universo numa instalação participativa revelou-se uma extraordinária motivação.
SP: Ao olhar para diferentes imagens de projetos teus, existe um elemento iconográfico recorrente: a palmeira. Para além do que já referenciaste, és capaz de sintetizar o significado desta forte referência no teu trabalho?
LC: É um elemento iconográfico, mas que eu gostaria de destacar como elemento de unidade. Eu costumo descrever que o trabalho que produzo se desenrola em capítulos, em que um é a continuação do anterior, numa edificação sementada.
SP: Ou ainda o sol, o vento, a água e o mar…
LC: Vou explicá-los individualmente. O Sol é crucial para a vida na terra e eu sempre tive um particular fascínio pela ideia filosófica de Platão e da alegoria da caverna inicialmente exposta em A República. A ideia de que os seres humanos estão encerrados numa caverna e que a única forma que têm de entender o mundo é através de uma sombra projetada do objeto original… É para mim um ponto de partida absolutamente extraordinário! O Sol como luz que incendeia e que está distante num qualquer ponto exterior à caverna. O fogo é também ele uma menção recorrente na minha imagética. O vento é atmosfera e eu traduzo-o habitualmente nas minhas instalações através de som, ao qual adiciono ainda a água, todos eles formam um conjunto de elementos que no fundo se interligam e traduzem o meu universo conceptual de intenções.
SP: Um pouco na sequência do entendimento da temática e referências de unidade ou iconográficas, consideras que o elemento da figura humana tem alguma importância no teu imaginário? “Permites” ou convidas a presença “humana” a povoar as tuas “paisagens paradisíacas”?
LC: Posso afirmar que a presença de uma audiência é absolutamente indispensável. Mas também depende dos projetos, há casos em que a audiência faz parte da obra mesmo antes desta estar finalizada e através do recurso a estratégias pré-participativas. Nenhum dos trabalhos, sejam estes mais gráficos ou espaciais, tem a presença de humanos embebidos na obra, por vezes, podemos identificar essa presença através do auxílio de outros elementos como será o caso do som. Não quero distrair o espetador da mensagem primordial e que eu no fundo desejo que seja discutida. Sinto que atualmente vivemos uma crise de representação e eu não desejo que o meu trabalho contribua para essa problemática. Por outro lado, eu não lhe chamaria “paradisíaca” porque esse termo ilustra um certo idealismo e conotação com o perfeito e estabilidade, na forma mais banal, superficial e religiosa, que acaba por ser exatamente o oposto daquilo que eu procuro. O meu trabalho subverte essas mesmas ideias, explora referências metafóricas, problemáticas e mitigações entre o ser humano e o ambiente.
SP: Entendo perfeitamente a tua perspetiva, no entanto, comumente, palmeiras, o sol, luminoso e acolhedor, o mar e as ondas, tende a reportar-nos para o “Paraíso”. Eu arriscava dizer que essa é também a imagem e referência da grande maioria das pessoas, um destino idílico de férias… mais ainda, tem uma conotação com prazer e conforto…
LC: No que respeita ao meu trabalho, essas imagens estão dissociadas desse contexto, por vezes obscuras e usadas como referência para outras coisas; os elementos que referiste nunca se encontram isolados, mas sim intersectam-se com outros apontamentos pictóricos e mesmo sons que acabam por modificar qualquer ideia preconcebida. Tenho exemplos em que as audiências nos reportaram sensações de desconforto ao entrar e explorar os trabalhos. Um exemplo interessante disso e que aconteceu não há muito tempo foi com a instalação Making Windows on Walls, 2015 apresentada na exposição “Isla Imaginaria” com curadoria de Natalia Viera Salgado. Recordo-me que imensas pessoas saiam da exposição bastante emocionadas, quase que a chorar, reagindo de forma bastante intensa ao projeto. Regressando um pouco atrás, e à noção de “paraíso”, gostava de referenciar a publicação de Krista A. Thomson - An Eye for the Tropics (Duke University Press 2006) (Um Olho pelos Trópicos – Publicações Duke University Press 2006). Neste texto, o autor desmascara precisamente esta noção de paraíso “tropical” em relação às ilhas das Caraíbas e explora a história da região e as implicações da criação desta imagética imaginária que data aos anos de 1880; precisamente com a imagem das palmeiras, praias de areias brancas, luminosas e limpas, águas quentes e puras, que acabou por suportar a indústria turística e desde então ficaram gravadas no subconsciente coletivo. Desvendar estas imagens e ícones individualmente ajuda a criar uma perspetiva alternativa e mais realista, necessariamente importante.
SP: No ano passado tiveste uma instalação de arte pública no Socrates Sculpture Park em Nova Iorque, Queens, como parte integrante do programa deles de artes visuais, que é dedicado a artistas emergentes, meia-carreira, e renome internacionais. O trabalho que apresentaste tinha uma vertente participativa e contava em grande parte com activação através da intervenção do público: Como foi a execução deste projeto e como correu a interação com o público?
LC: É verdade, e parece que foi o ano passado, mas teve início no final de 2018 e prolongou-se até ao início de 2019. O programa disponibiliza um orçamento de criação para uma obra que depois inaugura e fica exposta alguns meses no parque. A minha motivação foi imediatamente a de criar algo que tivesse a capacidade de cativar os visitantes diários do parque à semelhança com alguns projetos que tinha desenvolvido anteriormente. Este projeto foi particularmente complicado em termos técnicos pois à semelhança de anteriores este também teve uma vertente tecnológica, mas ficaria exposto aos elementos num espaço público. Depois de umas sessões intensas de brainstorming, o projeto Reverb Space nasceu, uma instalação multissensorial num formato cúbico que convidava os espetadores a entrar. Cada “parede” deste cubo quando tocada tinha a capacidade de produzir sons minimalistas e abstratos oriundos de instrumentos musicais. O chão da instalação estava coberto de areia e outras partes das obras eram construídas com materiais translúcidos que serviam de filtro luminoso que interagia com a luminosidade ao longo do dia.
SP: Para além da tua prática enquanto artista, tens vindo ao longo dos últimos anos a trabalhar como professor / educador, para o Departamento de Educação de Nova Iorque. Como é que este trabalho contamina a tua prática artística?
LC: Sim, é verdade, tenho lecionado na área das artes nos últimos dez anos, para privados, associações sem fins lucrativos e também governamentais, uma experiência que me tem enriquecido imenso. O meu trabalho sempre teve uma vertente de investigação e esta faceta académica acaba por fazer todo o sentido e contribuir também para a minha criação individual. Na grande maioria das vezes o meu trabalho académico está relacionado com as comunidades imigrantes que chegaram recentemente a Nova Iorque. Eu desenho e implemento um currículo focado na apreciação e sensibilidade estética, artes visuais e justiça social. É seguramente uma continuidade da minha prática artística e muitas das vezes estes indivíduos tornam-se participantes ativos na criação dos meus trabalhos. Na área da educação há sempre uma discussão aberta na procura de modelos otimizados que facilitem o crescimento, envolvimento e comunicação de ideias ou conceitos. Num projeto artístico, o processo acaba por ser muito semelhante, seja este uma instalação ou uma produção mais gráfica.
SP: Queres partilhar os projetos que tens atualmente em curso?
LC: Sim, há sempre bastante a acontecer! Neste momento eu diria que estou a delinear uma série de objetivos, projetos, parcerias, e atividades para os próximos dois anos. No último ano trabalhei com múltiplos projetos, exposições e residências, como foi o caso da TrueQue Residencia no Equador, uma exposição coletiva nos Hamptons NY East End Culture Club, a exposição 'Geografias de lo singular' com curadoria da Ana Rosa Valdez para o Funka Fest no Equador, durante o verão estive em Berlim no programa de exposições Kulturschöpfer. No final do ano passado participei na exposição "The Syncope" com curadoria da Kathie Halfin no Bronx River Art Center e ainda na exposição "Bootleg" com curadoria e organização do DOC! Paris e a embaixada Francesa em Nova Iorque. Os projetos para este ano estão um pouco na continuidade do trabalho desenvolvido em 2019. Simultaneamente, estou a trabalhar em conjunto com alguns membros da minha equipa em painéis de investigação sobre a temática das mudanças climáticas, o conceito de novas geografias, paisagens alteradas e ainda perceções de espaço na era digital.
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