|
SAMUEL SILVA
CATARINA REAL
09/01/2021
Samuel Silva (Santo Tirso, 1983) é um artista que tem vindo a ocupar o espaço híbrido entre a criação artística e a educação, com um percurso de prática e investigação de modos de relação da arte e seu contexto social e político. A Artecapital conversou com o Samuel via videochamada, para ter um pouco mais de acesso a este estimulante percurso e pensamento, muitas vezes afastado de uma maior exposição mediática.
Por Catarina Real
>>>
CR: Gosto sempre muito das tuas histórias, e da tua forma de contar e associar momentos e recordações. Lembrando-me de histórias que já me contaste - de momentos que viveste e que foram sendo perpetuadas também por mim, que as contei a outras pessoas - pergunto-te quais as frases, as pessoas, as histórias que mais te fizeram rever o teu posicionamento ou posicionalidade?
SS: Sempre que recordo as pessoas que me foram marcando ao longo do meu percurso, a minha consciência é tomada de assalto por diversos episódios, frases, imagens ou perguntas desconcertantes a que não soube responder ou que me obrigaram a “levantar a cabeça” para lá das minhas firmes convicções. Fui colecionando assim uma série de acontecimentos que mais parecem “pedras no sapato”, que volta e meia me vão avisando da sua presença. Um desses episódios está dúvida relacionado com um dos meus professores de escultura, o Carlos Barreira. Na altura em que estudei escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, o curso, apesar de alguns sinais de abertura à contemporaneidade por parte de professores mais jovens, ainda se caracterizava por uma forte matriz tradicional, iminentemente ligado ao saber fazer oficinal. O Carlos Barreira muito embora tivesse um espírito livre representava ainda, até pela sua figura carismática, a velha tradição dos mestres, era a imagem do mestre de escultura. Era uma pessoa com génio difícil, de poucas palavras mas simultaneamente delicada, generosa e de uma sensibilidade especial. Na altura realizávamos com o professor uma série de conversas prévias ao desenvolvimento dos projectos, que foram sempre muito produtivas para mim. Numa dessas conversas, perguntou-me então o Carlos Barreira: “Olha lá, tu queres ser artista?” E eu depois de engolir em seco respondi que achava que sim. Disse-me então de chofre que se quisesse ser artista tinha de apertar os atacadores todos os dias de uma forma diferente. Esta frase tão simples quanto fecunda de sentido guardei-a comigo e nunca mais me esqueci. Outra frase que guardei veio de outra pessoa também muito importante no meu percurso: a pintora e professora Elvira Leite. Conheci-a em Serralves, na altura ainda muito jovem, quando fui trabalhar para o Serviço Educativo. A Elvira era consultora do Museu e íamos tendo reuniões com ela. Desde o início que houve uma empatia muito grande entre nós, e com o tempo a relação foi evoluindo e ela ia-me sempre desafiando a fazer novos projectos. A certa altura no meio de uma conversa questionou-me assim: “Samuel, qual é o teu compromisso social?” E eu... quer dizer, já tinha feito a licenciatura, mas durante a minha formação nunca ninguém me obrigou a pensar ou posicionar politicamente. Era um ensino bastante formalista e arriscaria a dizer despolitizado. Talvez no mestrado de Práticas Artísticas Contemporâneas - que fiz na mesma faculdade mais tarde - tenha sido orientado nesse sentido, sobretudo com um Professor que me marcou profundamente – o artista Fernando José Pereira -, mas na altura ainda não estava no mestrado e foi muito importante que a Elvira me tivesse colocado essa pergunta, à qual não soube responder. A partir daí a minha prática artística e toda a minha acção se transformou, sem dúvida alguma. A questão social foi fundamental a esse desvio. Essa pergunta representa, de algum modo, tudo aquilo que a Elvira trouxe à minha consciência; o valor humanista da educação, sobretudo da educação artística, a importância do empenhamento dos artistas na sociedade, e todas as questões políticas adjacentes a isso. Por outro lado o João Sousa Cardoso, orientador do meu doutoramento, que é uma pessoa muito empenhada politicamente e muito radical no seu posicionamento, foi importante quando me disse que devia radicalizar a minha prática, assumindo justamente estes processos híbridos entre criação artística e ambientes educativos. Eu confesso que não me sinto - e que não sou mesmo! - um homem de radicalismos. Sou até bastante moderado. No entanto radicalizar aqui foi dito no sentido de clarificar e não no de introduzir algum tipo de tensão ou conflito. Trazer eficácia à acção e ao pensamento. Muitas vezes essa radicalização vem na tomada de decisão: decidir é escolher por um caminho e não por outro. Qualquer escolha traz um empobrecimento associado, porque se deixa cair uma opção. E isso faz parecer que radicalizar é, de algum modo, empobrecer, mas é também ganhar em eficácia e clareza. Falo muito sobre isso aos meus estudantes e tento trazê-lo também à minha prática artística, e em parte por essa influência do João. Será justo nomear também aqui a importância do Fernando Pinto Coelho. Foi uma pessoa que me marcou em vários domínios, mas houve um decisivo: o fascínio pela origem das palavras, pela etimologia, que no fundo é também uma forma de radicalizar, porque se trata de procurar o radical, a origem das coisas. A etimologia é um assunto pelo qual sou completamente fascinado.
CR: O que é que os outros representam no teu trabalho, onde, da prática artística ao ensino, estão invariavelmente presentes?
SS: Na nossa formação académica, mas também na nossa prática artística tendemos a pensar e a actuar muito sobre um único paradigma maniqueísta: sou eu e o outro, o artista e o público... Há uma tendência digamos dualista. Essa é uma das coisas com que fui trabalhando no campo da educação não-formal, onde a relação com o outro se equaciona (a maior parte das vezes) num campo mais fluído, afectivo e relacional. A experiência educativa em Museus de Arte Contemporânea transformou muito a minha forma de me posicionar enquanto artista plástico. Não gosto de pensar que há, por um lado, um modelo de inspiração romântica do artista genial e solitário e, por outro, os artistas relacionais, que trabalham em contextos de desenvolvimento social. Prefiro pensar que o fazer artístico é, na sua globalidade, relacional. Ou seja, mesmo aquele artista que supostamente se isola no atelier relaciona-se e interage; com o colega para uma discussão, o lojista, o senhor da drogaria, o carpinteiro, o curador, o designer, o fotógrafo, etc. Nunca existiria processo artístico sem relação, isento de relações. Partindo desse prisma, de que toda a arte é relacional, prefiro sempre falar a partir de uma ideia de fluxo, de organicidade, entre os seus intervenientes e sobretudo de diferentes modos, tempos e espaços de relação e fruição dos projectos artísticos.
A maioria das vezes o outro, dito espectador na tal perspectiva estática da recepção, aparece no fim como figura anónima e contemplativa, mas pode também aparecer no início ou mesmo interferir no meio de uma fase projectual. Para não ficar assim em abstracto, posso dizer que sou, tendencialmente, alguém que se interessa pelo outro enquanto pessoa, pela relação com uma identidade, uma história, um modo de existir e de ver o mundo e portanto, inevitavelmente, o meu trabalho passou desde o início por processos que envolviam pessoas. Os modos de relação podem também ter diferentes níveis de profundidade; alguém que aparece e só interage, alguém que participa no movimento de trabalho ou alguém que está numa relação mais profunda e que traz da sua subjectividade ao próprio projecto e o amplia, ampliando-se da mesma forma a si também. São níveis de relação, abertura e reconhecimento do outro muito distintos. Pensar esta entidade complexa, heterogénea e muitas vezes indefinida, o “outro”, numa perspectiva dinâmica e plural é obviamente difícil. De referir que estes processos inclusivos nem sempre (ou quase nunca) são isentos de conflitos. A conflitualidade e o antagonismo são fundamentais na estruturação de uma comunidade que se forma num processo de trabalho mesmo que temporariamente.
Uma das obras que mais me afectou nos últimos tempos foi um trabalho do Jeremy Deller, que vi em Munster na última edição da Skulptur Projeckt Munster. Foi um projecto que durou dez anos, em que ele trabalhou com um grupo de pessoas numas hortas comunitárias dos arredores da cidade. Ele explica a origem da história de formação destas comunidades relacionando-as com o período de reconstrução pós-II guerra em que há um êxodo para as cidades, sobretudo na Alemanha. As pessoas traziam os hábitos agrícolas e passavam a ter essas pequenas hortas, ligadas a uma espécie de economia de subsistência, dentro das cidades. Hoje em dia os espaços das hortas permanecem, mas são sobretudo utilizadas por pessoas reformadas, que necessitam de fazer o movimento contrário: uma fuga da cidade e dos seus processos inerentes de isolamento e exclusão dos mais velhos. Este segmento de pessoas encontram diariamente naquele exíguo território rural onde fazem jardinagem e outras pequenas actividades agrícolas, lugar de convivência e humanização. Passou a existir uma ligação mais espiritual, que substituiu a mera subsistência. Ele convidou estas pessoas, das hortas, a desenvolver um livro-diário: entregou um livro a cada uma destas famílias e durante dez anos as pessoas foram fazendo registos; de festas de aniversários, do nascimento das primeiras flores, de pequenos insectos, etc… e depois, como o Skulptur Projekt Münster acontece apenas de dez em dez anos, passado uma década, o trabalho teve uma exposição num pequeno casebre dentro das hortas. A obra apresentada era, no fundo, os livros dispostos dentro desse casinhoto precário, como muitas outros que lá estavam. Chegavas lá, tinhas chá, umas bolachinhas e podias consultar esses livros. O que era mais curioso era que quem te acolhia e quem te mostrava os livros eram as próprias pessoas que os tinham criado, neste caso os casais de idosos. Na altura fui com o Manuel [o filho mais velho de Samuel], que devia ter dois meses, e as pessoas engraçaram com ele, e convidaram-nos para lanchar... Fiquei a pensar muito naquele trabalho. É um trabalho de um único artista, no sentido autoral, em que a certa altura ele faz uma transferência do projecto para um grupo de pessoas, que desenvolve esse trabalho autonomamente. Ou seja, a certa altura o artista demite-se do processo de trabalho, e aí a obra ganha uma existência autónoma. Existe no outro, nos outros. São processos, fluxos de transferência de autoria. Como este, há muitos outros artistas e processos, mas se pensarmos numa linhagem que vem de Joseph Beuys, passa por Thomas Hirschhorn, e vai desembocar em Jeremy Deller entre outros mais recentes...são todos artistas com quem me identifico e que identifico esta ideia de fluxo. Cada vez mais me interessam estas ideias de movimento, fluxo, trânsito, transferência...
Não sei se respondi à pergunta mas, como vês, o outro interessa-me. Interessa-me na medida em que eu existo porque me relaciono. Acho que mesmo quem escreve um diário, na sua intimidade mais solitária... acredito que um diário é sempre um monólogo que deseja ser lido por alguém e nesse sentido é um diálogo com o outro, com o outro num futuro.
Não existe arte ou poesia se não existir relação.
CR: Enquanto professor achas que consegues ensinar essa des-autoria? Ou transmitir essa vontade de fluxo?
SS: Antes da desautoria, expressão que não uso, e dessas problemáticas está a questão do ensinar... [riso]
Nós sabemos que se ensinam coisas, a escola ensina coisas. Não alinho muito no discurso de que não existe ensino, ou de que somos todos pares e só partilhamos coisas. Bom, também mas não só. Mas pessoalmente não tenho nada contra a palavra ensinar, nem contra a a ideia de escola, nem mesmo contra processos verticais de ensino-aprendizagem. É muito curioso a este respeito colocar o pensamento de Ranciére e de Steiner. Enquanto que o Ranciére aborda esta questão no “Espectador emancipado” ou no “Mestre ignorante”... desses processos de desnivelamento do ensino-aprendizagem, Steiner simultaneamente fala-nos da importância de que o conhecimento deve ser de difícil alcance, que se deve incutir no aluno uma ideia de esforço e de superação da dificuldade. Fui a estes dois autores para dizer que acho que a escola deve ensinar coisas, consciente de que a partir de determinado nível de maturidade, o professor deve igualmente demitir-se, ou começar o processo de demissão. Não da relação, mas de uma presença totalizadora e dominante do processo de aprendizagem. O professor é aquele que, parafraseando Deleuze, faz com o que o aluno seja feliz na sua solidão. Ou seja, aquilo que o professor deve ambicionar é a felicidade dos seus alunos na experiência da solidão. Ajudar os alunos a terem confiança naquilo em que pensam, mesmo que isso implique ficarem sós. Devemos procurar que o aluno pense por si próprio: se emancipe. Sobretudo em escolas de arte, isto é absolutamente fundamental; que sejamos capazes de fazer com que o aluno, o aspirante a autor, encontre as suas verdadeiras inquietações. É um trabalho lento. Todos os alunos devem encontrar esse caminho que é, parcialmente, solitário, mesmo que o trabalho não o seja.
Portanto, quando falas da educação à desautoria, não sei bem do que falas. A etimologia da palavra autor vem de auctoritas, da ideia de que a sabedoria e o conhecimento conferem autoridade. Possui autoridade quem sabe, isto é, aquele que consegue aceder ao fundo das coisas e das situações de modo mais penetrante que os demais. Não se trata de submeter a vontade individual a uma vontade alheia. Isso seria uma forma de poder. Pelo contrário, interessa-me a significação contrária, que vem do étimo augeo, augere ou seja aumentar, acrescentar, alargar. Portanto aquele que aumenta e transborda, estimulando os outros a crescer, é o autor. Interessa-me enquanto professor fazer com que alguém procure a sua identidade, a sua origem. Procure a sua origem como a profundidade das coisas. Então, acho que ensino para formar autores: para que alguém seja um autor, procure a sua origem, cresça a partir dela e transborde.
CR: Escolhi algumas obras para podermos falar de forma mais concreta. Comecemos pelo texto-poema “Explicações do desenho”, de 2018, que agora cito:
“Desenhar é fazer um risco sozinho.
É uma conquista dentro de si.
Ensinar a desenhar é tornar esse alcance pertença de alguém.
Aprender a desenhar é abrirmo-nos ao risco dos outros.”
Mesmo sem querer, este primeiro verso vem encontrar a nossa conversa; “Desenhar é fazer um risco sozinho”.
SS: Escrevi este texto quando dei aulas de desenho na Escola Superior de Educação. Levei muito a sério o desafio de ensinar desenho. Tanto que, não havendo este hábito porque era uma escola de educação e não de belas artes, quis que se mostrassem os desenhos no final do ano. Como não havia um espaço expositivo dentro da Escola onde o pudéssemos fazer, utilizámos o átrio do elevador, onde as pessoas estão na situação de espera. Foi para essa exposição que eu escrevi este poema. Estas frases, por si, mostram muito bem a forma como eu entendo o desenho e como me posicionei durante aquelas aulas. E tens aqui tudo que diz respeito ao mergulho dentro de nós para transbordarmos.
CR: Encontra-se no teu trabalho uma coerência interna, não-formal. Que vem dos sítios onde, talvez, a ética se aloca. Selecionei conjuntamente “Keep looking for things in places where there is nothing” que está a ser realizado desde 2019 e “Working at work (formulações sobre esculturas involuntárias)” de 2018, para podermos relacionar.
SS: Foste muito perspicaz nessa relação porque eles são quase a mesma coisa, partilham a mesma natureza. “Working at work” surgiu como uma estratégia de escape. Comecei-o durante um período da minha vida muito assoberbado (apesar de o ter exposto em 2018 ele é muito anterior) de aulas, doutoramento, visitas guiadas. Sentia, na altura, que estava a perder espaço para pensar a minha prática artística. E então passei a fazer fotografias de pequenas coisas que encontrava, encontros súbitos. Situações, vestígios de acções... Engenhos transitórios, coisas que me criavam uma tensão. Relacionavam-se, estas fotografias, com um modo de olhar, sobretudo. O título vem de Rauschenberg, creio, com esta ideia de trabalhar dentro do trabalho. Então este projecto é a documentação de esculturas involuntárias (parafraseando Brassai), encontros súbitos, pequenas tensões do dia a dia. Fui coleccionando. Está relacionado também com várias leituras que vinha a fazer, desde Tolentino de Mendonça, com a ideia de reparar, a Georges Perec. Há um livro do Perec fascinante que é “Uma Tentativa de Esgotamento de um Lugar Parisiense”, em que Perec se sentou durante três dias numa esplanada de Paris e foi fazendo apenas anotações, muito precisas, do que via na praça. O que lemos nesse livro são fotografias escritas. São imagens. A atenção de Perec vai caminhando para o detalhe, há uma economia ou melhor uma ecologia da atenção há medida que os dias passam. O livro é fascinante por essa razão, a de nos colocar perante o desafio, que hoje todos os artistas enfrentam, que é o de parar a vertigem da aceleração. A necessidade de recuar e parar. O que ele faz é parar o olhar. E assim dá-lhe profundidade. Foi uma referência muito forte para estes trabalhos.
“Keep looking for things in places where there is nothing” é um título que vem do Jonas Mekas. Há um filme, “As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”, em que ele faz uma compilação de cinco horas de várias filmagens. Ele tinha este hábito diarístico de filmar e neste filme colou pedaços da sua vida, de uma forma não cronológica. Por cima dessas imagens há um guião onde ele comenta as imagens. A certa altura ele diz essa frase: “Continua a olhar para lugares onde nada acontece”. Para mim, que andava com este processo de trabalho do “Working at Work” foi a tradução exacta do que perseguia e não conseguia verbalizar. A partir daí comecei a pensar no desenvolvimento de um projecto a este nível, de como inventar um olhar resistente, como elogiar a lentidão, valorizar o insignificante... Como nos podemos interessar pelas margens da atenção e olhar para esse lugares onde nada acontece e esperar apenas. São coisas que depois se articulam e a partir das quais dás uma segunda oportunidade ao olhar. E aí acontecem coisas imprevisíveis.
CR: E podemos terminar esta nossa conversa, falando sobre a tua última exposição individual, “Uma escultura-lugar para Araripina” no Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso, em 2019.
SS: Nunca imaginei ser desafiado a fazer um projecto de escultura pública, apesar de ter feito um curso de escultura [riso]. Sempre me interessaram outras práticas que não a da escultura enquanto monumento, práticas que passam por uma dimensão discursiva, imaterial ou mesmo anti- monumentais. A primeira reacção a esta convite foi um misto de medo e recusa, mas por outro lado, achei também que os contextos são passíveis de serem transformados. È uma questão de ajustamento, (re)posição ou como prefiro, invenção.
O curador deste projecto é um arqueólogo, inteligente, sensível e inspirador. O Álvaro Moreira, actual director do Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso, trabalha há vinte ou trinta anos com projectos de escultura no espaço público. O projecto consiste em desenvolver uma escultura para uma cidade no nordeste do Brasil, com a qual surgiu uma parceria, fruto de um programa de cooperação técnica entre Portugal e o Brasil. Neste caso, Santo Tirso fez uma correspondência com Araripina.
Santo Tirso estava a desenvolver um projecto de hortas comunitárias e queria ter uma cooperação técnica com uma cidade que tivesse experiência a esse nível. Em todo o Brasil, e também em Araripina, estava a acontecer um projecto de reflorestação da floresta brasileira chamado Projecto Mudas. Neste projecto ambiental cultivam árvores autóctones para que as pessoas da comunidade possam ir lá buscar para as plantarem nos seus terrenos privados. É um projecto que tem uma dimensão ambiental e utópica incrível.
Araripina queria criar o primeiro parque da cidade e desenvolver também a dimensão cultural do parque, com esculturas, etc. Santo Tirso tem essa experiência longa, de transformação social e de revitalização do espaço público através da escultura, dos parques, dos jardins, que foi o que transformou e alavancou a cidade a partir dos anos noventa. E portanto, Araripina quis aprender com a experiência de Santo Tirso. Decidiram criar o primeiro projecto de intervenção escultórica no futuro parque de Araripina, com um escultor português e com a curadoria do director do Museu de Santo Tirso. Foi assim que fui convidado pelo Álvaro.
Durante o processo eu e o Álvaro alinhamos alguns princípios de trabalho muito importantes: a ideia de que o projecto deveria obedecer a determinados pressupostos éticos, teria de garantir uma sustentabilidade de acordo com a realidade local, deveria ser sensível ao contexto social, histórico, cultural e ambiental de Araripina e finalmente possuir uma vertente relacional muito forte. Achei que o projecto tinha todas as condições para que me estreasse na escultura pública. [riso]
Fui em Julho do ano passado ao Brasil e desenhámos um plano de trabalho.
Iniciou-se com um workshop numa escola contígua a esse parque, onde pensamos com as crianças qual a escultura que eles gostariam de ver ali e a partir dos projectos deles começamos a desenhar o nosso. Este envolvimento será fundamental pois estas crianças serão os futuros frequentadores e cuidadores desse parque.
Começamos a pesquisar também quais os materiais a serem utilizados. Araripina é um dos maiores pólos gesseiros do mundo, da indústria de produção de gesso. Visitamos uma dessas minerações, onde ficamos a saber que o gesso vem de uma pedra que se chama gipsita que é extraída do subsolo deixando crateras gigantes na paisagem. Depois a pedra é aquecida para se desfazer e se tornar gesso. O processo de aquecimento é feito com recurso a combustível vegetal. Por conseguinte os responsáveis no passado pela desflorestação do nordeste do Brasil foram em certa medida os pólos gesseiros. Os donos da indústria gesseira têm uma influência enorme no poder político, de maneira que quando chegamos a Araripina disseram-nos “têm de fazer uma escultura em gipsita, que é o símbolo da nossa terra”. De forma que a nossa proposta de fazer uma intervenção no parque com um material diferente, neste caso tijolo cerâmico, foi um marco no nosso posicionamento para a intervenção. As antigas produções de tijolo que existiam em Araripina foram dizimadas pela prosperidade da indústria do gesso. Havia uma série de indústrias familiares que produziam tijolos que foram extintas, inclusive a arquitectura mais antiga em tijolo rebocado e, por isso, melhor adaptada ao calor, foi abandonada e destruída. Parte da nossa investigação foi também a elaboração de uma arqueologia da arquitectura local. Falamos de uma cidade que tem cerca de 90 anos, por isso foi relativamente fácil encontrar as primeiras manifestações arquitectónicas. Tudo isto foi um trabalho árduo de pesquisa e permanente procura... Procuramos artesãos que ainda faziam tijolinho, depois através de um artesão percebemos que havia cores de argamassa diferentes, e começamos a equacionar a dimensão cromática a aplicar na escultura. A escultura começou a formar-se como uma fenda uterina que nos leva a um espaço meio subterrâneo com ma árvore no centro.
Há em Araripina uma árvore sagrada, o umbuzeiro. Uma das razões para ser sagrada serão os seus reservatórios de água, nas raízes, que nos períodos de grande seca ficaram ligados à sobrevivência das comunidades, que iam buscar essa água para beberem. Todas as casas tinham um umbuzeiro à porta e as pessoas constroem bancos debaixo dessa árvore, recuperando essa memória ancestral do lugar de reunião, convívio e transmissão de conhecimento debaixo da árvore.
Antes da nossa ida ao Brasil, o Álvaro levou-me de visita à Serra da Aboboreira para podermos começar a pensar este projecto. Visitámos uma mamoa, uma construção com um corredor para uma urna funerária e que é um espaço de uma espiritualidade muito interessante. O Álvaro quis levar-me lá para me recordar que as primeiras transformações do território foram precisamente monumentos ligados à morte. Foi muito importante esta visão cósmica da ligação do humano com a paisagem.
Há uma coisa que me tem agradado neste projecto de longo curso, em que já estou envolvido há dois anos, e que vai aparecendo e desaparecendo: todos os dias, ou todas as semanas ou meses, há qualquer coisa que vai mudando. Comecei inclusive a fazer um livro de artista a partir destas possibilidades. A desaceleração, a espera, a experiência do tempo em processo... interessam-me cada vez mais. A escultura ainda está em processo. E não sei sequer se chegará a ser feita.
CR: Queres falar um pouco mais do livro de artista que começaste?
SS: Havia tanta documentação, da arquitectura às árvores... que a certa altura o Álvaro disse que talvez fizesse sentido fazermos um livro sobre a escultura, que se calhar é sobretudo um processo. Serviria para dar corpo a toda a investigação. Com os desenhos das crianças, também.
Mas a determinada altura abandonei esta imagem do catálogo e comecei a fazer um livro de artista, ideia que o Álvaro apoiou. Será um livro de artista para a colecção do museu, para ficar em Santo Tirso, já que a escultura vai estar no Brasil.
Este livro, que ainda não está pronto, é um livro cujo conteúdo se transforma numa exposição e que remete para todo o imaginário envolvido neste projecto de uma escultura para Araripina, que liga a ideia de árvore à ideia de dólmen e que evoluiu para um livro que se torna uma instalação.
Estão ainda várias perspectivas em aberto quanto ao que será, de facto, este livro. O que ele é, por agora, é uma tentativa de não ser apenas uma meta-obra, de ser um livro autónomo que partilha do mesmo imaginário da escultura criada para Araripina.