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TIAGO LOUREIRO
CLáUDIA HANDEM
Tiago Loureiro (n. 1995, Paços de Ferreira) desde cedo se viu rodeado de ofícios que influenciaram a sua prática artística: natural da capital do móvel, a madeira é um material recorrente, e os tecidos aparecem pela via da empresa de catering dos avós. Estes recursos aliam-se à construção de um universo fantasioso onde as temáticas do sonho e do misticismo estão presentes. O corpo constitui o alicerce para as pesquisas da ação e do movimento, com ênfase no figurino e na performance a que os objetos convidam.
Licenciado em Artes Plásticas - Multimédia e Mestre em Práticas Artísticas e Contemporâneas pela Faculdade de Belas Artes do Porto (FBAUP), articula a atividade artística com a pedagógica no Município de Felgueiras. Do seu percurso, destacam-se a exposição “As Grandes Árvores Não Ouvem” e a participação na Bienal da Maia 2023.
O ponto de partida para esta conversa surgiu no âmbito da sua exposição na Dentro (Porto), uma mostra que nos transporta tanto para o lugar dos sonhos como para fora dele.
Por Cláudia Handem
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CH: “Acorda-me quando eu estiver a sonhar” foi a tua mais recente exposição individual, que teve lugar na Dentro, em pleno centro do Porto, e que esteve patente até dia 18 de Fevereiro. Apresentaste 4 novos trabalhos sob um título curioso: “Acorda-me quando eu estiver a sonhar” pressupõe, desde logo, um confronto: uma interrupção sempre indesejável do son(h)o, mas imprescindivelmente necessária. Como surgiram Almofada, Despertador, Persistente e Pista?
TL: “Acorda-me quando eu estiver a sonhar” surge de uma inquietação que me acompanha há imenso tempo: o sonho e a necessidade de o representar. Esta exposição manifesta uma espécie de local de conforto, onde hipoteticamente só nos apercebemos que estamos quando acordamos. Procurei por uma mistura entre um lugar sagrado e uma clínica com aparelhos que nos fossem familiares e estranhos. Um espaço onde fosse ‘possível’ acordar um sonhador.
A procura por estes quatro objetos surgiu de uma necessidade em pensar numa possibilidade, ‘e se, para me acordares, utilizasses isto?’ Quase como num diálogo imaginário, numa procura por uma chamada de atenção, quando estou a sonhar acordado. Uma forma de necessitar de um terceiro, mas que este sempre dependa de algum objeto, para me encaminhar, ou desacelerar a minha caminhada. Quase como numa clínica, onde o utente é acompanhado por alguém.
A Almofada surge como um símbolo de um objeto que nos é bastante familiar. No entanto, decidi que não poderia ter um formato convencional: porque não uma almofada/colete salva-vidas? Uma almofada disfarçada de peça de vestuário, uma sugestão de um estado vulnerável, ou simplesmente um objeto que pode ser utilizado para proteger e para flutuar. Funciona como uma ilustração de um estado físico e também subconsciente. Apresento-a suspensa, numa grande cruzeta, de forma a que esta pareça um corpo a flutuar, e também a única peça que o público não consiga utilizar. Desta forma, recorri ao projeto da Dentro, articulado com a Oficina Mescla, e utilizei as impressões de risografia como um manual de possíveis instruções de utilização da almofada. Com a intenção de que este imaginário se torne um pouco mais específico no que toca ao posicionamento do público.
O Despertador é o primeiro objeto a ser construído para esta exposição. Tem a mais simples função de despertar, e também é o primeiro aparelho que é pensado para ser utilizado a pares. É no planeamento de construção deste objeto que me apercebo da necessidade interativa por parte do público. Esta escultura ilustra o gesto que imaginei, quando decidi qual seria a temática desta exposição. Estar a sonhar, ser encaminhado até ao despertador, subir a plataforma, encostar-me e aguardar até que alguém toque a campainha. Um objeto que representa a minha sensação de estar a sonhar acordado, a minha salvaguarda de que alguém me irá acordar, quando eu estiver a caminhar adormecido.
Desta forma, o Persistente aparece como um complemento do Despertador. Um reforço, caso a campainha não seja suficiente. Procuro uma conexão mais intensa por parte de quem utiliza o objeto. No meu imaginário, seria como uma última tentativa de despertar o sonhador, sentá-lo no banco, colocar o seu braço na braçadeira, e começar a agitá-lo até que acorde. Sinto que este objeto aparenta um misto de conforto e desconforto, uma vez que a sua utilização depende de uma força mais intensa exercida de uma pessoa para com outra.
A Pista foi pensada como um deambulatório, e tornou-se num pequeno percurso que obriga o retorno. A ideia de que um terceiro “permite” que o seu utente vá, mas que regresse. Quase como um caminho de volta, uma rampa que impede seguir em frente. O ato de confiar no regresso, onde o exercício a pares se divide e se torna numa mera expectativa confiada. O público, para experienciar a peça, deve percorrer a Pista, até não conseguir seguir mais em frente e ser quase forçado a voltar para trás, dando espaço e certeza à expectativa de quem ficou a observar.
CH: Mais que uma ordem, o título surge como uma salvaguarda colocada nas mãos do outro assim como o próprio desígnio das peças. Este carácter performativo, que é basilar na tua prática, é posto do lado do espectador. Interessa-te esta interação física do público com a tua obra? Sentes que ela só se completa com a sua participação ou existe por si só?
TL: Quando comecei a pensar nas peças e no espaço da galeria, apercebi-me de que não me interessava realizar peças unicamente contemplativas, nem ser eu a ativar as peças num ato performativo.
Nesta exposição, a minha intenção era que o público se sentisse convidado a interagir, de uma forma física ou simplesmente através de um imaginário, de possíveis gestos de utilização.
Sendo um espaço relativamente pequeno, fez sentido que as esculturas conseguissem envolver o público. Assim, comecei por perceber que tipo de dimensões as peças deveriam ter para transmitir esse “convite”, até que cheguei à ideia de “móveis/aparelhos”.
Apesar de serem objetos com alguma presença, devido às suas dimensões e a uma certa familiaridade, penso que esta exposição não estaria completa se o público fosse impedido de participar. Nunca foi a minha intenção que estas esculturas existissem apenas para serem vistas, porque elas próprias nasceram dessa necessidade de um gesto. Foram pensadas de forma a exercer um exercício reflexivo sobre a forma como funcionam, mas também para dar abertura à vontade de os experimentar. Daí ter procurado por transmitir um certo conforto, com os estofos e tecidos.
Interessa-me a ideia de envolver o público numa determinada atmosfera, criar espaços de auto-reflexão e sugerir pequenas narrativas. Na folha de sala da exposição, havia um pequeno folheto, que funcionava como um manual de instruções das peças, numa tentativa de reforçar a ideia de que as esculturas poderiam ser utilizadas e a que não poderia ser (Almofada), pelo menos fisicamente.
CH: O que considerei singular foi que as peças pertenciam ao limbo infindável das ambiguidades. Não o refiro como algo pejorativo. Elas estão ali mais ao serviço da imaginação, do que para se fazer o uso concreto delas; o visitante tinha que realmente adormecer, entrar num estado de sonambulismo ou transe para estar à sua completa mercê. Além disso, tinha de o fazer sentado ou em pé, numa posição em que se prevê um desequilíbrio iminente, evidenciando esse resvalar próprio dos sonhos em direção a um despertar precoce.
TL: Nesta exposição, não procurei que o público adormecesse. Aliás, com esta exposição não pretendo manifestar o ato de adormecer, mas a simulação de um ato de acordar.
Trata-se de um imaginário. E o objetivo nem seria o espectador adormecer naquele local, mas sim, deslocar-se até lá, enquanto sonhador, para despertar com ajuda daqueles aparelhos. Acabo por procurar uma visão mais poética e com um duplo sentido, o sonhar acordado e o caminhar adormecido. Nunca coloquei em hipótese o facto de algum espectador tentar adormecer naqueles aparelhos ou na exposição porque, como referes, teriam de adormecer em pé. A minha intenção é simular um momento em que ‘acordamos em pé’ ou que ‘acabamos de acordar, ali’.
Na questão de trabalhar o sonho, o ato de adormecer não é o que mais me desperta interesse. Gosto da questão do ‘desligar’, mas gosto mais de aprofundar a possibilidade do que surge depois desse ato/estado, e, consequentemente, que desperta algo no estado de vigília. A questão não palpável, o simples facto de conseguir que o público consiga simular um gesto, praticando-o, explorando-o. A ideia de ativar as peças, mas não de forma tão literal, como por exemplo, tocar na campainha do Despertador.
Nessa peça, a minha intenção é que o público, consiga posicionar-se nesse local de ‘estou a fazer isto, mas vou fingir que estou a dormir e vou acordar quando tocares a campainha’. Quase como a descoberta da narrativa, através da procura pelo estado em que a ‘personagem’ está, explorando a escultura, interpretando-a consoante o que lhes é apresentado.
Os aparelhos são, hipoteticamente, indicados para quem está a dormir e precisa de acordar, ou então, apenas voltar para trás. Como um sonâmbulo, que precisa de ser encaminhado, por exemplo.
Sinto que esta exposição funcionou quase como um guião que entreguei ao público. Onde consegui absorver as diversas formas como este se comporta. Já conseguia prever muitos dos gestos que os objetos requerem, mas foi bastante interessante passar o papel performático para o público e permitir que estas pequenas narrativas fossem interpretadas várias vezes. Quase que como um loop de exploração das esculturas, repetitivamente ativadas com os mesmos exercícios, mas com formas de atuar muito distintas.
CH: Essa componente teatral é, de facto, transversal no teu trabalho, não só na relação entre imaginação-ficção-realidade, performer-espetador-utilizador, mas tudo o que envolve o corpo e o espaço. Utilizas muito os tecidos – as camilhas para ser mais exata – seja para criar peças, figurinos ou até para (re)vestir o espaço. Fala-nos um pouco sobre esta tua eleição.
TL: As camilhas, os rodapés e os amarra-fantasmas são toalhas de mesa que me acompanham desde que me recordo. Quando era criança, os meus avós tinham uma empresa de catering e isso fez com que a minha infância fosse maioritariamente rodeada de panelas, toalhas, talheres, louças, etc…
Lembro-me desde sempre, que o que eu mais adorava era o fim das festas, o momento de desmontar as mesas e arrumar os salões. Enquanto ajudava a desamarrar os fantasmas e me cobria com eles, transportava-os para a carrinha, dançava, brincava, criava personagens e roupas. Sempre quis que essa fosse a minha tarefa nesses momentos, criar uma grande montanha com todos os tecidos dentro da carrinha e aguardar o momento de ir embora. O momento mais entusiasmante era quando eu subia para o topo da montanha das toalhas e esperava que, ao longo do caminho para casa, ela caísse, para eu voltar a fazer outro monte e voltar a subir.
Durante a minha infância e adolescência, via as camilhas como um instrumento de trabalho divertido, uma forma de criar, sem sequer saber que o estava a fazer.
Quando iniciei o meu percurso artístico, senti necessidade de explorar muitos dos fascínios que eu tinha na minha infância, toda a questão do imaginário e fantasia que sempre me preencheram a mente. Automaticamente, utilizei as camilhas como um símbolo para aceder a esse Tiago pequenino, que adorava enrolar-se nelas e observar como é que elas se moviam. Foi desta forma que as camilhas, os rodapés e os amarra-fantasmas surgiram no meu trabalho. Com o passar do tempo, os tecidos foram ganhando conotações diferentes consoante os imaginários que pretendia apresentar, vão-se transformando em peças de roupa, cortinas, atmosferas. São tecidos que recorro frequentemente pela sua versatilidade e, sobretudo, por estarem num lugar afetivo muito presente no meu crescimento.
Gosto de continuar a pensar nas camilhas da forma que sempre as vi, como um instrumento de trabalho, um símbolo das minhas memórias. Gosto de pensar nelas como um objeto que deve ser ativado de tempos a tempos. Por exemplo, uma das coisas que costumo fazer sempre que vou até alguma floresta, montanha ou rio, é levar uma camilha comigo. Aliás, o meu primeiro exercício performativo com as camilhas foi mesmo esse, dançar numa floresta com uma camilha a cobrir-me o corpo.
Talvez sejam escudos protetores, mas também são tecidos que me permitem infinitas possibilidades de atuar. De toalhas a passadeiras e mantos, de cortinas a bandeiras, as camilhas são, sem dúvida, um dos meus grandes fascínios desde que me lembro.
CH: O sentimento de proteção estende-se a outras obras que tens vindo a criar, como próteses e armaduras, sempre ligadas a um corpo que se movimenta e divaga num mundo onírico …
TL: Sim! Procuro pela ideia de armadura, ou objeto que se adapte ao meu corpo, como extensões dele. Interessa-me a ideia de “utilizar um objeto” com a intenção de que este me proporcione alguma coisa, uma materialização do meu mundo da fantasia.
Muitas das minhas próteses e armaduras surgem de necessidades físicas, como por exemplo, uma simples dor de garganta, um olho inchado… por vezes, esses objetos aparecem como uma resposta a uma questão que me está sempre presente ‘e se resultar?’, ‘e se existisse um objeto em madeira que me permitisse isto ou aquilo?’.
CH: Projetos futuros?
TL: Neste momento, estou a desenvolver figurinos para uma peça que será apresentada no Teatro Circo, em Braga. “A quinta dos animais” estreia dia 14 de Abril.
Cláudia Handem
(n. 1992, Murtosa) Licenciada e mestre em Arquitetura pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, e licenciada em Artes Plásticas - Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Desenvolve prática artística no campo do desenho e da pintura, e escreve, de forma independente, sobre exposições de arte.