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LUíS NOBRE
SÉRGIO PARREIRA
2019-10-04
Licenciado pela E.S.A.D. das Caldas da Rainha, trabalha em diversos meios tendo como base o desenho. Para ele, “o desenho é acima de tudo a marca, o registo, mas também a hipótese de algo que nunca acaba, de infinito ou nunca terminado.” Neste momento “construir desenhos que nos façam refletir no seu desaparecimento” é um caminho que está a explorar.
Nesta entrevista destaca ainda o projecto individual Desvio, nos Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2014, e onde o desenho se fundia com a paisagem. Afirma que o jogo de escalas e a elasticidade entre elas foi algo que sempre marcou o seu trabalho: “Redimensionar algo apenas pela mudança de escala, do objeto ou do espaço propõe novas reflexões, num jogo infinito entre o espaço da obra e o espaço de cada um.”
Por Sérgio Parreira
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SERGIO PARREIRA (SP): Ajuda-me a colocar o teu corpo de trabalho num grupo “plástico” ou técnica artística se passível. Consideras que será mais pintura, desenho, escultura, … todos estes? Parte?
LUIS NOBRE (LN): O desenho é a base, uma forma de pensar, que se pode expandir para a instalação e apropriar-se de outros materiais (cerâmica, madeira, ferro...).
SP: Descreve-me como começou a tua carreira como artista, os primeiros anos e depois e a tua evolução ao longo dos anos.
LN: Ter frequentado o primeiro curso de artes plásticas na ESAD das Caldas da Rainha, no início dos anos 90, num contexto social e cultural muito particular, as viagens de comboio inter e regional preencheram o meu imaginário de histórias e imagens, onde existiu a possibilidade de intervir em espaços disponíveis para a exploração artística, sem processos burocráticos que a limitasse, e afastados da ideia de white cube, em ambientes devolutos como por exemplo os Pavilhões do Parque ou a Casa da Cultura das Caldas da Rainha. Também as participações nas bienais de Escultura e Desenho deram a conhecer o meu trabalho a outros públicos. Em 1997, a exposição individual no Museu de José Malhoa, Sub. 863-874, com texto de João Miguel Fernandes Jorge marca a primeira intervenção em núcleos museológicos, num diálogo entre as esculturas de Barata Feyo e António Duarte e grandes desenhos a grafite de figuras que atravessam o universo do detalhe até uma visão mais amplificada, são criaturas que habitam um mundo com uma escala entre organismos microbiológicos e grandes répteis extintos.
Em 2005 o projeto Através da Distância Que Nos Separa, no Pavilhão Branco, reforça algumas linhas já patentes no meu percurso. A utilização da superfície e da perspetiva, tendo o desenho como catalisador comum, aparecem aqui num jogo de rebatimento entre a ideia de jardim romântico selvagem, espelhado no contexto envolvente ao pavilhão. Nos desenhos aqui apresentados a recolha de temas e elementos decorativos, por vezes exóticos, patentes nos papéis pintados do século XVIII, são aqui projetados num jogo de escalas e cores, puxando o tapete à geometria bem definida do espaço.
SP: Participaste ao longo da tua carreira em várias residências artísticas. Destaca-me algumas experiências que tenham sido particularmente marcantes e/ou decisivas.
LN: O contacto com outras realidades, a relação com novos desafios pode potenciar o trabalho artístico e a participação em residências artísticas em países como a Arménia ou Taiwan, abriram novos caminhos onde a relação com a paisagem/natureza/figura e a sua representação passaram a ter outros contornos.
Outra das residências marcante foi o International Residence Programme no Location 1 em NYC, onde o contato com a dinâmica Nova Iorquina, e o acesso a um sem número de imagens e referências, que reforçaram, no meu trabalho, a ideia de caleidoscópio onde quase tudo pode acontecer.
SP: Eu tive o privilégio de visitar o teu atelier na Calçada de Santo André, no início de Setembro. O que se está a passar neste momento, criativamente, no teu atelier? O que estás a produzir, consegues enunciar?
LN: A importância da imagem, adquire para mim, nos dias de hoje, um destaque quase obsessivo, e construir desenhos que nos façam refletir no seu desaparecimento (da imagem ou a sua preponderância) é um caminho que estou a explorar. Nesta nova série de trabalhos (desenhos) o desenho e a cor assumem o mesmo protagonismo. A utilização de um símbolo retirado de um objeto utilizado noutro contexto (confrangem/construção civil) passa a ser algo impossível de identificar num caleidoscópio de cores e formas.
SP: Nós trabalhámos juntos num projeto que intitulaste "O desenho Expandido". Este título, na minha opinião, descreve exatamente o teu corpo de trabalho. Definitivamente que o desenho, no teu percurso artístico, é a base, mas tende, eu diria quase sempre, a expandir-se. Onde começa e acaba o/um desenho? (Se é que começa e que necessariamente acaba...)
LN: Para mim o desenho é acima de tudo a marca, o registo, mas também a hipótese de algo que nunca acaba, de infinito ou nunca terminado. Estas duas diretrizes, aparentemente antagónicas projetam o meu trabalho para um território indefinido e por vezes pantanoso, onde cabe ao observador/espectador encontrar os seus pontos ou linhas de referência mais sólidos, desenvolvendo assim a sua relação com o trabalho.
SP: Quando produzes escultura, ou outros objetos tridimensionais, mesmo que numa lógica mais bidimensional de "exposição/apresentação", onde entendes que devemos ler/ver a "tua base", ou seja, o desenho?
LN: A "lógica bidimensional" está cada vez mais presente na nossa relação com o mundo. A ausência de perspetiva e a leitura por camadas carecem de capacidade de distanciamento e o desafio em construir objetos/esculturas que se aproximem da base do desenho, inverte este sistema.
SP: Tens uma série de trabalhos/fotografias que sempre me intrigaram, pela positiva! Refiro-me aqueles registos fotográficos (Escalas, Perspectivas e Superfícies, 2009), em que corpos humanos, incluindo o teu, se metamorfoseiam através da sobreposição de desenhos, sejam estes mais figurativos no caso das “cabeças” ou predominantemente mais gráficos e abstratos. Podes descrever-me as ideias por trás destas obras?
LN: Os diferentes métodos representativos sempre me fascinaram. O desenho e a ilustração científica apresentam a realidade de uma forma pragmática e direta, enquanto que a ilustração infantil propõe um imaginário onde tudo pode acontecer. A possibilidade de utilizar a fotografia como meio aglutinador destes diversos médiuns, potencia novas perspetivas na leitura dos espaços e das figuras que os habitam; conferindo novas dinâmicas próximas do fantástico, do conto das fadas, mas num contexto urbano, doméstico e/ou turístico.
SP: Fala-me na exploração da dimensão e espaço na tua obra?
LN: Temos inúmeras hipóteses para explorar o espaço que nos rodeia, embora a mais comum seja aquela que se relaciona com a escala humana. O jogo de escalas e a elasticidade entre elas foi algo que sempre marcou o meu trabalho. Redimensionar algo apenas pela mudança de escala, do objeto ou do espaço, propõe novas reflexões, num jogo infinito entre o espaço da obra e o espaço de cada um.
SP: As tuas composições espaciais de exposição e apresentação de objetos tem muitas vezes um caráter ou linguagem quase que acidental - refiro-me principalmente a disposição dos objetos no espaço. Achas que esta minha leitura faz sentido?
LN: A seleção dos vários elementos obedece a métodos de escolha que se vão agrupando segundo alguns critério. Esta categorização ou ordenação é desconstruída no momento/instinto/ação definitiva, seja em colagem ou relação com o espaço, promovendo sempre a relação entre vários elementos, sejam eles arquitetónicos, pictóricos, cromáticos ou desenhados.
SP: Ainda no seguimento do raciocínio anterior: Como é que chegas a cada uma destas composições espaciais. Descreve-me o processo, da seleção de objetos, da organização/desorganização destes no espaço expositivo.
LN: Composição é uma palavra que me é um pouco estranha. O que me interessa é o processo, quase como numa dinâmica de escrita, onde as situações acontecem sequencialmente, recorrendo a elementos que reforçam esse sentido de narrativa. Mas sem princípio nem fim, nem de trás para frente, nem cima nem baixo. E Não tanto o ato contemplativo que daí advém, isso deixo para quem observa. Quando trabalho com contextos específicos, sejam igrejas ou armazéns abandonados, a arquitetura estabelece uma relação emocional com o passo a seguir. A relação de amor/ódio criada com as peças a apresentar desenvolve um diálogo específico com o tempo e o espaço, sendo o desenho a união desse passado com o presente. A desconstrução de modelos/estruturas surge nos primeiros desenhos e instalações como um processo onde o jogo de escalas, no desenho entre organismos taxidérmicos e na instalação como algo onde é possível congregar símbolos e narrativas aparentemente díspares, num mesmo território. Diversas tensões são postas na mesa, como um "puxar de tapete” onde a relação entre o que nos é familiar ou estranho (medo) é posta à prova.
SP: Em 2018 e a convite da Galeria Carlos Carvalho, participas-te no Drawing Room, que é seguramente uma “feira” com características muito singulares. Como correu este projeto? Suponho que sentiste que era uma apresentação com um caráter mais individual contrapondo à representação numa feira de arte comercial mais tradicional.
LN: Apesar do espaço expositivo ser, na maioria dos casos standartizado, foi possível numa mesma área conjugar dois artistas, eu e a Susana Gaudêncio; no meu caso "o desenho em construção" desenvolveu-se numa narrativa desde o solo até ao topo da parede, alterando as noções de perspetiva e padronização.
SP: Como vês o desenvolvimento do mercado de arte nacional nos últimos cinco anos?
LN: Como todos sabemos o mercado artístico português tem diversas nuances. O ato de colecionar sempre teve algumas peripécias, mas o gosto do colecionador português mantém-se e parece surgir uma nova geração apoiada nas galerias sobreviventes e nas recentemente criadas.
SP: Sentes que de alguma forma, tu enquanto artista visual, estás a usufruir de algumas das "evoluções" e novos eventos, como é o exemplo da ARCO Lisboa, que começaram a acontecer mais frequentemente em Portugal e mais especificamente em Lisboa?
LN: Uma feira é sempre uma feira, no entanto a inclusão de Project Rooms e galerias só com um artista, apostando por vezes em projetos que aparentemente se afastam de uma linha mais comercial, tornam esse espaço mais desafiante. Como é também o caso da organização de conferências, feiras de fanzines, concertos, e um sem número de eventos satélite que complementam a feira em si. Um exemplo, em que participei, é o Drawing Room, centrada no desenho e que aproveita um espaço já com tradição (Sociedade nacional de Belas Artes) para explorar e discutir os limites do desenho.
SP: Pode-se dizer que a nível mundial, há uma nova geração de colecionadores de arte, mais jovens (os millenials) talvez menos informados, mas muito mais espontâneos e eventualmente menos estratégicos. Em Lisboa e Portugal, e com a tua galeria, apercebes-te desta tendência? Ou consideras que isto que refiro ainda é um pouco distante a Portugal?
LN: A recuperação da crise económica trouxe para Portugal novos investimentos. Muitos deles de outras origens, com outros gostos e sensibilidades alargando as possibilidades dos artistas a novos públicos. Este fato também resultou num renovado reconhecimento dos artistas portugueses, acrescentando mais valia a quem compra e coleciona. O ato de colecionar pode obedecer a vários tipos de instintos. A meu ver o emocional define-se como a característica mais importante dessa escolha. A espontaneidade e a estratégia estiveram sempre a par e talvez estas novas gerações prefiram a empatia irracional à estratégia organizada.
SP: Em 2013, fizeste um projeto para os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian absolutamente extraordinário, “Desvio”. A escala deste projeto é deveras interessante e muito provavelmente por inúmeras circunstâncias que não se proporcionam noutras “exposições”. Como foi desenvolver um projeto com estas características, de arte publica, de certa maneira participativa, e num local icónico como são os jardins da Gulbenkian?
LN: Desde criança que os Jardins da Gulbenkian ocupavam os meus tempos de brincadeira. Mais tarde as práticas do desenho num caderno de bolso passaram a alimentar a minha relação com a paisagem. O projeto Desvio aponta para novas direções onde a paisagem pode ser projetada numa alteração e justaposição de planos. Nesta leitura do espaço o desenho funde-se com a paisagem. Os elementos escolhidos fazem parte de uma recolha de figuras e geometrias de diversas zonas do mundo.
SP: Tens atualmente trabalhos presentes na exposição coletiva Studiolo na Fundação Eugénio de Almeida em Évora. Como surgiu a participação neste projeto e que trabalhos escolheste apresentar?
LN: A exposição Studiolo, com curadoria de Fátima Lambert, congrega em si, como o próprio título indica, a ideia de estúdio ou atelier. A forma como os artistas apresentam os seus trabalhos, em desenho, e reforça o espírito processual do trabalho de artista, sempre com o desenho como linha condutora. Na sala do Tribunal da Inquisição, um espaço organizado por paredes forradas a meia altura com azulejos e caixotões em madeira no teto, propus uma estrutura rebatida de um dos cantos, em madeira e papel, desequilibrando a leitura de grelha ortogonal e reorganizando o espaço real/representado. Para um dos pátios internos do palacete, decidimos aproveitar o topo sul com um desenho que reforçasse o ambiente onde elementos da natureza estão organizados num vórtice centrados num único ponto.
SP: Que projeto estás atualmente a produzir e que gostasses de referenciar?
LN: Talvez destaque a minha prática de atelier, que é um processo contínuo, onde a constante experimentação e investigação é sintetizada num momento específico para uma exposição ou apresentação pública em 2020.
Sérgio Parreira
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Luís Nobre
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